20 de jul. de 2014

universidade de passarinhos... (miniconto)









Uma criança uma noite sonhou que ela e os seus amiguinhos tinham construído um lugar sagrado num campo lindo... trabalharam numa tela super delicada que, tecida em fibras perfumadas da natureza, fininhas... era como uma abóboda o separava do resto do mundo. Levantaram também uma cerca simples que o envolvia todo, feita trançada do mais sublime bambú, deixando porém que a água mais clara atravessasse. O grande projeto era que os espaços na tela só davam passagem para os passarinhos entrarem e saírem quando bem desejassem, e a cerca, toda coberta por flores e frutas, deixava os caçadores de fora e terminava na altura até onde as cobras nunca subiriam. Lá, dentro daquele recanto protegido da maldade humana e da fome dos predadores, os bichinhos alados se encontravam todos os dias sem medo de emboscadas, armadilhas ou gaiolas. Ali as avezinhas fundaram então a mais surpreendente de todas as universidades do mundo. Diante dos olhos alegres e dos corações apaixonados das crianças... ensinavam cantigas, danças, tapeçaria, arquitetura, malabarismo... Explicavam sobre o coletivismo, simplicidade, voluntariedade, boa vontade, amizade e, principalmente, humildade. Palestravam também sobre polinização, semeadura, replantio, colheta e ambientalismo e... de como discutir com respeito os mais variados assuntos... Recitavam sobre as grandes viagens... os mares, os rios, cordilheiras, nuvens, ventos, terremotos, cachoeiras, desertos... geleiras, cavernas... pradarias, vales e... seus eternos e insuperáveis amores... as árvores. E assim... todos os pequeninos humanos maravilhados ali aprendiam... descobriam e praticavam... e viveram felizes para sempre...














16 de jul. de 2014

juras do peregrino... (poema)








as cinco juras do peregrino

o teu tempo o mais lento
o teu passo o mais delicado
a tua bagagem a mais leve
o teu argumento o mais silencioso
o teu nome o mais desconhecido










domingo futebol morreu... (crônica)





Quando criança o maior evento dos domingos era o futebol. Onde estudava, neste dia santo de folga, era o futebol que lotava o lugar. O padre diretor da escola aproveitava pra encher a igreja, e assim valorizar seus sermões soníferos, porque exigia que só poderia jogar, ou mesmo assistir à partida principal, quem fosse na missa. O futebol era nossa importante identidade, atividade e discussão e, numa época de copas do mundo, todos os campos, várzaes, ruas, esquinas, muros e mesas de cozinha eram só uma coisa: esse futebol amado. Ali se discutiam as teses, as práticas e o futuro dessa nossa religião brasileira (não daquela missa, mas do jogo). Na Lagoa do Taquaral, lugar onde, até o início da minha juventude no mínimo, era tão lotado de discípulos do esporte que nos fins de semana nem dava pra andar. Todos queriam jogar. Timinhos na fila de espera se aqueciam em peladeiras paralelas até que chegasse sua vez. Nas escolas jogos de pais, filhos e o diabo a quatro (que talvez nunca tenha entrado na missa) em campeonatos animados de todos contra todos. Era realmente o país do futebol. Porém, sem que nos déssemos muita conta, mudamos das lindas torcidas das batucadas, charangas, bandeiras e cânticos... para um bando de terroristas alucinados ou para um amontoado de alguns bobões que somente repetem: "com muito orguuuuuulho... vá tomar no cu". Nos dias de hoje, em plena copa das copas, nessas semanas de mundial, tenho sempre passado pela Lagoa do Taquaral todos os dias e fico pasmo, pois, simplesmente, ninguém está mais lá. Sábados vazios e domingos desérticos da bola. Nada. Campos fúnebres isso sim. Com as traves sem redes, mas cheias de teias de aranha. Pensei... o Brasil não é mais o país do futebol. O Brasil é agora o necrotério do futebol. Hoje ninguém mais joga bola daquele jeito e os times profissionais são como criadouros clandestinos escondidos em campeonatos sucateados e arrebentados, em que só existe a manutenção da subsistência precária das suas vidas, recebendo o mínimo de substância para apenas não morrerem de vez para que, estirados nas mesas de autópsia que os clubes se tornaram, alguns de seus pedaços sejam retirados ainda em vida e vendidos por contrabandistas e criminosos pelo melhor preço em qualquer dos cantos do mundo. E aí, de quatro em quatro anos, são convocados alguns desses pedaços e orgãos que estão espalhados pelo planeta, mais uns mortos vivos que se levantam da cova rasa e se monta um zumbi fofo e choraminguento, um franquesteim sensível, porém todo retalhado e incompreensível, que todos insistem em chamar de seleção brasileira... não mais canarinhos de briga com cantos milagrosos... mas pintinhos assustados, noiados e bipolares que vivem de evocar os fantasmas dos vestiários, craques ascensionados e almas penadas dos antigos estádios do passado para assombrar os adversários a esperar que fujam de medo e deixem o gol aberto... e é só o que ainda funciona...




