4 de jun. de 2023

Criança (poema)




Se daquela catástrofe toda

Provocasse algo realmente

Nunca mais esta felicidade

Poderia ainda ser a mesma


Noutro fim do mundo se viu

Nas nuvens deste temporal

E o horizonte era todo igual

O poema que quase existiu


Fosse aquela comemoração

A destruição que a precedeu

Seria isso tudo o que foi seu


No progresso deste colapso

Que jamais viveu na infância

É pra sempre aquela criança







Semiótica da dúvida eterna (prosa poética)




Semiótica da dúvida eterna


Signos pequenos estiveram sempre com medo de grandes significados. Todavia, se as significações não pudessem ser múltiplas, talvez, como uma significante estreita não dividiria tais soluções amplas, esta agarrar-se-á aos problemas medíocres.




Freak news (crônica poética)




"Freak news"


Não é a "fake news" que manipula, é o movimento dos "feed", coisa lá com que coisa. Talvez porque, enfim, seja este o esperado antídoto à filosofia. Porém, o que é veneno não promove a erradicação. Por isso uma nova síndrome: a da atualização. A idiotia natural acredita que um arquivo pode ser inteligência, mas não passará de um arquivo; e arquivos nunca imaginam o que fazer de si mesmos. Um lugar sem intuição é a "zombieland". Num exílio da alma. Iludem que o fim pode começar. Num mundo só de condolências sensuais e dessas outras comemorações mórbidas... Com o "soul" na lama.





Sorriso fútil (poema)




Fosse para ficar feliz não seria numa dessas fotos de sorriso fútil que ocupam todo o espaço que melhor seria da imaginação. 


Pudesse ser tão triste que ter o talento julgado desses medíocres com base do que se carrega no bolso que melhor seria pelo coração.




O novelo de Teseu (prosa poética)




O novelo de Teseu

A grande beleza do estilo está em sublimar o erro num acabamento impecável. Uma grande parte do que o artista faz não é dele. Por isso muitas vezes é tão contraditório ver uma obra incrível sair das mãos de uma personalidade canalha. Porque toda alma (a responsável por aquela maior parte da obra) é bondade, mas a vida desalmada é pura maldade, o artista se vê obrigado a ser um médium de sua própria alma. Isto é o porquê do movimento do artista que busca obsessivamente neutralizar o mal em si mesmo. Também é porque essas almas não suportam a densidade dos corpos, que precisem dos artistas para alcançar a toda a gente e lhes contar do amor. Porém, são apenas dois momentos únicos em que essa façanha anímica se torna possível: no processo duma obra artística inesquecível ou no espanto do que é à beira da morte eminente e está no entorno de sua tragédia. Por isso, de certa maneira, a humanidade tenha amado cada vez mais forte a arte, e produzido seus mais belos momentos, justamente quando esteve absurdamente desaventurada nos braços da guerra.





Mujica e Deus (poema)




Qual é a diferença entre o Mujica e Deus? Deus é reaça... nunca deu satisfação pra ninguém do porquê da maçã ser proibida... e ainda por cima expulsou logo Adão e Eva do paraíso... dois que estavam de boa e não tinham nada com a parada...ao invés de expulsar a serpente que era quem traficava na maldade no pé da macieira... já o Mujica...






Engano e verdade (poema)




Aquela mente congelada numa ideia sem nenhuma dúvida, acaba apagada em seu próprio engano. Somente um coração onde ainda fumega a incerteza, sabe como acender a fogueira da verdade.





26 de mai. de 2023

Coitado Poeta (poema)



O poeta é nada além dum pobre coitado

Que deuses decidiram por despedaçar

E tem um pedaço jogado em cada lugar

Desde o coração e a alma esquartejado


É andarilho de lembrança em lembrança

De tantos destinos sem dó arrebatados

Sonho, maldição e penitência misturados 

Exílio onipresente que nunca se alcança


De todas as guerras lhe exigem os cantos

De toda saudade que acalme seus prantos

Das cidades sempre a dançar apaixonado


Das odes e visões que ninguém acreditará

Do que passa planta para nascer o que virá 

Só, num pacto de vida e morte aprisionado




13 de mai. de 2023

Precies (conto/poema)




Precies


Duas coisas sempre andam juntas. Caminhos e crianças. Ou se insiste que os meios vão até as coisas, ou se entende que as coisas é que deveriam ir pelos motivos. Para que todos cuidem uns dos outros na jornada, o melhor atalho é cuidar muito bem das crianças desde a partida. Nessa vereda, até mesmo o errado chegará num lugar certo.




Deep was the night (conto/poema)




Deep was the night


And the devil came. When he came he brought his requirements and chose his own illusions. Poor kid. He is the most deluded of all. And the devil is gone. He took his sarcasm, as always losing his occasion to cheers himself again. And we fled to the sacred forest once more. We take our horn-handled knives, light the fire and go hunting. There the devil does not have his reign. From the depths of nature we built our hut. And there we begin our journey. True heroes again. And the spirit gave us awareness. And now we are alive. The wolves howl in the distance and we took care of each other until the end, and the creek makes its old gentle rumble and we can sleep over the clouds, the little stars and the wide holy universe.




Kando (poema)




Kando


Subjacente à iluminação da pintura perfeitamente laqueada, as engrenagens rodam pela graça de um óleo bruto que as unge. O pensamento, o sentimento e a ação fruem, alinhando a graça da intuição na divindade, sem passado e sem futuro, num instante que flutua no eterno.





Verdade (universo)




A verdade é tudo aquilo que ela não é.





