17 de dez. de 2015

Repútrida... (crônica)



vamos instaurar uma outra estrutura de Estado; conceitualmente, será baseada naquele jogo de festinhas de aniversário, em que um saco fica pendurado, cheio de balas e pirulitos, e todos batem até que estoure, quando tudo se esparrama e todos correm e se empurram para catar o mais possível; tecnicamente, consistirá num sistema de governo em impeachment permanente (todos estão impeachmentados até que nunca se prove nada ao contrário indiretamente), formando um sistema políticofincado em CPIs, perenes de 24hs, em notícias factoides de jornal e na coreografia das operações de investigação policial; assim, praticamente, a cada novo mandato, serão distribuídos os pedaços de pau de vários tamanhos, diâmetros e pesos (tudo de acordo com as alianças e os acordos prévios), e será pendurado um novo saco, para o início do jogo, abarrotado com todos os recursos, cargos e posições possíveis de governo e, então, após o estouro da sacolona, todos ficam com aquilo que conseguirem agarrar antes de morrer tentando; enfim, uma nova e definitiva forma de governo: a Repútrida...


14 de dez. de 2015

domingo cadelento (crônica)



tudo começou como sempre com um dia abençoado... silencioso e lindo, que a qualquer momento seria destruído por centenas de bêbados dublês de gente feliz, mímicos monstruosos da alegria, a festejar sua própria miséria espiritual; e também pelos corredores de 10, 15, 20 km, disfarçando sua vida maníaca e depressiva, gritando uhuuhu! uhuhuuu! atordoados pela animadora inflada, peitudaça e bundudaça, e por uma música que algum esquizofrênico suicida em surto fabricou em parceria com o demônio; correndo cada vez mais rápido da sombra de si mesmos, pode ser que queiram deixar o que são para trás e se tornar o que ainda nunca vão ser... e pronto! o primeiro deles já se levantou na cambaleante ressaca, de pinga ou de anabolizantes, imediatamente ligando o vap começa a lavar o seu carro descartável de plástico vagabundo como se fosse a última relíquia do automobilismo; acabou-se a maldição que é para esses zumbis mutantes um simples domingo sagrado e doce; e no mesmo instante o outro já ligou o batidão; é o caleidoscópio de uma clonagem demoníaca... de uma simulação de felicidade embriagada e entorpecida! agora... ondas e mais ondas daqueles desodorantes falsificados, baratos e fedorentos, flutuam pelo ar... nas pagodeiras românticas cadelentas... enquanto batem repetidamente as portas dos carros como se fosse uma tentativa de reanimação do próprio coração já apodrecido pelo tédio de sua ignorância cultuada; seguem os fatídicos apitos do acionamento dos alarmes... estão todos em cada esquina, carregando os cadáveres fétidos e os engradados de mijo, chegando para estralar a carniça... e a gritaria pode começar; parecem no fundo ter um certo ódio velado do paraíso que lhes foi dado viver e certamente seja para não ter que suportar sua própria mediocridade em nunca conseguir vivenciá-lo plenamente é que fazem tanto barulho e tanto estardalhaço; a barulheira e a cagaioça são assim o maior e único antídoto, pela mais amarga vingança, e então o mais poderoso anestésico para o insuportável rancor que sentem de si próprios na sua escravidão, consumista e alienada, da sua miserável e totalmente inútil existência cotidiana...



5 de dez. de 2015

a alma dorme nas esquinas (poema)





a alma dorme nas esquinas
nos cantos dos olhos
em vultos de lembranças
tudo num instante silencia
ao longe alguns piadozinhos
ilude e divaga e acalenta
e o mundo perde as fronteiras
e no entre do sonho e um susto
ouvi alguns daqueles gritinhos
meninas... meninas?





ágape... (prosa poética)





ágape...

que os movimentos das meninadas sejam sempre anárquicos e desbundados e descabelados sem precisar de nenhuma liderança ou alguma celebridade ou baratas e moscas partidárias ou institucionalistas burocraticistas e tecnicólatras meritoescrotas ou midiapentelhizantes e que este seja eternamente o grito e a glória de que ninguém ou nenhum e nada fez ou faz mais por aqueles que estão num lugar do que aqueles que estão e sofrem e vivem nesse lugar vendo que não é necessária nenhuma outra organização além do que os organiza em sua própria condição e fatos e fenômeno sendo cada um de todos por todos no mesmo impulso dia a dia e no cotidiano e na consciência deste que não é voto ou contra ou a favor e não venda ou compre nunca nada de ninguém daquilo que já é de todos...




27 de nov. de 2015

DeNadaAdianta (poema)



Há algo sob a tatuagem
E isso é subjacência
Mas nela tem de inflamatório também
Que dizem nunca ter fim
Por isso os antigos as faziam nas paredes das grutas,
Das covas e nos pergaminhos
Nestes ainda causam inflamação
Por isso os de agora as fazem nas grutas parelhas,
Copas e nos descaminhos, lindas causas cheias de difamação
Por isso amanhã se fará nas nuvens, ora ovelhas
Vacas, depois burrinhos
Quem olha vê e já não é
Depende da inspiração
E também agora os punheteiros
De tanta idolatria aos roubam fazendo
Esquecemos que somos putos ralé
Um de país inteiro onde hoje engravidar
É proibido por burrice e caganeira
Banhos de lama, merda e eleição
Aonde cada um não é o que pensa ser
Aonde o outro só vê o que quer ver no cada um
Toda relação é puzzle encaixa, mas não é ali
É ali, mas não encaixa
Essas peças estupradas
Geram a imagem all people
Jogue pro alto
Comece, recomece
Onde está Onã?
Onde todos pensam ser o que não são
E o outro só quer o que vê num de cada vez
De uma felação cheia de pustules numa baixada lá
Besta noutra faixa mais barata lá também
Usurpadas, porém, foi a saia, a calcinha
Deram a mensagem de um tal Picolé
Se jogue de salto!
Comesse donde viesse
Conde do Leviatã?
Vermes num cachorro morto na beira da estrada
Comem o cão a ira canícula criam asas se vão voam
Inoculam-se merda na merda
Merdamorfose acasulamento DNA
DeNadaAdianta


Cido Galvao
F.H. Catani

24 de nov. de 2015

a regra da última pluma de paineira (prosa poética)



a regra da última pluma de paineira: se não faz a mínima autocrítica (em público), que não julgue capaz da crítica de coisa nenhuma em lugar algum...



17 de nov. de 2015

my friends (poem)



my friends 
birds

my masters 

trees, rivers 
where are they?

my feelings 
sad, deep, astonishing

things that I touched 
hair, bones and skin 
a simple smile

things that I saw 
tragedy and beauty

and what I know? 
inventions and losses 
missing memories 
sparks of happiness

some little stones 
and such hard winds 
blood over the streets 
those days, those dreams 
always alone and walking 
where is our sweet love?