mentira... (crônica)


Quando era criança descobri por uma sorte que algumas pessoas mentiam. Foi assombroso porque as pessoas mentem para as crianças e elas acreditam. Foi assim. Meu pai dizia que numa oficina mecânica que levava seu carro todos eram seus amigos. Nesse golpe de sorte, talvez porque não levaram em conta minha observação, vi que os tais amigos mecânicos, num certo momento, riram muito dele pelas costas. Depois de sairmos eu disse: - “pai, eles não são seus amigos, eles estavam rindo de você e você não viu!”. Meu pai não deu muita bola pra isso, deve ter passado a mão na minha cabeça e sorrido, mas para mim foi ali o início de uma vida inteira de observação e reflexão sobre as atitudes mínimas das pessoas, aquelas que acontecem nos cantos dos olhares, sobrancelhas contorcidas, tipos de choro ou de risos... e por aí vai. Passei a ser um caçador de mentiras sorrateiras.

Algumas pessoas acham que é errado traçar paralelos entre um contexto social, cultural e político de um país com resultados de uma partida de futebol. E, embora essas pessoas tendam a entender isso que aconteceu como um simples resultado fútil de uma partida de futebol, esse resultado dos 7 a 1 não foi. Foi a expressão de mais um projeto institucional falido e mentiroso, desatualizado dos fatos da realidade direta, desarticulados das necessidades banais do planejamento e da organização, consequência da insistência na aplicação de um padrão nesses projetos institucionais do qual o brasileiro é hoje o maior representante. Não porque seja o único povo incompetente do mundo, seria uma inverdade afirmar isso, mas, porque é o único povo, e nisso é o único sem nenhuma sombra de dúvidas, que pode contar com recursos monstruosos em inúmeras áreas e que, inexplicavelmente, é total e absolutamente incapaz no aproveitamento coerente e honesto desses recursos incalculáveis. 

O que mais chamou a atenção nas imagens, durante o massacre alemão, foi o choro desatado das crianças quando a realidade se abriu impiedosa diante delas. Foi um choro exagerado, assim como os dos “meninos” sempre tinha sido. Elas acreditaram numa mentira (talvez também os “meninos”) e sofreram um tremendo susto quando aconteceu o inevitável, que em nenhum momento nem de leve passou pela cabecinhas delas, porque estavam equilibradas apenas por uma mentira e não por uma observação dos fatos e das possibilidades. Uma mentira que foi mentida reiteradamente e, mesmo que depois do fiasco todos os comentaristas digam que já previam o desastre, foi mentida por todos inadvertidamente, vergonhosamente. Isso é fruto de uma mentalidade medíocre que acredita que os problemas desaparecem se paramos de olhar para eles. Na absoluta maioria da nossa ação institucional cotidiana é isso que é a regra. E é isso que ensinamos para as nossas crianças desde a educação infantil, na escola e até, e principalmente, na propaganda. 

