16 de jan. de 2014

Seja roupas, poder, ódio ou burrice... (crônica)




A madama entra na loja tresloucada com a boca seca e falando merda sem parar. Magérrima. Nem escuta nem pensa, só vai na rebordosa do chocolate, ballantines com rivotril. E precisa comprar. Comprar imediatamente. Para ser. Sentir-se sendo. Literalizar a idéia de que é. Tudo se foi. Sexo, carinho, pensamento e sonhos. Mas comprar ainda é possível. Comprar, odiar e humilhar veladamente.

Acho que a primeira estória (só pra desobedecer) a entrar pra História, sobre um vândalo foi a de Sócrates. Ele praticava a desobediência civil descaradamente. Disse que dizia que: “Ei! Ninguém sabe de tudo! quer ver eu provo? Ia lá e provava. Talvez dissesse também: “Ei! Você não precisa seguir ninguém! É fácil!”. Foi condenado a morrer por si mesmo. E não fugiu embora desse. Foi a primeira grande decepção da humanidade com História. Uns decepcionaram por ele não ter fugido. Mas se fugir, disse ele, tudo o que eu fiz, e exatamente aquilo que me condenou, foi mentira? 

Não desobedecia às ordens do poder, mas antes as da moralidade cúmplice. Que talvez sejam as que instauram o poder. Mais profundo um pouco. Essa é a nossa saga. Talvez o mesmo do ‘ser ou não ser’. Ser cúmplice ou não ser cúmplice. Depois disso é o que nós somos obrigados a fazer todos os dias também. Então possa ser uma maldição. Uns sabendo, outros gostando e achando bem certinho. Outros, um montão de patetas batendo pino, acreditam piamente que felicidade venha vendida em latinhas. 

Só que onde eu vivo desobedecer civilmente é ser honesto. Eu desobedeço ao máximo. Sempre dizem pra mim que são poucas famílias que mandam no mundo. Os bandidos também aparentam organizar tudo por famílias. Máfia seria uma contração da expressão ‘mia famiglia’. A gente sempre está presa numa também. Qualquer familiazinha idiota faz isso. E aí uma família em contrato com a outra e acordos de relacionamento e conivência. Escravizado é o nosso destino. Da moral à vida física. Isso acontece nesse tipo de hoje mais ou menos como acontece há no mínimo 3000 anos. 

Tem trabalho escravo aqui na esquina. Aqui, eu te mostro apontando o dedo. Os empreiteiros... empreiteiros, vê lá... gatunos mixurucas tem umas conexões e vão lá no nordeste ou nos interiores por aí e trazem a turma, não é muita gente, não é somente coisa de grupos milionários. Todo mundo faz isso. Pra morar num barraco todos amontoados e ganhar 20 reais por dia. Restaurantes, fabriquetas, empreiteiros, traficantes, milícias e os puteros das suas piadinhas legais e tal. Daí pra acorrentar é um passo. E todos aceitam e ainda se cumprimentam. 

Pense, essa lenda do controle e do descontrole, Deus te olhando em segredo como sempre foi e agora também sem nenhuma privacidade. Alguém sempre pode te ver fazendo algo que te vai por a perder no mundo. Quem vai pra a acumulação do modo de vida do capitalismo... Será que é esse amontoamento dos desejos insatisfeitos? É no fundo no fundo no fundo fruto do egoísmo simplesmente. Cultivo do egoísmo que vigora e viceja na paixão pela submissão à liderança e fascinação pela autoridade que ali a colou. E aí apodrecendo de egoísmo e indigências eu vou pra revolução? Vou para a minha religião? Vou para o trabalho? Pra mudar tudo com meu egoísmo. E pé de morango dá jiló? Outros ainda esperam o famoso milagre. Eu já vi milagre. 

Fico atento sempre, pois a única mudança verdadeira precisa ser horizontal. É simples. É só olhar e ver. Enquanto estiver na vertical não mudou nada. Por mais diferente que pareça. E é um movimento. Não vai um dia acordar horizontal. É constante... Vertical, vertical demais... Volta pro horizontal... Horizontal... Tem gente que acha que não é submisso. Acham até que escolhem alguma coisa na vida. 

E as meninas e meninos que trabalham de vendedor, de caixa e de boi de carga só não são mais escravizados por quê... não sei por quê... não... não foi um Papa que deu a bondade, mas talvez aqueles que morreram por estarem contra a escravidão. Vândalos sabe? Esses poucos direitos não foram dados de mão beijada. Porque essa sociedade escravocrata em que vivemos esse tempo todo se controla pelo medo e pela ilusão. E medo tem pra todo lado. E aí, talvez, pelo medo mútuo, o que tudo ainda se equilibra no limite e venham esses ‘direitos’ nossos. Já a ilusão se fabrica mais facilmente sem maiores eventos constrangedores. É até aceita de muito bom grado alegremente.

Para mim, como disse, no fundo é uma questão de egoísmo. Eu vou nessa. Egoísmo, sem precisar ficar especulando muito, é basicamente não admitir que erra e justificar, o resto vem depois. Mente e sustenta a mentira por um e por uma família na cumplicidade, o resto todo é depois. Prolifera como erva daninha. Só muda realmente quando quebra isso. Por isso acho que esse Sócrates foi o mais sábio que diziam. Nem por milagre nenhum, mas por não mentir. Só isso. E que baita milagre. Mas o réu tem direito de mentir.

Eu vejo assim e me parece que mostra uma saída. Para agir. Um egoísmo desse aí que é trabalhado também em um grupo, ou seja, dentro desses clãs. Tudo pela vantagem do conforto paranóico. Algo assim de acumular preventivamente para proteção virasse uma obsessão. E com isso temos hoje um cercado de porcos que chamam de nação. Onde um toma vantagem de outro. Só isso. Feito em escala família poderosa. Explorando as necessidades básicas de cada um. Que depois de cidades sanguinárias. Inventaram essas nações poderosas. Como pode uma base egocêntrica gerar uma sociedade aberta? Entende? É totalmente impossível. E como podem os patetas criar algo que não seja patético? E não há nada mais patético do que não se admitir um pateta. 

Por isso o mais importante está no cotidiano e não numa solução total, porque essa solução total seria como um enxerto apenas e é fantasiada exatamente pelo meu próprio egoísmo. Como uma solução feita por alguém ou um grupo que está baseado na proteção de vantagens irá ser justa? Veja que aí eu vou defender qualquer coisa pra manter minha segurança mentindo. O que leva milhares e milhões a entrar nesse jogo do contra e a favor. Assumir umas idéias de alguma autoridade para sentir segurança? Sei lá. É tão fácil ir numa onda dessas. E o meu egoísmo, como o de todos nós os patetas, gera ou promove acumulação de algum tipo... Seja roupas, poder, dinheiro, arrogância, erudição, ódio ou burrice...






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