16 de nov. de 2015

Deus Peludo (crônica)




Reunidos alguns dos melhores analistas geopolíticos, aqueles de um olho só e a bunda chata com as palmas das mãos peludas, disseram ao mundo, abismados, que talvez o grupo terrorista teria nascido numa cadeia, e diziam isso como fosse um absurdo, acharam estranho que os piores extremistas estivessem naquela prisão, juntos. Para eles, a culpa do aparecimento do grupo foi de quem os prendeu, e não porque eram realmente terroristas e que deveriam mesmo estar naquele lugar, e queestavam no lugar certo... e que, talvez, realmente seriam mesmo perigosos? Mas agora o dilema ainda continua (embora para eles não seja um dilema, mas sim uma certeza) e os analistas têm que descobrir quem foi que criou o grupo extremista, pois para eles não foi a própria imbecilidade milenar dos líderes fundamentalistas, não! ser imbecil fundamentalista de mente embotada não basta, mas sim que é alguém de fora que é o culpado... os débeis mentais são débeis mentais, mas a culpa não é deles mesmos... é de outro... então, logo vão deduzir, finalmente, quem é um dos grandes culpados pelo incentivo desses terroristas... é Deus! A verdade surpreendente revelada por uma meticulosa pesquisa é que o Criador tem fornecido, e isso há muito tempo, o ar oxigenado do planeta Terra, coisa que os mantêm vivos... ainda, e disso há sérios indícios, de que é Ele também quem lhes fornece a luz do sol, que lhes fixa a vitamina D em seus corpos... garantindo-lhes, assim, uma maior longevidade, embora muitas vezes eles mesmos decidam morrer bem antes do tempo... explodindo a si mesmos. Os analistas ainda acreditam, piamente, que é por esse motivo que esses vermes mutantes com DNA misturado de esgoto, mofo e merda e feições monstruosas, pateticamente humanas, gritam: Allah! Allha! Allah! A culpa, disseram, é de Deus!




alucinações (poema)




alucinações: antes a vida sempre, e não a sociedade, talvez seja isso o que diz aquela expressão nos animais enjaulados... as crianças mostram que o sagrado não é algo que se deve conquistar, mas sim algo que não se deveria perder... alguma coisa em algum lugar está errada quando um rio é julgado por uma enxurrada...





31 de out. de 2015

o potencial do poema (crítica)




O importante na frase poética (que seria interessante não necessitar ser explicada porque é um poema e poemas não se explicam, pois, são em si mesmos a explicação de algo) não é qualificar ou definir o que sejam os sentidos, ou qualquer outro termo em separado, de uma maneira racionalista, mas, sob um afetamento poético e subjetivo, criado pela sua leitura intuitiva, provocar de uma maneira direta (por isso usar a forma do poema, pois somente uma metáfora pode ser entendida diretamente) a descoberta de que a inteligência é negativa e, nunca, positiva. E ainda, apontar que quem busca sair da ignorância, através de realizações incríveis, ainda age na ignorância e, por isso mesmo, fabrica mais ignorância destrutiva, sem sentido criador e, mais além, que a falta de sentido está exatamente em buscar essas realizações incríveis, o que é, justamente, o que está destruindo as coisas mais belas do mundo, ou seja, a sua inteligência, que é holística. Esse é o sentido do poema. Enfim, sem sentido, para todos nós humanos, é essa ansiedade pela realização fragmentada de coisas incríveis, ou melhor: sem sentido é a realização fragmentada em si mesma, ou ainda: sem sentido é a realização egóica e, sendo holística a necessidade, o sentido será arquetípico. Assim, terá sentido para todos os humanos ao mesmo tempo. Desta maneira a intenção não é controlar ou propor a razão, o próprio aforismo poético afirma isso de uma maneira subjacente, e por isso é sempre negativo o poema, mas sim, propor um arquétipo, provocar o movimento uma imaginação, exatamente, polissêmica e incontrolável, e não uma racionalidade fixa e concluída. Então, o próprio princípio da inteligência está sempre denunciado no poema, ou seja, o poema é em si mesmo, tem uma existência fenomenológica... em si mesmo... por si mesmo.




o princípio da inteligência... (aforismo)




o princípio da inteligência não está em fazer coisas incríveis, essa é a questão da ignorância... a premissa da inteligência está em não fazer coisas sem sentido...




quem vive pela estética... (prosa poética)



alucinações: por que... nas entrevistas de emprego, mestrado, doutorado e o cacete ao caraleo a quatro, ser simplesmente honesto... é absolutamente o pior negócio? apalpem essa corrupção... ela não é endêmica, ela não é epidêmica, ela não é porra nenhuma... ela é... é ontológica! quem vive pela estética... pela poética será dilacerado... amém é nóis tudo! sem chance!



28 de out. de 2015

23 de out. de 2015

a regra da florzinha (prosa poética)



a regra da florzinha: do bom... pouco... do ruim... nada!



continuidades (crônica)



há dois tipos de continuidades, na moral humana, a da honra e a da estupidez; o imbecil é invariável... não a invariabilidade da tradição, mas a das manias, dos vícios, da inconveniência asquerosa da repetição das mesmas besteiras nos mesmos horários, nos mesmos lugares, nos mesmos encontros; já a implacabilidade do ser honrado é tradicional, porém, a é no culto da humildade e da participação, do sacrifício, do silêncio na atenção ao entorno e no cuidado em extensão ao que e quem está próximo; o honrado serve, sofre, delicado... se oferece romântico... e abandona, pela vontade, o seu próprio desejo... o imbecil é o que desrespeita a tudo e a todos... só o que o satisfaz é o extrapolar pornográfico de seu próprio exagero, esporreado pela sua própria brutalidade...



15 de out. de 2015

a regra de areia (prosa poética)




a regra de areia: não pensar que se é sem o ser, e entender que não se é se não o for, pois é mais e pouco... acreditar que entendeu é errar, e entender que errou acertar, pois é menos e muito...




7 de out. de 2015

a regra da palha seca (prosa poética)




a regra da palha seca: não vás rápido demais atrás de quem está muito mais devagar, porém assim, vai mais rápido na frente de quem já vem rápido demais, assim também, na frente de quem vem rápido demais, não vás mais devagar e, então, atrás de quem está devagar demais, vai pouco mais devagar ainda...




os covardes heróis (crônica)




existe um drama das tragédias mínimas... uma sina de quem suporta alguns pequenos tiranos... desses das casas ao lado... das esquinas mal iluminadas ou mesmo dos palácios insuspeitos; são esses os reais algozes do cotidiano, que teriam morrido há muito se não fossem crias de uma sociedade que, e nunca ficou realmente claro o porquê, existe também para os proteger, mantê-los vivos a qualquer custo... entubados, enchurrascados, embebedados, empanturrados... vomitando barulhos e imbecilidades... porque é desses que se suga a energia dessa sua pasmaceira que arrebenta com tudo por nada (e eles nem sabem); numa situação de natureza bruta mereceriam a morte, mas não... aqui se inverte... os covardes são os que matam e os heróis... os que morrem...




6 de out. de 2015

alucinações: (poema)




alucinações: o pior ignorante é o inteligente... a pior inteligência é a que despreza a qualidade... a pior qualidade é a que foi desperdiçada...




1 de out. de 2015

each flash... (prose poetry)



each flash of consciousness belongs to its moment, as the shadow belongs to the light; this way, we have to work it from moment to moment; we cannot load the consciousness that happens now to the future, because we need to figure it out on each moment, again and again... always in the present... always in each little instant; into the every insignificant instant of life... there is an amazing flower for us...



comícios poemas... (crônica)



Sem querer, encontrei por aí que Pablo Neruda recitou um poema para cem mil pessoas, numa tarde de julho, em 1945... no estádio do Pacaembu. Seriam os comícios poemas... e as pessoas deliravam... as pessoas que estavam no Pacaembu. Eram outros tempos... que, definitivamente, não chegaram até aqui. Naqueles, talvez o importante fosse saber ouvir com o coração batendo quente no peito... nestes... apenas cuspir o mais rápido possivel...




28 de set. de 2015

está em mim? (poema)




o mundo não tem fim
nenhuma família existe
e o eclipse quem disse...
que não está em mim?





24 de set. de 2015

muita sorte... (microconto)



Sim, ele disse, eu tive muita sorte... saí no escuro e a encontrei ali na esquina... mas... eu estava lá na esquina. É... talvez, já o outro lhe replica, deixei aquele tesouro escorregar das minhas mãos naqueles dias, pois, sei lá, brilhava tanto.... mas tanto... que me ofuscava a vista...