Esse é o padrão do projeto institucional brasileiro: vender gato por lebre... mentir, tentar sustentar essa mentira a todo custo... ah... e manter o “pensamento positivo”, porém, o “pensamento positivo”, a mais profunda imbecilidade adotada em larga escala pela mentalidade do brasileiro, é muito fraquinho diante da verdade e também tem perninhas curtinhas curtinhas... E aqui é que se torna possível e importante traçar paralelos a partir desse fenômeno. Para quem gosta de fenomenologia e se interessa pelo paradigma holográfico... quem não... pode continuar a buzinar a corneta que uma hora ou outra ganharemos. 

Em raríssimos lugares do nosso contexto cultural, estamos a cultivar a honestidade de maneira planejada. Cai o viaduto? Vamos disfarçar e mentir que foi normal para não atrapalhar os índices. A seleção está uma fogueira de vaidades sem nenhum caráter, orientação ou trabalho? Vamos chamar a fabricante de caretas (tipo: o corpo fala) pra resolver. Acreditamos na mentira, sentimos que a honestidade é inútil e ineficaz... acreditamos piamente que a mentira, o xaveco, pode ganhar mais rápido uma situação e todas as nossas relações sociais estão há muito tempo e cada vez mais sendo influenciadas e baseadas nessa lógica enferrujada e funesta: temos que ser malandros... passamos o tempo todo a esperar a oportunidade de cavar um pênalti e não usamos um segundo desse tempo para treinar uma jogada séria. E será que vai melhorar agora com esse tombo histórico? Não! Não vai melhorar... vai piorar... Vem aí uma avalanche de mais “pensamento positivo” pra resolver tudo. Talvez numa nova campanha publicitária enganosa para encher a cabeça das crianças...

compraram o fim do mundo... (prosa poética)









