28 de fev. de 2023

Na fossa mítica (poema)




Na fossa mítica da estatística


Como uma fruta esquecida 

Que apodreceria sobre a mesa

Se a inteligência não é natural

Se não é ela mesma cultivada

Nega toda uma vida na alma


Se o seu amor desidratado

Não alimenta e não fomenta

Se não vislumbrar o horizonte

Definha no medo e na ilusão


Desabrocharia na compreensão  

Mas não vai além do desprezo 

O alento profundo da compaixão 

Não enraíza sobre um simulacro


Qual revolução poderá fazer

Alguém que em si mesmo se esconde 

Que transformações verdadeiras 

Sem que a humildade cristalize luminosa 

Antes que a mente entre na demência total


Que artificialidade então seria possível

Se nesta senda deste seu buraco fétido

Retorna esta velha insensatez fascinada

Novamente se ilude na parede de pedra

Deste movimento de irrealidade sem vida

Que desprezaria todos os avisos ancestrais

Dos messias que regressaram a gritar

O real! Veja! A verdade não se arremeda!

Para num último sopro evocar salvação

Desta enganação narcísica danada

Que essa cacotopia diz ser o futuro

Maldade que desatava enfim do espírito





23 de fev. de 2023

Éden despejado (poema)



Éden despejado


A pior corrupção

é a da pureza

assim aliciada


A pior miséria

essa abundância

desperdiçada


A pior tragédia

a que já estava

tanto profetizada





14 de fev. de 2023

O Poder (aforismo)




O poder aposta sempre com um par de dados viciados. Um, esconde o número certo, o outro,o errado...




13 de fev. de 2023

O Moralista Enrustido (crônica)




O novo calhorda do século XXI (seja metido a secular ou divino, pois o bom só melhora, mas o ruim só piora) evoluiu. Para esconder toda a sua canalhice e manter-se a posar de bondoso e compreensivo, já dissimula os cerimoniais do julgamento e da condenação (que desceram finalmente ao senso comum como algo execrável). Porém, covardemente, como é de sua linhagem, continua a deixar bem evidente a sua paranoia para a acusação (em sua obsessão por defender-se de si mesmo, pois, já se sabe que aquilo que fará um grande malefício vindouro é porque já faz qualquer mal odierno). Mas, por um mórbido ritual, e aqui é como a prova reversa de seu poder nefasto, fá-lo-á agora pela liturgia da absolvição...




6 de fev. de 2023

Bago de Cateto (crônica)







 “Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamom.” Mateus 6:24


Eu gosto dos evangelhos porque é poesia pura do mais alto nível. Daquelas que séculos de tradução (e traição) não conseguem destruir. Eu acho. Bem, eu assisti uma dessas séries americanas que expunha o dia a dia de uma gangue de motociclistas. A estória deixava revelar que a tal gangue teve um início abnegado e voltado a defender uma pequena cidade de bandidos e malfeitores, mas que com o tempo, e a natural troca de liderança, assumiu um caráter contraventor e um tempo breve depois já adotava a criminalidade pesada mesmo, com tráfico de armas, drogas, exploração de prostituição e assassinatos. Além do que viviam da velha e conhecida escola do tipo olho por olho dente por dente. 


Eu não vi mais nenhum episódio porque detesto enredos em que criminosos são heróis e desprezo profundamente me apaixonar por eles, a não ser pelos que se arrependem e passam a combater a própria gênese. Por exemplo, prefiro um desenvolvimento estilo Tarantino em que sempre os maus-caracteres se dão mal... muito mal no final, e ainda, aquele que quer ‘sair dessa vida’ consegue e sai fora na boa (depois de sofrer bastante é claro). Bem, nessa série e neste único episódio, ao qual assisti, um homem havia estuprado uma garota. O pai da garota decidiu fazer justiça pela vingança bruta. Planejou e boquejou que iria capar e matar o cretino do estuprador. Foi até o chefe da gangue das motos e disse o que queria. Os membros da gangue acharam o desgraçado. 


Foram até um lugar ermo com o infeliz patético dominado em seus últimos momentos de vida e... o pai da garota, da menina que talvez estivesse precisando da ajuda do seu pai naquele momento horrível pelo qual passava, estava lá... acreditando estar também de todo preparado para a sua vingança justa de ódio, bem alimentado por milhares de justificativas. Na hora do sacrifício o chefe da gangue, óbvio, passou as honras ao pai, porém, o vingador paternal simplesmente não conseguiu realizar a proeza de extirpar, descaroçar, desarrochar, relaxar os bagos do cateto com uma faca de castrar curvada e doída... desde as bolas daquele desacorçoado ali rendido na sua frente até o começo da sua garganta num só corte profundo, sangrento e... peidou.  


Tremendo na tremedeira entregou o instrumento da justiça para o chefe machão. Este olhou na cara dele com uma puta raiva e disse que era muito engraçado que o pai quisesse uma vingança naquele estilo, que tinha gritado, berrado que iria matar o cara, mas que saiu vomitando, correndo para longe e que agora um outro é que teria que fazer aquilo que ele mesmo não tinha peito para fazer porque era um bunda mole de um bundalêlê... e que ainda saiu correndo e nem de ver era capaz? E sabiam lá que Gandhi havia dito que nessa pegada o máximo que teremos é um mundo de cegos (e banguelas). Mas, a gangue não adotava os depoimentos de Gandhi porque, até mesmo os brutos ali percebiam, seria uma imensa incoerência, pois, se alguém acredita e atua na violência é isso e o melhor para essa pessoa, por certa honra mental, que esta tenha seus heróis e que estes sejam bem violentos. Já se não é isso. Quais serão os heróis? Matar e amar?Tem alguma moral essa estória? Tem alguma coerência nessa estória?





3 de fev. de 2023

O Ritual Tosco (poema)



No grande salão do pulmão

Do corpo como um templo

A divindade cósmica adentra

Trazendo de longe toda a vida

Lugar da atávica religiosidade

Duma grande partilha amorosa

Onde é ungida a seiva da vontade

Que despejada no sangue cru

Chega até o sacro altar coração

Onde há então a pura consagração

No eterno sacrifício dos talentos