21 de set. de 2015

16 de set. de 2015

universidade de passarinhos... (miniconto)



Uma criança uma noite sonhou que ela e os seus amiguinhos tinham construído um lugar sagrado num campo lindo... trabalharam numa tela super delicada que, tecida em fibras perfumadas da natureza, fininhas... era como uma abóboda o separava do resto do mundo. Levantaram também uma cerca simples que o envolvia todo, feita trançada do mais sublime bambú, deixando porém que a água mais clara atravessasse. O grande projeto era que os espaços na tela só davam passagem para os passarinhos entrarem e saírem quando bem desejassem, e a cerca, toda coberta por flores e frutas, deixava os caçadores de fora e terminava na altura até onde as cobras nunca subiriam. Lá, dentro daquele recanto protegido da maldade humana e da fome dos predadores, os bichinhos alados se encontravam todos os dias sem medo de emboscadas, armadilhas ou gaiolas. Ali as avezinhas fundaram então a mais surpreendente de todas as universidades do mundo. Diante dos olhos alegres e dos corações apaixonados das crianças... ensinavam cantigas, danças, tapeçaria, arquitetura, malabarismo... Explicavam sobre o coletivismo, simplicidade, voluntariedade, boa vontade, amizade e, principalmente, humildade. Palestravam também sobre polinização, semeadura, replantio, colheta e ambientalismo e... de como discutir com respeito os mais variados assuntos... Recitavam sobre as grandes viagens... os mares, os rios, cordilheiras, nuvens, ventos, terremotos, cachoeiras, desertos... geleiras, cavernas... pradarias, vales e... seus eternos e insuperáveis amores... as árvores. E assim... todos os pequeninos humanos maravilhados ali aprendiam... descobriam e praticavam... e viveram felizes para sempre...


esporte das multidões... (crônica)



Como a morte do grande Sócrates nos fez entender (o filósofo e não o jogador), antes de tudo é preciso compreender os fundamentos de uma coisa e depois é sempre aconselhável aprofundar um pouco nessa coisa também (o que, no caso da extrema complexidade do futebol, o outro Sócrates, o jogador, demonstrou demorar quase uma vida toda)... porque senão não dá. Alguns acham que o futebol é simples, talvez porque não viveram nada dele, nunca correram pela rua até tarde, nunca foram com o pai assistir partidas numa noite fria e escutaram o barulho do chute na bola... e sentiram isso como um poema... E aí, do nada mental de que são cria os corneteiros, acreditam que, mesmo que nunca tenham se interessado por nada deste fenômeno humano incomparável (muitos dos quais sempre disseram que é apenas um monte de gente tonta correndo atrás de uma bola e se agredindo mutuamente)... possam, agora, em menos de um mês, já definir sua lógica, sua justiça e seus movimentos sublimes... No mundo do futebol há espaço para todos. Mas alguns deveriam humildemente (como ambos os Sócrates nos ensinaram ser o mais honrado a fazer) começar pelo começo. Assim, como alertou o pensador e viveu o boleiro, aprendam a torcer primeiro... comecem por se apaixonar pelo esporte das multidões... já seria uma grande coisa para, realmente, ser iniciado na devoção de seus ritos atávicos...

pesadelo maracanazo (crônica)



ele dormiu durante o jogo e teve um pesadelo de suspense misturado na cerveja aguada de sempre... viu tudo numa névoa mórbida naquelas arenas lindas e descartáveis que já antes mesmo da final se desfaziam aos poucos... viu os fantasmas de um maracanazo às avessas... e parecia que estava todo mundo fingindo... um país inteiro fingindo, mas que um olhar sinistro de canto de olho aqui e ali... denunciava seu pavor... ninguém mais ousava ficar naquele silêncio fúnebre... uns fingiam que amavam o hino gritando... outros fingiam que torciam... outros fingiam acreditar estar a mudar um país... "com muito orguuuuuuuuuuulho"... uns fingiam que jogavam... é isso! fingiam muito bem agora... nem medo nem esperança, mas fingimento era a derradeira solução... se não eram mais felizes... se um chumbo quente agora endurecido ainda lhes entupia a garganta... se está tudo na mesma... fingiam do fundo do coração... chegavam a acreditar!


vi jogar Andrea Pirlo... (crônica)





o futebol do século vinte morre neste mundial... agora as torcidas estão sempre abobalhadamente animadas... mesmo nas derrotas, basta aparecer no telão... não há mais as poéticas posições clássicas com as suas características históricas e míticas... tudo agora é um jogo de peças atléticas gerenciadas como numa planilha de taxas bancárias, que os técnicos impõem na sua frieza e no seu pragmatismo burocrático... as chuteiras, quase incomodam de tão ridículas... quebram a silueta sutil e sofisticada que tinha o boleiro e estão mais importantes que a própria entidade da bola... à qual sacralidade ninguém se refere mais e que hoje parece ser apenas um objeto desinteressante... apenas uma utilidade publicitária na composição da propaganda do próximo produto... os narradores e comentaristas parecem nem querer saber o que o futebol realmente representa para nossa civilização e falam bobagens o tempo todo inventando termos sem nenhuma razão na tradição do jargão futebolístico... porém, ainda há uma reverência possível e fundamental a se fazer... pra quem ainda se lembra do sentido espiritual das pelejas e contendas homéricas, épicas e quase titânicas... aproveitem a derradeira oportunidade para entender o que foi esse esporte e essa vivência heróica para a alma humana... e vejam o último jogador do futebol tradicional, do futebol histórico e do futebol mitológico jogar... daquele futebol maravilhoso que nos marcou tão profundamente a vida... com orgulho digam pros seus netos: vi jogar Andrea Pirlo...




 

14 de set. de 2015

Blackworks & Tattoo Flash & Folk Art (paintings)









Blackworks & Flash Art





Neste novo projeto de F.H.Catani inicia-se, com a supervisão de Caio Jhonson, a dedicação ao universo artístico da Flash Art (que são todas as atividades artísticas ligadas à preparação dos desenhos e pinturas dos tatuadores e que representam uma forma de arte dentro do que se conhece como a Folk Art). Também o artista inicia-se como tatuador aprendiz, com a imersão em estudos e práticas relacionadas à execução de tatuagens no estilo Old School BlackWorks, em que são elaborados desenhos e tatuagens utilizando apenas a cor preta, porém, tendo somente em alguns momentos a inserção de uma outra cor, geralmente o vermelho ou o amarelo, mas de uma maneira bem reservada e em função da mesma linha artística esperada com o uso expressivo do preto. Remetendo seus trabalhos aos significados mais antigos, toscos, visando aos simbolismos ligados aos arquétipos e ao misticismo mais arcaido de uma poética absolutamente rústica, na qual se espera resultados ingênuos, em que a simplicidade dos traços numa elaboração naif, brut, expõe o maior interesse e qualidade estética.



não é esse poema (poema)





não é esse poema
o do verso franco, da estrofe libertária
não é este em nada
como uma sinfonia pedante
entupida de progressões
de harmonia rabugenta
ou complexas modulações
de uma erudição intransigente
nem ao menos e nem de longe
almeja a erudição
naquela ânsia pela qualidade pesada
de uma mentalidade marcial
que obriga a disciplina de sistemas amargos
regras sisudas e dificuldades sarcásticas
curtidas apenas na seca e dolorida ambição
da raiva e da fascinação pelo privilégio
mas é muito antes, aquela poesia infantil
florida e pueril, do ainda intento inconsequente
simplesmente...
como quando batemos o dedo numa corda afinada
de um instrumento rústico... nada além de uma brincadeira...
e descobrimos que uma outra
em um outro encordoamento esticado
que esteja ali ao lado, sem escolha
e neste seu mesmo tom afinado
vibra sozinha num místico espectro de onda
quase imperceptivelmente... na mesma sombra e reflexão
de um encontro tão delicado
como, assim, de um tênue suspiro sobrenatural
que numa saudade sem mágoa, sem agonia
não espera mais nada
sem nenhuma outra atenção
que num pequeníssimo arrepio de sorriso
ou um curto lapso de emoção entre almas de crianças...
ao se encontrar numa ínfima, instantânea e mútua vibração
como nos antigos pedidos das provas de amor ingênuo...




