16 de jan. de 2014

Hospital Maternidade Bienal (ensaio)




Hospital Maternidade Bienal de São Paulo 2012

Há vários tipos de “exposição de arte” e embora todas sejam montadas como farmácias e fedam a formol, vão desde as festinhas nas clínicas de plástica das galerias onde todos se mostram como beldades sem defeito, até os museus necrotérios onde são expostos os cadáveres inertes e embalsamados das múmias. Mas há também aí no meio as exposições do tipo hospital maternidade. Nas suas alas higiênicas ao máximo, nos mostram os bebezinhos já limpinhos e sedados naquelas vitrines em que não podemos pegá-los, mas também nos mostram bem iluminados os casos admiráveis de cura bem sucedidos. Por isso podemos ver o Bispo lá, curado! Extirpado de toda sua demência que seguramente agora não pode mais nos infectar. Sem fedor, sem suor e sem seu tremor espantoso, ali e agora está somente numa simulação patética de sua razão bem lavadinha, esterilizada e embalada para que possamos nos injetar sensibilizados.

Com o consentimento de todos, acreditamos que encontraremos a experiência artística nestes lugares profiláticos onde o pavor de nossa existência foi posto numa camisa de força. Mesmo depois de tudo o que já sabemos, permitimos mais uma vez que o processo artístico seja cirúrgica e silenciosamente banido de seu ritual pagão e irracional e seja exposto no horário de visitas como um dos pacientes nos hospitais após sofrerem o processo secreto brutal dos bisturis, das lobotomias forçadas e dos curativos higiênicos sistematicamente e friamente aplicados depois das costuras devidamente cicatrizadas. Tudo ali é clínico e asséptico ao extremo, ao total!

Apenas sorridentes diante da vida louca do Bispo (que viveu e morreu simultaneamente e se autodevorou poeticamente como aquele sacerdote que pula no abismo primeiro para rezar depois em queda livre e assim sacrificar a si mesmo pela liberdade de seu espírito) nós queremos mesmo é a promessa da não morte da medicina, a promessa da sobrevida a todo custo que os aparelhos tecno-ideológicos nos garantem. Encontramo-nos numa sala de vácuo cauterizada, em que aceitamos pacientemente sermos entubados pelo oxigênio que nos taxidermiza ainda com cara de otário e ali nos iludimos que vencemos a morte impiedosa da poesia desvairada e, ao abrirmos outra vez mão da nossa própria dúvida e vertigem, engolimos a medicação que nos estabiliza e nos faz voltar felizes para os nossos deveres e nossas virtudes medíocres. Neste hospital da cultura em tratamento constante onde nos alegramos que seja este o grande representante de uma sociedade que baniu o desvelamento do processo artístico e a revelação do processo criador poético de todos os lugares. Está banido da escola, da mídia, do cotidiano e principalmente do nosso coração.

Os bons garotos curadores aparecem por fim também sorridentes como os cirurgiões que vem até o saguão da sala de espera anunciar e explicar o quanto foi certo o resultado da intervenção cirúrgica que realizaram, sem que nunca possamos conhecer completamente a truculência insensível de sua execução e todas as sequelas que ficarão depois disso. Somos assim poupados do sofrimento do poeta. Afinal, somos todos os pacientes dessa cultura da mais pura iniciativa da medicina renascentista que sempre somente se interessou por cadáveres dissecados. Mas, se agora o espanto poético de nossa existência que parece estar em um coma profundo ali ficará anestesiado com a morte totalmente controlada e sabe lá por quanto tempo sem poder viver de verdade uma loucura santa qualquer por aí, ao reverenciar o esquartejamento anatomista pragmático do artista em nome da alucinação nauseante da ilusão da Arte, nessa empreitada toda pelo menos ainda é possível tomar a sopinha do hospital e depois comprar uma camiseta ou um saquinho de balas na saída.

















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