compraram as vaias da torcida que se pintou de elite para vender o orgulho e o meio-campista vendeu a cor da camisa para comprar o branco das meias e o dentista do atacante vendeu uma ponte falsa para o goleiro que o técnico dele o tirou na hora dos pênaltis porque ele tinha vendido as defesas para o líbero que pagou adiantado pela mordida fingida que foi revendida pelo juiz que expulsou o lateral porque tinha recebido do volante para não dar nenhuma falta que atrapalhasse a venda da partida para os quatro zagueiros que compraram o resultado dos laterais que se confundiram com quem mesmo que tinha comprado a cobrança das faltas pra fora que depois voltou atrás e ofereceu a canelada que tinha sido paga pelo massagista e pediu o dobro para que mentisse que tinha sido de verdade e quem tomou o cartão amarelo arrumou um jeito de sair pra fora antes de que aquele ponta de lança de quem ele tinha vendido o choro comprasse do outro goleiro que deveria se fazer de cego e depois decidiu vender uma cara de dor para o dirigente esquecendo de que lado estavam as câmeras que queria vender a partida por zero a zero e perdeu a chance de comprar do gandula que demorasse pra devolver a bola porque o bandeirinha já tinha pagado bem pra ele simular um tropeço e que depois percebeu que poderia vender na verdade um pulo mais rápido e muito mais caro para o outro goleiro que queria entregar a encaixada para um time de fora e ficou em dúvida sobre quem pagaria mais pelo seu sorriso diante dos comentaristas que descobriram que se escondessem a tramóia poderiam defender a mudança da concentração para perto dos microfones e venderam os depoimentos positivos para comprar a janta e doaram os negativos para agradar a camareiras do hotel que encontraram as garotas que chegaram antes que o fisioterapeuta entregasse a chave errada para o motorista do ônibus como recebeu do vendedor de chuteiras que vendeu a velocidade da marcha lenta da chegada para o diretor de tv que foi enganado porque o dono da empresa decidiu pagar para correr mais e apareceu na concentração com uma mala de dinheiro para revender os ingressos falsos que faltavam do que tinha sido combinado e por isso todos começaram a chorar mais alto para se vingar que o patrocinador exigiu que falassem fino e eles só treinaram para imitar um falar grosso porque era o que antes os boatos confirmavam que daria um valor agregado maior na de negociar a venda do passe e agora deram uma coletiva mínima em que diriam que aqueles que estavam no banco do outro time que ainda não invadiram o campo só comemorariam juntos com o goleador se esse pagasse aquilo que vendeu para o dono do barzinho que vendeu as bebidas por debaixo da lona e ficaram todos irritados quando o lateral teve que jogar na retranca porque os que jogavam na zaga esqueceram qual foi o acordo na hora que viram gol no gol contra que o centro avante que mentiu que era quarto zagueiro deixou entrar por uma bagatela antes do minuto de silêncio que foi negado para os operários que morreram na construção do estádio porque nunca conseguiriam pagar o valor estipulado pelos cambistas e que deve ser chamado de arena sendo que assim foi arrematado pelo grande empresário que faliu no dia seguinte da goleada que todos têm certeza que nunca foi prevista muito menos as bolas na trave descaradas que somente aquele artilheiro conseguia simular tão bem porque errar de propósito era muito mais caro do que acertar de vez em quando e ali nas imediações do estacionamento alguns cartolas corruptos venderam os órgãos antes que apodrecessem dentro deles mesmos especulando um preço descabido para os gerenciadores de prostituição infantil que ninguém vê ninguém viu desde quando centenas de bombas de gás foram atiradas junto com os fogos que se vendiam sem nota ou fiscalização comprados por olheiros que queriam desviar a atenção da venda de outros craques crianças e a bola coitadinha estava triste e sozinha e decidiu que deveria escorregar de mansinho pra dentro das redes superfaturadas e esperar lá pela entrega da taça que já se desconfiava era falsa porque a verdadeira diziam as más línguas que fora roubada e derretida outra vez na véspera e assim fizeram uma outra bem parecida correndo até que descobriram que a que derreteram na verdade a falsa que tinha sido vendida como verdadeira para quem tinha comprado pensando que era de mentirinha na copa que não teria e que acabou tendo do jeito que não tinham combinado e que todos pensaram de aproveitar bem essa final duvidosa mesmo assim porque a próxima copa não teria mesmo por conta da nova guerra mundial que começou durante o mundial de futebol e que uns dizem que vai longe embora há os que afirmem tendo sido pagos para minimizar o conflito que não é nada certo ainda e o que se espera é que se outra copa um dia puder ter como disse o cientista que trabalhava para os inimigos antes e depois mudou de lado será se tiver depois dos bombardeiros com alvos precisos que o informante mostrou num vídeo falso falsificado escondendo o verdadeiro que caíram no lugar errado e esta copa depois das explosões se tiver se tiver outra copa não será das copas então terá que ser jogada com o único coco verde que sobrará no quiosque clandestino que tem uma licença que parece de verdade...














pelas minhas contas... (poema)




pelas minhas contas
quase certas
neste dezembro ele chega
no fim deste e quase início de janeiro

descobri que nunca fui gente
mas um tipo de pousada
a última de um caminho de dentro
uma estrada que nunca começou
e um pouco ilude que em mim acaba

e como é de interiores sempre foi noturna
e agora que finalmente ele chega
quer andar no sol daqui pra frente
e eu o hospedarei de uma maneira estranha
pois será pra um sempre até que eu morra

é um peregrino que de um infinito
de um mundo que anda sem fim
e agora eu mesmo serei este andarilho
neste depois de dezembro começo de janeiro

ele já grita de longe que não será uma pessoa das máquinas
embora delas também se fazem as trilhas
mas avisa que nada será mais útil se carregados com chaves, cadeados e medos

fala e se confunde em muitas línguas
que eu sou um tipo de templo que vai sucumbir
vai desmoronar quando ele enfim sair para o campo
que disseram pra ele que haveria nascentes, campinas, recantos e relva
que seus passos seriam secos, áridos, úmidos, congelantes

berrou que esqueça de tudo menos dos que amei de verdade
e que das árvores e dos passarinhos avisaram ser toda poesia que ainda nos resta