10 de set. de 2015

Abstract Mistakes (digital photos)






Abstract Mistakes are a small number of digital photos taken by cell phone camera and picked from spontaneous and uncontrolled shots occurred unintentionally. I just do the framework and present exactly as they were recorded. Another important thing about it is that I need to expect it to occur, because the shots are never planed, designed or provoked in any other way that is not only a surprise emerged through my mistakes when handling this device in my daily life.

8 de set. de 2015

nada mais sendo (poema)



cada casa se via
vazia às vezes
naquele silêncio
tudo parecia igual
sempre igual fazia
mas se uma força
uma força desatenta
uma coisa nova era
novamente aparecia
como se vivesse
ao mesmo tempo
em vários lugares
e de pouco a pouco
agora piavam ali
alguns passarinhos
nos seus avisos
de que olhasse
o que só faria
e lá alguns sinais
daquelas folhas caídas
e essa distância maior
mas era de si mesmo
como de longe fugia
de si próprio que era
mas não era fugir
apenas que estaria
ali ali e ali e ia
ia sem pensar
algo oco surgia
como um tronco
já seco e morto
doía sim claro
dessa coisa pura
que viver devesse
uma florzinha saía
e que agora mesmo
e nesse outro lugar
nada mais sendo
apenas chovia



23 de ago. de 2015

clouds (photomontages)


Nuvens são os poemas que a água escreve...


Minha vida poética certamente começa quando eu ainda era uma criança e observava as nuvens deitado no chão. Por horas eu as contemplava em sua maravilhosa qualidade. As nuvens sempre me impressionavam imensamente. Nas manhãs eu corria logo cedo ao levantar para ver como estavam no novo dia. Será que estavam carregadas e pesadas, se estavam leves bem alto no céu? Negras e amedrontadoras? Suaves e bem-aventuradas? As formas que as nuvens criavam sempre provocaram a minha imaginação. Sua magnitude. Flutuando. Água flutuante. Gigantes. Suas incontáveis possibilidades de formas. Sua ilimitada capacidade de revelar a luz e de expressar as sombras. Imaginava-as como seres imensos viajando pelo céu do mundo. Numa aventura mitológica. As tempestades. Os raios. Os trovões. Os dias calmos e magníficos com lindas nuvens passando no silêncio da tarde. Aterrorizando-nos nas noites de tempestade. Sonho que as nuvens carregam a imaginação humana. Desenhando e escrevendo em suas formas e volume. Sobre tudo. Numa uma dimensão inusitada. Mitológica dimensão. Espanto e dádiva sublime. As nuvens declamam todos os dias maravilhosos poemas épicos da água. Contam sobre a natureza da vida.... Implacáveis. Delicadas. Poderosas. Dramáticas. Redentoras. Proféticas. Destino destruidor. Graça salvadora. A eterna e divina providência da água.


(Estes são trabalhos de fotomontagem digital a partir de fotografias de nuvens em seus vários estados que eu mesmo faço. As imagens são reprocessadas ​​em um software simples. Sem mudanças exageradas, sem que nenhum alongamento ou distorção. Apenas são intensificadas ou mitigadas algumas cores assim como as relações entre o claro e o escuro. A intenção final é produzir grandes painéis a partir destas foto montagens. Na imagem acima, um exemplo de materialização de uma dessas fotomontagens).




Clouds are the poems that water writes…

My poetic life certainly begins when I was a child and used to watch the clouds when I was lying on the ground. Looking its wonderful and mysterious quality. The clouds always impressed me immensely. Early in the morning I used to run to see how they were getting up to the new day. Were they loaded and heavy? Were they light high into the sky? Black and fearful? Soft and blissful? The shapes that clouds make always provoked my imagination. Its magnitude. Floating. Floating water. Giants. Countless possibilities of forms. Limitless ability to reveal the light and shadows, to express a sacred world. Silently. Imagined them as huge beings traveling through the sky land. A mythological adventure. Storms. The rays. Thunders. Peaceful and stunning days with beautiful clouds passing through the shiny afternoon. Terrorizing us in the stormy nights. I wonder that the clouds carry the human imagination. Drawing and writing in its forms and volume. About everything. With an unusual dimension. Mythological dimension. Amazement and sublime gift. The clouds declaim all wonderful days epic poems of water. Telling about the nature of life... Relentless. Delicate. Powerful. Dramatic. Redemptive. Prophetic. Destructive fate. Saving grace. The eternal and divine mercy of water.


(These are digital photomontage works from photographs of clouds in its various states which I do by myself. The images are reprocessed in a single software. Without several changes, without either stretching or distorting. Only are intensified or mitigated some colors and the relationship between light and dark as well. The ultimate intention is to produce large panels from these photomontages).

21 de ago. de 2015

O Poema Arcaico (apresentação de mestrado)

“O Buda, a Divindade, mora tão confortavelmente
nos circuitos de um computador digital
ou nas engrenagens de uma transmissão de motocicleta
quanto no pico de uma montanha ou nas pétalas de uma flor.
Pensar de outra maneira é aviltar o Buda,
o que significa aviltar-se a si mesmo.”

Robert Pirsig[1]




O Poema Arcaico (apresentação)


Este trabalho oferece uma aproximação intuitiva a alguns possíveis elementos inerentes aos processos de criação artística e de desenvolvimento e organização de atividades artísticas voltadas ao cultivo da imaginação através de propostas em educação estética. A necessidade em elaborá-lo nasce de minha própria experiência profissional e procura apresentar aquilo que acredito são fundamentos primitivos importantes que podem ajudar principalmente àqueles profissionais da educação que buscam alternativas às propostas estritamente racionalizadas nesse universo, que promovem formas de trabalho desumanizadas muito ligadas à nossa sociedade urbana, industrial e de consumo a que todos nós estamos sujeitos pela coerção institucional e burocrática.
Também quer oferecer uma resposta à face institucional e formalizante da educação, literalizada principalmente na escola, que organiza uma constante banalização da dinâmica mística da imaginação humana. Aquela face que não se olha, ou que faz isto com hipocrisia funcionalista. É aquela que julga sempre estar em condições de prover aquilo que acredita faltar a seus alunos mesmo estando ela própria cheia de falhas. É uma educação marcial, da maioria, não artesanal, não artística, a que homogeneíza e simplifica sem entender o que a influencia. É aquela que não é real, mas que afirma realidades arbitrárias. Estes aspectos são os de uma condição psicosociológica que, embora tenha muitas máscaras até bem atraentes, está enamorada da arbitrariedade e da simplificação do conhecimento através da fragmentação e da redução da alma humana à personalidade meramente funcionalista. É, antes de tudo, a educação que acredito ter vivenciado.
Ali o artístico estava banido, e esse banimento estará sempre relacionado nem tanto à sua tecnologia, porque esta muitas vezes aparece, ou na forma de desenvolvimento de certa competência mecânica de manufatura ou como formalidades de entretenimento, mas, ao fato de que nunca algum elemento do processo artístico é trabalhado em sua noção poética. O tempo artístico, a vocação para ver a vida na sua integralidade, metaforicamente, a laboração de significados profundos, a sacralidade e o ritual que essa condição poética exige em seu cotidiano são desprezados e não fazem parte das habilidades práticas que se busca treinar. Não é a imaginação livre para encontrar seus caminhos até essa alma humana que se trabalha, mas a mecanicidade que apenas qualifica um processo mesquinho de produção sempre em busca de resultados quantificados. Esse pouco que sobra de uma alma artística é mantido apenas para reafirmar um mundo pragmático e nunca para recriá-lo.
Porém, mesmo imerso como todos nesta sociedade embrutecida, encontrei alento na imaginação, também como muitos outros seres humanos, e desde criança escrevo poemas e desenho, influenciado por meu pai, Fernando Catani, que lançou dois livros independentes de poesias e tinha uma forte convivência com o meio artístico e cultural brasileiro até meados dos anos 60. De maneira peculiar, nunca senti ter perdido aquela ingenuidade infantil que movia minha necessidade de fazer algo relacionado a essas formas de criação imaginativa e, em muitos momentos, esforcei-me em cultivá-la. Adulto, cheguei a representar Campinas pelo Mapa Cultural Paulista de 1997, na categoria literatura com um poema que está numa publicação independente de alguns poemas meus.

