19 de jan. de 2014

Iluminação Carburada (conto)







Iluminação Carburada – um conto biker dominical (adaptação livre)

Um motociclista em busca espiritual queria descobrir a chave da paz e da sabedoria (pra variar). Viajou muito pelo mundo até conseguir saber onde estava o mestre biker mais famoso de todos os tempos, pois disseram a ele que aí sim ele poderia alcançar o seu sublime desejo. Ao finalmente encontrar com o mestre biker nos arredores da cidade de Campinas, ele se apresentou e disse tudo sobre seu profundo intento. O mestre lhe disse que seria simples e bastava que ele fosse até a cidade de Mococa e depois voltasse e aí lhe contasse o que descobrira no caminho. O discípulo biker entendeu que o mestre já havia percebido o quanto ele era especial e lhe daria a chave da paz e da sabedoria sem muita complicação porque talvez o tal famoso mestre já percebera que ele nitidamente merecia tudo mais do que ninguém.

Era um lindo dia. Ele foi e voltou de Campinas a Mococa e tudo estava tranquilo e alegre. Quando chegou imediatamente o mestre lhe perguntou o que ele havia visto de importante na pequena viagem. Ele disse que entendia o procedimento do mestre e tal, mas que agora ele já estava pronto para receber a chave da paz e da sabedoria. O mestre proferiu em tom simples, mas mítico, que ele não havia entendido o que ele pedira e que deveria ir novamente à mesma viagem todos os dias, por um mês, pelo mesmo caminho e que depois disso feito deveria lhe dizer o que havia visto, realmente, de importante. 

O discípulo biker fez o indicado, embora já um pouco decepcionado. Depois do tempo marcado, voltou e relatou ao mestre que a estrada era bem cuidada, que havia boas pessoas morando e trabalhando pelo caminho blá blá blá... e que agora ele estava pronto e preparado, então, para receber a chave da paz e da sabedoria. O mestre, respirou profundamente e pronunciou calmamente as palavras explicando que não era nada daquilo e que ele pilotasse de ida e de volta novamente pelo mesmo caminho tantas vezes fosse preciso para ver se havia algo importante a descobrir e que não voltasse até ter alguma coisa verdadeiramente relevante pra lhe dizer.

Ele saiu, já muito contrariado, decidido a anotar e catalogar tudo e ter todas as experiências que fosse humanamente possível pelo caminho. Iria, desta vez, mostrar ao mestre, e de uma vez por todas, que ou ele mereceria ser digno de ter a chave da paz e da sabedoria não mãos ou então o quê? Bem, viajou pelo mesmo caminho, ida e volta, todos os dias, registrou tudo. Por anos e anos se esqueceu de tudo o mais e se dedicou a cada detalhe da estrada, das placas, das pessoas que viviam por ali, os buracos e dos buraquinhos. Tudo. Ajudou as pessoas, envolveu-se tanto com elas que fundou empresas, escolas e até mesmo religiões. Tornou-se uma pessoa importante e reconhecida naquelas cidades no caminho. Escreveu o que poderia ser chamado de um tratado completo sobre esse trecho e esse lugar e sobre tudo o que construiu. Tinha fé absoluta que nada havia lhe escapado desta vez. Décadas trabalhando, construindo e filosofando. 

Numa manhã decidiu que já era tempo de voltar ao mestre e apresentar tudo aquilo que ocorrera, o que ele descobrira e comprovar todas as obras que realizara. Entregou ao mestre os livros que escrevera, os registros do que construíra, das propriedades e das instituições que fundara. Diante do mestre prostrou-se de joelhos em demonstração de humildade e esperou a confirmação da conquista daquilo que desde o começo era seu unoco desejo, a chave da paz e da sabedoria. Porém, ouviu estarrecido o mestre lhe dizendo que aquilo era muito bom e que era tudo maravilhoso, mas que ele não havia pedido isso, e sim que ele dissesse algo importante sobre aquele caminho. O discípulo jogou tudo pra cima, rasgou documentos, pisoteou os livros e, imensamente desiludido, foi embora com sua moto numa velocidade incrível e gritando que nunca mais veria o mestre novamente. 

Desistiu da busca espiritual que o fez perder tanto tempo na vida por nada. Na estrada outra vez, de repente, a moto começa a tossir e para de funcionar redonda. Ele examina e imagina que talvez devesse ser o carburador que provavelmente estivesse entupido. Empurrou a moto até uma sombra no ao acostamento da pista, tirou o carburador pra limpá-lo. Ao olhar dentro percebeu que realmente estava muito sujo e lembrou que neste tempo ele deixara de dar manutenção em sua moto. Esfregou entre os dedos a mistura de borra de gasolina e poeira que fizera o carburador entupir, silenciou suas reclamações e se perdeu em muitas reflexões. Algumas horas depois levantou a cabeça. Viu o céu azul com algumas nuvens. As árvores. Pássaros, formigas, lagartos, flores. Tudo ficou intenso de um momento para outro. 

Do fundo de tudo o que cintilava agora na sua frente, ouviu um som manso de risos que vinham do outro lado e percebeu algumas crianças brincando num pequeno riacho alguns passos abaixo. Lembrou-se do primeiro dia e da primeira viagem que fez a pedido do mestre e entendeu num clarão que tudo sempre foi é e será apenas mais um dia no paraíso. Entendeu que era apenas isso. Que não necessitava de chave nenhuma porque a porta esteve sempre aberta, escancarada. Entendeu que essa consciência acontece assim de estalo e que não era necessário tempo nenhum para ver isso, nenhum esforço para ver isso. Que o único tempo que ele precisou foi o que ele perdeu sem perceber que não era preciso tempo para ver isso, pois, tudo sempre esteve ali na sua frente, e envolta dele, à sua disposição. 

A essa altura o mestre, que o havia seguido, encosta sua moto ao lado da dele. Ele escuta motor da moto do mestre biker, batendo em marcha lenta, que parecia lhe dizer: - “tá tudo bem... tudo bem... tudo bem... tá tudo bem...” O mestre então dá com os nós dos dedos de brincadeira na cabeça do discípulo e diz: - “Vamos até Mococa?”















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