15 de jan. de 2014

Perfil de hardbook (crônica)




Meu padrinho de batismo em 1964... Era veado. Aquele tempo era veado. Seu nome de guerra era Milton Bicha... Amigão do meu pai. Os dois sempre bêbados como uma vaca... Uma pessoa maravilhosa o Miltão. 

E minha madrinha era Dona Maria. Preta. Neta de escravo e segunda mãe (primeira que a amou) da minha mãe. Quando ela chegava na minha casa ela tirava a blusa e ficava de sutiã conversando com a minha mãe.

E eu era bastardo da minha mãe porque ela ainda era casada. O cara sumiu e deixou ela sozinha com duas crianças e foi “trabalhar” por aí. Aí ela amigou com meu pai. É amigar que falava... E só divorciou quando eu tinha 18 anos e aí casou com meu pai. Na época o próprio pai dela, meu avô, tirou na justiça os outros dois filhos dela com 5 anos! E disseram que ela era vagabunda!

E um tempo uma minha irmã nasceu depois disso com paralisia cerebral em 1967! Viveu sem andar, falar ou se levantar até os nove anos quando morreu no meu colo indo pro hospital depois de uma das convulsões que ela tinha por mês! Soma... 9 anos vezes uma convulsão por mês. Ninguém entendia daquilo.

Tinha um sorveteiro que cantava... “olha o sorvetinho garotada”... E era tanta grana que eu tomava um quando dava na semana. A gente mudava a cada quatro meses porque era o tempo certo do despejo. E goteira? Goteira é uma coisa muito louca quando se é criança.

Um dia meu pai quando a gente estava passeando me levantou num muro pra que eu visse uma TV colorida... Eu gritei quando vi... “é o pica pau! ele é vermelho!”. 

A nossa TV era velha preto e branco e meu pai sempre fazia uma brincadeira. Quando tinha pronunciamento do presidente da república. Na ditadura militar então. Ele ficava com a mão no volume e abaixava e simulava fazer uma pergunta para o presidente. Aí depois que ele fazia a pergunta ele aumentava o som e a fala do presidente calhava com a pergunta e era muito engraçado porque claro as perguntas eram pra ridicularizar o presidente.

Uma noite eu jantava ali na cozinha de uma dessas casas velhas que a gente ficava (caindo aos pedaços se falava) e estava com velas porque cortavam a eletricidade. De repente quase parei de respirar. Olhei pela janela e vi um anjo brilhando com as estrelas do céu no fundo. As asas batendo e os cabelos faiscando no vento frio daquela noite pobre. 

Fiquei uns vários minutos ali extasiado vendo o anjo e tentando entender o que iria acontecer. Depois de um desses minutos olhei outra vez e era uma bananeira que a luz do poste iluminou... As folhas da bananeira pareceram então as asas do anjo que eu vi... Mas aí o anjo já tinha ido embora.








arquivo/archive/textos/texts