 Eu e o mundo a que pertenço
As qualidades e suas sombras úmidas
A memória nítida de um dia
Quando o fogo dormiu a meu lado
Dos tempos destes sinais
Que de tribos de aspecto fatal
Somos tristes pátinas fósseis
Lugares da infância
Digna tolerância do absurdo
Moradas do espanto inócuo
Penso como flores maduras
Dias absortamente vividos
Nestas falsas estruturas românticas
Folhas de nossa amizade distante
Sobras de uma mesa de anjos



Praticando o que se costumava chamar de artes plásticas desde 1983, realizei exposições em várias cidades do Estado de São Paulo e em outros estados enquanto também expunha em feiras de arte e artesanato. Fui selecionado em duas Bienais Nacionais de Santos. Obtive algumas premiações oficiais de importância regional, como o Prêmio Estímulo de Campinas de 1994 para uma exposição de pinturas individual no MAC-Campinas.  Em 2005 expus obras em batik na cidade italiana de Perugia como parte de um projeto de valorização do artesanato brasileiro.
Sou graduado em Pedagogia pela Unicamp em 2004. Mas, como profissional da educação, pratiquei o que comumente denominam arte-educação em escolas e em projetos sociais desde 1994 e atuei em instituições de educação não-formal com crianças e adolescentes. Também participei de alguns projetos para formação de professores tanto da rede pública como de escolas particulares. Tive uma experiência no trabalho com oficinas culturais entre adolescentes internos na Febem, pelo projeto Febem-Arte, durante dois anos e que gerou e foi o tema de meu trabalho de conclusão de curso, do curso de Pedagogia[2]
Importante também foi a atuação, desde 1997 e sempre como educador, em instituições que desenvolvem trabalhos de prevenção e recuperação do abuso de drogas. Em 2006 idealizei o projeto Ateliê Néos de Educação Poética, onde já realizei e coordenei mais de 1000 horas/aula nas chamadas oficinas culturais com recursos gerados pelo próprio projeto, por parceiros privados, pelo Governo do Estado de São Paulo e também pela Prefeitura Municipal de Campinas.
Em minha experiência com a intenção artística sempre ocorreu uma forte ligação com o desenho e a pintura por uma tradição e convivência com esses gêneros, porém, também elaborei algumas obras tridimensionais que utilizavam uma montagem com materiais diversos, mas enfatizando o uso do vidro/espelho, de mobília de madeira calcinada e de objetos de ferro-velho. Essas obras, os desenhos, as pinturas e as montagens tridimensionais (que em alguns projetos tomavam forma de inserções de execução simples sobre monumentos públicos), buscam sempre uma perspectiva de alma e de um arquétipo total[3], considerando as palavras de James Hillman:

 “Por alma entendo, antes de mais nada, uma perspectiva mais do que uma substância, um ponto de vista sobre as coisas mais do que a coisa em si... A alma é um conceito deliberadamente ambíguo que resiste a toda definição” [4].

Também me preocupo, na execução dessas obras artísticas, em cultivar uma reflexão sobre dois aspectos que julgo mais influentes na problemática psicossociológica da civilização humana contemporânea: o medo e a ilusão, ao mesmo tempo em que é uma elaboração do que eu chamo de ícones máximos, ou seja, quero sempre criar a cada obra um ícone total da Divindade, num poema arcaico, onde todos os arquétipos possam ser reconhecidos. Retorno a arché dos primeiros filósofos, ao devaneio pelo princípio absoluto[5].

“A universalidade de uma imagem arquetípica significa também que a resposta à imagem implica mais do que conseqüências pessoais, ampliando a alma para além de seus confins egocêntricos e alargando os eventos da natureza de distintas particularidades atômicas para sinais estéticos que trazem informação para a alma”[6].

Em todos estes trabalhos o que sempre fica em evidência, para mim, é uma intenção de profetização delirante da presença da Divindade, uma veneração e uma religiosidade sobre o instante do eterno presente, que está sempre cercado, como disse, pelo medo e pela ilusão nascidos na mente humana como elementos psicológicos do passado e do futuro, como únicas figuras que tendem a tentar escapar do instante da presença da Divindade. A obra é o altar em que o instante será sempre adorado e cultuado para que não seja banalizado pela displicência da certeza de uma continuidade que se entrega ou a esse medo ou a essa ilusão. E, para entender sobre o instante, em seu drama poético, rendo-me a Bachelard:



“A poesia é uma metafísica instantânea. Num curto poema, ela deve dar uma visão do universo e o segredo de uma alma, um ser e objetos, tudo ao mesmo tempo. Se segue simplesmente o tempo da vida, ela é menos que esta; só pode ser mais que a vida imobilizando-a, vivendo no próprio lugar a dialética das alegrias e das dores. Ela é, então, o princípio de uma simultaneidade essencial em que o ser mais disperso, mais desunido, conquista sua unidade”.[7]

Por isso o pequeno trecho de texto entre aspas no início deste capítulo, define o objetivo deste e de todos os meus trabalhos e do próprio entusiasmo de minha existência. Tenho plena e total convicção da afirmação deste enunciado, mesmo antes de tê-lo encontrado. Não se trata, porém, da adoção de qualquer crença religiosa ou de qualquer complexo e hipertrofiado sistema de explicação do mundo, mas, muito antes disso, da admissão de que é a própria característica, a essência da Divindade, estar presente em tudo e que esta presença é, no caso do ser humano, a essência de um movimento entre a imaginação poética, a materialização estética e a profunda relação entre estes dois estados. Esta perspectiva afirma aqui uma qualidade humana muito importante para este trabalho, a de que este ente humano é, antes de tudo, um imaginador. Aqui também o caminho para a compreensão desta qualidade específica começa a partir das reflexões de James Hillman:

“O cultivo da alma é também descrito como imaginar, ou seja, ver e ouvir por meio de uma imaginação que enxerga a sua imagem através de um evento. Imaginar significa libertar os eventos de sua compreensão literal para uma apreciação mítica. Cultivo da alma, neste sentido, equipara-se com des-literalização; aquela atitude psicológica que suspeita do nível dado e ingênuo dos acontecimentos e o rejeita para explorar seus significados sombrios e metafóricos para a alma”[8]

Como artista, educador e, principalmente, como um ente humano imaginador, meu único objetivo é expandir a idéia de que sem a consciência da afirmação do início deste capítulo nenhuma criação é verdadeiramente possível e nenhum problema humano poderá ser elaborado livremente. Buscarei demonstrar neste trabalho, a partir dessas premissas, apenas algumas particularidades dessa condição, não para construir mais uma teoria especulativa, mas para testemunhar uma situação de minha vida que me afeta honesta e profundamente.
Com a necessidade de ajuda para os estudos deste trabalho, encontrei apoio nas abordagens para o estudo das imagens elaboradas pelo Grupo de Estudos Audiovisuais OLHO, da Faculdade de Educação da Unicamp através, principalmente, da dedicada atenção do professor Carlos Miranda, a este agradeço desde já. Entre os autores “de fundo”, ou seja, que foram estudados aleatoriamente ao longo da minha vida, mas que influenciam diretamente cada palavra deste texto, está, principalmente, Jiddu Krishmamurti nas suas inúmeras palestras transcritas em que a proposta de conhecer o mundo e a mim mesmo diretamente e pela rejeição à qualquer autoridade imposta ficou como o seu maior legado. O alerta para não me deixar levar por especulações hipertrofiadas geradas nas institucionalizações de idéias, e a constante indicação de um mundo incognoscível ao meu redor em sua maravilhosa e indescritível imensidão é o que alimenta a vontade de demonstrar a intuição que tentarei expor neste trabalho. Seus pensamentos permeiam toda a experiência que realizo.
“O Mito de Sísifo”, de Albert Camus, apresenta-me um aprofundamento de reflexão que marca um dos meus primeiros movimentos de aproximação à preocupação em relação aos processos de criação artísticos e a intuição do drama que os fomenta.

“De todas as escolas da paciência e da lucidez, a criação é a mais eficaz. É também o assombroso testemunho da única dignidade do homem: a revolta tenaz contra a sua condição, a perseverança num esforço tido por estéril. Exige um esforço quotidiano, o domínio de nós próprios, a apreciação exata dos limites do verdadeiro, a medida e a força. Constitui uma ascese. Tudo isto ‘para nada’, para repetir e espezinhar. Mas talvez que a grande obra de arte tenha menos importância em si própria do que na provação que exige de um homem e na ocasião que ela lhe oferece de vencer os seus fantasmas e de se aproximar um pouco mais da sua realidade nua”.[9]

  “Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas” de Robert Pirsig, obra que contem o texto do início desta apresentação, está sempre em mim e aparece como uma memória de um mundo de devaneios delicadamente melancólico que nunca me abandona desde sua primeira leitura. Outra influência é toda obra do antropólogo e escritor Carlos Castaneda em que relata a convivência com a personagem do índio mexicano Dom Juan. Importantíssimos também são as leituras dos textos, chamados de evangelhos, que pretendem relatar a vida e os pensamentos atribuídos a Jesus Cristo. Pier Paolo Passolini é também outra referência implícita, porém, colhida em estudos aleatórios. Um outro texto em especial figura como uma base psicológica de meu imaginário e dialoga com todos os outros, é “Apologia de Sócrates” de Platão, sem dúvida nenhuma um dos textos que mais me interessaram na vida. Outros, cada um com certa importância, estão relacionados na bibliografia.
Dentre os que já são relacionados a estudos específicos, o clássico livro de Andrei Tarkovski, “Esculpir o Tempo”, que é peça insubstituível quando instiga à liberdade de uma vida espiritual pelo impulso artístico. Esta obra é muito importante aqui, pois dará a este trabalho referências contemporâneas para as reflexões sobre os processos imaginativos que observo. Mais dois autores foram adotados como fundamentação direta de estudo deste trabalho. Um, muito importante, é Gaston Bachelard. Porém, embora eu procure ler e citar várias de suas obras por uma paixão pessoal pelo seu trabalho monumental, aqui, apenas um pequeno livro seu, “A Intuição do Instante”, mostrou-me um apoio para encontrar o cerne de toda proposição desenvolvida neste trabalho. O outro autor, James Hillman, é também fundamental para este estudo e, da mesma forma, embora tenha já tido contato com algumas de suas obras, a que é relevante aqui é “Psicologia Arquetípica”. Este pequeno livro define e orienta toda minha reflexão acerca dos movimentos do que entendo seja a alma e o espírito humanos.  Juntos, estes dois trabalhos fascinantes nutrem toda minha expectativa em relação aos fundamentos conceituais para o que espero criar neste texto.
De uma maneira inexorável sempre estive impressionado por essa idéia de que a divindade está em tudo, aliado a uma extrema atração por imagens elaboradas com simplicidade e uma paixão pelas coisas que expressassem uma estética rústica, primitiva, das coisas no estado de presente absoluto, numa manutenção sem reforma, pela afeição única ao estado presente intocado das coisas em seu processo de desgaste como resultado da sua própria existência. Encontrei ressonância desta minha paixão na poética e na estética do “Wabi Sabi”[10].
Esse termo, originário do Japão, é uma espécie de aproximação filosófica e poética à vida, próxima ao Zen Budismo e de difícil tradução e, embora existam alguns textos que busquem definí-lo, não possui teorias sistematicamente elaboradas e muito menos fundadores nomeados. Pessoalmente, diria que é uma manutenção poética das coisas, uma forma de artesanato da contemplação que trabalha em parceria com o próprio desgaste do tempo sobre as coisas. Estabeleci uma relação de uma frase recorrente da personagem Don Juan de Carlos Castaneda e a compreensão do que eu mesmo entendo por “Wabi Sabi”, quando este autor cita o poeta mexicano José Gorostiza:

“... este incessante morrer obstinado,
esta morte vivente,
que te retalha, oh, Deus,
em Tua rigorosa obra
nas rosas, nas pedras,
nos astros indomáveis
e na carne que se queima,
como uma fogueira acesa por uma música,
um sonho,
um matiz que atinge o olho,
...e Tu, Tu próprio,
talvez tenha morrido eternidades de eras aí fora,
sem que saibamos a respeito,
nos refugos, migalhas, cinzas de Ti;
Tu que ainda estás presente,
como um astro imitado por sua própria luz,
uma luz vazia sem astros
que nos alcança,
escondendo
sua infinita catástrofe.”[11]


Estou cercado e sou parte desta “morte vivente”. Este aspecto me serve aqui para dar um timbre e uma pátina específicos ao trabalho que este estudo se propõe. Quando abordar as imagens será sempre olhando através desta intenção.
Estas referências alinham-se a uma outra proposição que sempre me encantou, a Alquimia. Porém, me interessa aqui essencialmente por seu aspecto de singularidade, de simplicidade e primitivismo como, por exemplo, o V.I.T.R.I.O.L. “Visita Interiora Terrae Rectificando Invenies Occultum Lapidem”. Explora o interior da terra. Retificando, descobrirás a pedra oculta. Esta é uma fórmula célebre entre os alquimistas e que, de certa maneira, condensa a doutrina. É também o mesmo nome dado à flos coeli (flor do céu) o orvalho colhido pelo alquimista para realizar a obra alquímica: O Vitríolo vegetal, gordura do orvalho, espuma da primavera, princípio da vida celeste, manteiga mágica[12]. Visitei o que essa explicação é para mim. Essa proposição é uma ordem fundante da insondável história da Alquimia, mas, a tomo aqui me aproximando de seu aspecto filosófico, poético e metafórico.
A realização alquímica que admito me sugere mais uma realização espiritual, de encontro espontâneo com a rusticidade da alma, do que um sistema de técnicas científicas complicadas e da sistematização especulativa que algum de seus supostos praticantes desenvolveram. O momento da proposta da Alquimia que interessa aqui é, então, apenas o instante exato em que “Na noite escura o jovem buscador sonha. Os anjos o despertam para que dê início ao trabalho da Grande Obra”[13]






Minha referência a essa temática vem principalmente da contemplação das imagens contidas no “Mutus Liber” e do estudo da significação dos termos, nomenclatura, objetos e atos ligados ao trabalho alquímico em si mesmos. O que se mostra mais importante para mim neste universo imagético da Alquimia, e que é referência para este trabalho, é que todas as coisas devem e tem o poder de revelar essa qualidade sagrada por si só. Isso é claramente expresso na proposição do VITRIOL. Pois, acredito que a fundamental indicação desta proposta não se trata de ver coisas importantes em lugares importantes, mas sim de ver coisas importantes em qualquer lugar.
Bem, imerso neste universo, num belo dia, surgiu uma necessidade específica desse meu trabalho como arte-educador, devido a uma exigência  de um curso de capacitação de professores em que eu deveria expor sobre a divisão da história da arte em períodos históricos. Resolvi olhar para esse tema e tentar encontrar nele essa aproximação espiritual. O pedido era expor superficialmente o tema dos períodos da história da arte e mostrar as principais imagens relacionadas a estes: Arte Primitiva - Arte Antiga - Arte Medieval - Arte Renascentista - Arte Moderna - Arte Contemporânea.
Na preparação para a exposição não me interessei por descrever os períodos, analisá-los, provar sua veracidade ou depor contra isso. Simplesmente esse fato foi o estopim para uma descoberta importante para mim, porque acreditei que poderia ser o momento e a oportunidade de estudar e demonstrar algo que já intuía fortemente. Atraiu-me também o fato de que estudaria não somente os conceitos, mas algumas imagens relacionadas aos períodos.
Embora esta divisão já seja, de certa maneira, um senso comum, há uma referência de estudo no o famoso livro de Arnold Hauser[15] em que esta mesma divisão encontra uma justificativa, todavia, um tanto mais elaborada. Porém, tomei-a na sua forma mais aceita (o que se confirmou entre as pessoas cuja explanação se destinava na ocasião). Busquei primeiramente as imagens das obras referentes com uma estreita relação com as características convencionais de cada período (principalmente datação) e mais acessíveis que encontrei, pois era necessário partir do que estivesse mais próximo, porque não seria uma pesquisa por imagens inéditas, mas sim um mergulho, e um mergulho vai da superfície ao fundo. E, na proposta do presente estudo isso é o mesmo que dizer, como defenderei, da estética à poética, ou seja, do espírito à alma.

“É uma particularidade da alma ser não apenas mãe e origem de toda ação humana, como também expressar-se em todas as formas e atividades do espírito; não podemos encontrar em parte alguma a essência da alma em si mesma, mas somente percebê-la e compreendê-la em suas múltiplas formas de manifestação”.[16]

Quando comecei a observar a estética de cada período, claro, expressa nas imagens dadas que as representavam, comecei instintivamente a refletir imaginativamente sobre os momentos de realização dessas obras, a contextualizá-los, a buscar por biografias e fatos relacionados às imagens que estavam ali defendendo cada recorte. Essa intuição devaneou para o reconhecimento de uma qualidade externa e uma interna que cada imagem parecia conservar. Influenciei-me aqui pela assertiva de James Hillman que sempre me intrigava: “o espírito está nos picos, a alma está nos vales”[17]. Tomei a frase em si mesma e repetia sua leitura, como um mantra religioso, porque algo parecia saltar de dentro desta frase que era exatamente o que eu intuía em alguns instantes de meus devaneios. Mas o que seria o espírito das coisas e o que seria a alma das coisas quando olho para os períodos. Caminhei da superfície estética à profundidade poética de cada imagem que encontrava. Do espírito manifesto e iluminado à alma profunda e protegida. Foi uma visão e eu continuei a devanear sobre ela nomeando o que percebia como uma espécie de disposições poético/estéticas que acredito apareciam coincidentemente entre as imagens de cada período. Disposições com uma face estética e uma noção poética permanente, reconhecidas em cada imagem atribuída a um mesmo período.
Discorrerei neste trabalho sobre uma visão específica da alma artística. Entendi que deveria abordar o movimento da imaginação na idéia dos períodos para reescrevê-lo espiritualmente a partir do que me provocavam internamente, de como me afetavam a memória. Busquei, então, encontrar antes de tudo uma imagem arquetípica que melhor evocasse a alma e o espírito. Que pudesse me colocar, de acordo com meu anseio, no ponto mais atávico e rústico possível e que, apesar de geralmente já estar apropriada por diversos sistemas imagéticos organizados, poderia ser estudada independentemente destes para estabelecer um campo psicológico no qual eu contemplaria posteriormente as imagens contextualizadas relativas aos períodos. Escolhi a Trindade, a guardiã do eterno. A imagem da Trindade que mais se aproximou do teor de que minha imaginação necessitava abordar neste estudo foi a da Triquetra.
A partir desta posição inicial da Trindade e, antes ainda de partir para o estudo as imagens relativas aos períodos, julguei também necessário demarcar algumas fronteiras da imaginação, principalmente as que me pareciam sugeridas a partir da metáfora da alma no vale e do espírito no pico, relacionando-as à intuição do instante. A importância que dou a essa “localização” da relação entre alma-espírito-metáfora, fica mais clara nesta afirmação de James Hillman, “O logos da alma, isto é, seu verdadeiro discurso, será num estilo imagético, um relato que é totalmente metafórico”[18]
Escolhi para a alma o prumo e para o espírito o zodíaco, porque para além dessas fronteiras, tanto no fundo vertical da alma como no ápice esférico do espírito, não vejo mais imagens, não encontro mais metáforas, não encontro mais mitologia, só há o silêncio do desconhecido. Pois, claro, a imaginação humana tem o limite e a escala anímico-espiritual do ser humano. É novamente Gaston Bachelard que me ajuda aqui quando escreve que “toda imagem é uma operação do espírito humano; tem um princípio espiritual interno mesmo quando a julgamos um simples reflexo do mundo exterior”[19]. Assim, tentei encontrar uma imagem da alma mais funda e uma imagem do espírito mais alta para demarcar o lugar da imaginação, para assim me aproximar em certa segurança do abismo da eternidade que estas fronteiras permeiam.
Neste caminho, descobri que uma constelação ficou de fora do zodíaco, o Ophiuchus, ou serpentário. Tive uma intuição interessante sobre essa situação da décima terceira constelação, e o fato de esta estar excluída. Assim também é a condição do quatro na sua relação com a Trindade que, como escreve Goethe “nós trouxemos três, o quarto não quis vir conosco: ele diz que é o único verdadeiro, que pensa por todos os outros”[20]. O diálogo destas duas situações imagéticas, do treze e do quatro, com minha investigação sobre minha idéia das fronteiras me levaram a ligá-las também uma relação estreita com a imagética das esferas infernais, o que me fez refletir numa interessante condição das imagens ligadas a estas peças, que também as torna uma fronteira da imaginação. Para a estudo do imaginário que as liga ao mundo infernal, relaciona-las-ei, principalmente a partir de sua situação de exclusão, a duas interessantes entidades demoníacas, Arimã e Lúcifer, através do estudo da interessante visão que tive da permanência das características poético/estéticas destas duas figuras arquetípicas em duas performances musicais, um da banda U2 e o outra da banda Rolling Stones.
O principal elemento desse movimento de minha imaginação, que desencadeia todo processo de criação a que me dedico é o devaneio.  É um estado psicológico que entendo seja encontrado numa fresta entre a vigília e o sonho. Para mim, somente este estado pode estabelecer um diálogo entre estas duas situações, tão fortemente ligadas à condição humana, para criar imagens importantes. Estas reflexões estão magistralmente expostas na obra de Gaston Bachelard, “A Poética do Devaneio”[21], mas já estavam esboçadas numa obra anterior, “A Pisicanálise do Fogo”, da qual retirei esta citação, fundamental para este trabalho:

“Esse devaneio é extremamente diferente do sonho pelo próprio fato de se achar sempre mais ou menos centrado num objeto. O sonho avança linearmente, esquecendo seu caminho à medida que avança. O devaneio opera como estrela. Retorna a seu centro para emitir novos raios”[22].

Marcadas as fronteiras e estabelecidas as referências em que meu imaginário acerca das intuições provocadas pelo mote deste estudo se deslocaria, aparecem-me, num devaneio de uma mística fusão entre a estética que eu vi e a poética que eu intuí pertencerem aos períodos diante das imagens relacionadas a cada um destes, doze disposições, seis anímicas e seis espirituais, dispostas em duplas que, contextualizadas a cada período, revelavam um aspecto materializado e um de impulsão que me pareciam coincidir com o contexto psicossociológico referente aos períodos a que eram associados e, embora pudesse encontrar todas as disposições em todos os períodos, creio que cada dupla apareceu com mais intensidade em um período em especial. Para ampliar as possibilidades de observação destas reflexões e meus devaneios costumo criar o que chamo de “gráficos poéticos”. Elaborei para este trabalho alguns que, aliados à leitura do texto, podem representar uma interessante maneira de aproximação ao tema proposto aqui[23].
Assim, relacionei uma estética de ritual ao um impulso poético de ritmo principalmente nas imagens e no contexto atribuídos ao período da chamada arte primitiva. Uma estética mitológica a um impulso de reflexão poética que estavam mais evidentes nas imagens e contexto da chamada arte antiga. Uma estética de religiosidade com seu constante exercício poético de devoção ocorriam de forma mais aparente no período dito arte medieval. Uma experiência estética intensa de humanidade que sugere uma consciência de identidade poética esteve sempre claramente evidente nas realizações amplamente divulgadas da chamada arte renascentista. Uma estética focada na construção da sociedade que se esforça para a dinamização de significados poéticos surgia com maior força nas criações da arte moderna. E, finalmente, uma estética de panculturalidade amparada por uma determinação de equanimidade poética era mais potente nas situações artísticas do que comumente se chama arte contemporânea.
A partir disso, decidi eleger apenas uma imagem para cada um dos seis períodos que conservasse intensamente cada uma das seis duplas de disposições que eu vislumbrava, pois o objetivo não era teorizar os períodos ou dissecar as obras, mas estudar minha intuição desta estranha aparição conceitual. As imagens são aqui o amparo para meu devaneio. Estudei a historicidade e algumas estórias, lendas, mitos e biografias, em livros e documentários audiovisuais que consegui encontrar, relativas a cada período e os relacionei tudo isso aos meus devaneios acerca das disposições que visionei. Durante este exercício sempre tive a sensação de que seria necessário destilar mais uma vez esses elementos, pois, na continuidade desse meu trabalho imaginativo percebi um outro curioso movimento revelado em cada dupla das disposições que sibilava um novo tom criado a partir da contemplação da interação entre as duplas de disposições.
Como quando surge uma outra cor no efeito ótico entre o movimento de duas cores, surgiu-me um vulto, um mote entre os dois vetores de cada dupla disposição, uma idéia que me sugeria a aparição de um grande teor primitivo, figurando como uma energia psíquica, com um aspecto rústico, atávico, uma potência andrógina da criação artística que se alimentava da movimentação entre cada dupla de conceitos que chamei de disposições do processo de criação artística. Associei imediatamente essa minha visão a uma afirmação de Gaston Bachelard que também sempre estava latente e intrigante para mim:

 “Com efeito, as condições antigas do devaneio não são eliminadas pela formação científica contemporânea. O próprio cientista, quando abandona seu trabalho, retorna às valorizações primitivas. Seria inútil, portanto, descrever, na linha de uma história, um pensamento que não cessa de contradizer os ensinamentos da história científica. Ao contrário, dedicaremos uma parte de nossos esforços a mostrar que o devaneio não cessa de retomar os temas primitivos, não cessa de trabalhar como uma alma primitiva, a despeito do pensamento elaborado, contra a própria instrução das experiências científicas”[24]

Vi que, à minha maneira, havia encontrado uma pista daquilo que eu intuía serem os temas primitivos a que, segundo Bachelard, todos nós retornamos.  Chamei meu delírio de “seis temas primitivos da alma artística”, também o associei a uma outra imagem da Alquimia, a rosa de seis pétalas, que figura como um dos símbolos da pedra filosofal, e acreditei que assim, para mim, esse seria o resultado do trabalho espiritual de minha imaginação desde a primeira observação dos períodos da história da arte. Comecei, então, a trabalhar sempre os tendo como o principal arquétipo envolvido nos processos da criação artística. Montava os cursos, as aulas, as oficinas culturais e minhas próprias tentativas de elaboração artística, implicitamente possuído por esse devaneio, por esse encantamento que inventei para minha vida e que me deixa extremamente alerta, pleno e alegre em persegui-lo.
Os seis temas primitivos que se revelaram a mim são uma potência de cada dupla de disposições que creio sejam o esteio do processo de criação artístico, seja qual for a qualidade, tipo, maneira de cada relação estético/poética, espírito/anímicas. Assim, na disposição do ritual/ritmo vibra o tema primitivo do Tempo. Nas disposições dinamização/sociedade aparece o tema do Ser. Nas disposições devoção/religiosidadeo figura tema do Sacrifício. Da relação equanimidade/panculturalidade pulsa o tema da União. Na dupla identidade/humanidade, o tema da Verdade. Nas disposições reflexão/mitologia aparece o tema do Divino.
Acredito que seja qual for a obra artística que observar, poderia destilar estes mesmos temas e encontrá-los como a matéria prima de qualquer criação poético/estética. Na verdade, acredito que poderia destilá-los de qualquer criação humana, sem nenhuma restrição, pois acredito que toda realização ou ato humano é poético/estético desta mesma maneira. A Divindade está em tudo e os temas primitivos são, para mim, uma manifestação delirante e arquetípica da Divindade. Por isso, para demonstrar essa qualidade decidi também apresentar uma parábola para cada um dos seis temas primitivos, tiradas de trechos de filmes. Acredito que em cada recorte desses, colhidos de sequências corridas, sem nenhuma montagem, poderei criar uma oportunidade de aproximação metafórica aos temas primitivos, propiciando, além do texto que escrevi, também uma reflexão imagética que possa ampliar a relação do leitor com a proposta deste trabalho. 
Espero, então, que a escolha destas imagens me coloquem em momentos iniciáticos, pois sempre foi meu interesse mais profundo encontrar a Divindade das coisas sem intermediários e sem tradutores especulativos. Quando preciso encontrar referências, as busco naqueles que cuidam para não doutrinar, mas sim que me empurram conhecimento adentro.
Bem, qual seria a importância de um trabalho com a pretensão de desconstrução da idéia dos períodos da história da arte para encontrar a Divindade em temas primitivos inventados por mim? Seria, principalmente, a de reencontrar uma reflexão e uma condição humana espiritualizada, sacralizada, porque não consigo assimilar a imensidão do universo que me cerca sem me render a uma postura de reverência e admiração.
Neste estado, buscarei seguir para demonstrar a força e a necessidade de uma aproximação constante ao universo artístico e me dedicarei a oferecer ao leitor um lugar de contemplação desses temas primitivos que eu mesmo vislumbrei. Minha intenção é que isso possa ser tão interessante a quem ler esse trabalho como tem sido para mim, e assim contribuir para indicar uma nuança específica, uma visão poética do mundo que nos cerca, chamar a atenção para a grandeza de qualidade espiritual de nossa existência e testemunhar pela necessidade de reconhecer a vida por mim mesmo, imerso nessa assombrosa eternidade do instante.







[1] (PIRSIG,1984:24)

[2] (CATANI, 2004)
[3] Algumas de minhas obras artísticas, assim como algumas obras resultantes de meu trabalho como educador estão aqui incluídas no tópico Imagens, a partir da página 35.
[4] (HILLMAN,1983:40).  
[5] (CHAUÍ,1994:41)
[6] (HILLMAN,1983:34).
[7] (BACHELARD,2007:99) 
[8] (HILLMAN,1983:55)
[9] (CAMUS,1943:141)
[10](BROWN,2007)
[11] (CASTANEDA,1988:120)
[12] (CARVALHO,1995:92).
[13] (CARVALHO,1995:38)
[14] (CARVALHO,1995:39)
[15](HAUSER,2003)
[16] (JUNG,1985:74)
[17] (HILLMAN,1983:15)
[18](HILLMAN,1983:46)
[19](BACHELARD,2001:41)
[20](JUNG,1994:52)
[21](BACHELARD, 2001ª)
[22](BACHELARD, 1999ª:22)
[23] Ver os gráficos poéticos nas páginas 69 a 75
[24] (BACHELARD,1999ª:5)  

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