A velha lenda (conto/poema)




A Velha Lenda

do Paraíso Perdido


Apenas sobraram uma flor, uma criança e um poeta. Que assim, ao desabrochar, de todas relembrasse, em formas e cores e perfumes, da absoluta geometria da vida. Que, ao sonhar destas infâncias, guardasse bem fundo o segredo do mistério mais antigo dos mundos. E que, no desenrolar do cordel libertário do eterno colar das galáxias, cantasse aos quatro tempos, e que jamais esquecesse, da rima das almas, nos versos do Espírito.





Autoria (poema)




Onde um ideal corrompe

É a compaixão que perdoa


O que a identidade aprisiona

Só a inteligência absolve


Quando o autoritário sucumbe

Começa a nascer a autoria




Nostalgia (universo)



A nostalgia é uma galáxia de saudades...




Viciosa Trindade (poema)




A Viciosa Trindade das Novas Novidades


Como o egotismo sempre se reconhece em sua própria substância ridícula, busca obsessivamente se esconder, dissimulado num falso inédito; a patifaria. Já na trapaça que rouba da cultura de todos, e é compulsivamente exposta como genialidade única, numa aparência de inovação simulada; a canalhice. Nesse fenômeno da essência do simplório, a cada ilusão de uma estreia fraudulenta, é covardemente ausentado de sua miséria mesma; a mediocridade.





Girovagando (poema)





Chiamate tutti i giovani

Giochiamo tutti insieme

Se occupiamo la stazione

Nessun treno passerà

Se ci sediamo sulle strade

Non passerà mica nulla

Chiamate i giovani di nuovo

E il mondo ascolterà di nuovo

Cammineremo lassù... laggiù

Cantiamo e facciamo solo ridere 

Dammi un bacio e un abbraccio

Urliamo ancora: Libertà!

Se ricominciamo nell'amore

Niente di bello morirà

Se ci fermiamo qui nel cuore

Nessun odio vivrà





2 de abr. de 2023

Oração da noite adentro (poema)



Desiste desta Tua perfeição

Desacredita daquela redenção

Esquece esta absolvição épica

Dos trovões e nuvens se abrindo

Com os clarões e os mortos vivos


De Teu sagrado silenciamento

Não reclamamos nem um pouco

A justiça cega, surda e ausente

Não blasfemamos em nada

Da Tua paciência conivente

Não ousamos duvidar

Deste realejo da salvação

Do rocambole de futuro eterno

Fogo no vento, cavalos e cavaleiros

Deste desperdício na miséria

Desta míngua nesta fartura

Da Tua obra de beleza canibal


Porém que um mínimo então urge

Antes de toda a parafernália final

Que menos disto um clamor inocente

Ilumina agora um ínfimo instante

Que seja só uma lasca de chama

Senão um cisco de uma farpa

Da menor fagulha que Te sobrar





Inframundo (prosa poética)



Naquilo que é uma espécie de poder subjacente, subterrâneo, algo subliminar no cotidiano, o que impressiona verdadeiramente não é a quantidade do resultado, mas a qualidade da dedicação. E daí aquele velho dilema entre bom e ruim, o bem e o mal, a maldade e a bondade, não está numa equação quantitativa técnica de objetos, práticas substantivas ou fatos consumados, senão, numa revelação qualitativa de sujeitos delirantes, absurdamente adjetiva, num ritmo anárquico cármico filosófico.





19 de mar. de 2023

O viço e o vício (poema)




A inteligência

Virtuosa

É a ponderação da certeza


A intolerância

Viciosa

É a negação da incerteza


A verdade esclarece

Onde a mentira convence

Aquele vil é refém

Onde o casto se abstém




12 de mar. de 2023

Nada sendo foi... (poema)




Antes era a solidão

Porque nada sendo

Sumisse na névoa

Vivesse das brisas

Cantasse no trovão

Voasse pelos mares

Sempre à deriva

Nenhuma pegada

Vontade alguma

É tudo agora porque

Dizia o que fosse

E foi... aquilo que via




10 de mar. de 2023

Manual prático (crônica)





Manual prático de proteção básica daquilo que você talvez gostaria de saber: 


a) Se um mesmo fato tem duas versões diametralmente opostas, as duas são falsas.


b) Refutações conflitantes servem apenas para abafar a discussão de um grande problema estrutural que as envolve.


c) Quanto mais forte é a propaganda de contraditórios aparentes, maior o acordo em alguma concordância fraudulenta dissimulada.


d) Uma polarização radicalizada nunca se resolve porque é baseada em narrativas axiomáticas que se sustentam somente pela denúncia da hipocrisia evidente de cada dos seus extremos opostos.




7 de mar. de 2023

São Mané Garrincha (poema)




São Mané Garrincha

Padroeiro das infâncias

Afasta a mediocridade

Que mais uma vez se avizinha

Aquela das decisões desiludidas

Que despreza o pensamento

E monta tudo ao contrário

Primeiro o fim depois o meio

E por último o começo

Aquela que por descrédito

Pelo acerto desiste 

E na contramão se precipita

E sem ilusão pela vida 

Corre além da conta por nada 

E atropela e mata e ri ainda

Você que de um avesso

Fez do movimento seu milagre

Você que desta vida torta

Desmentia nossa fatalidade de coxo 

Destruído em sacrifício bobo

Que possível seria tua maior graça

São Mané Garrincha nos livre

Da brasilidade esculhambada

Padroeiro da minha ingenuidade

Me faça chorar à toa de novo

Proteja-nos outra vez

De sempre esperar cair do céu

Proteja-nos desse mau agir

Que só depois que o céu cair

Proteja-nos outra vez

Em todos os sonhos de criança





28 de fev. de 2023

Na fossa mítica (poema)




Na fossa mítica da estatística


Como uma fruta esquecida 

Que apodreceria sobre a mesa

Se a inteligência não é natural

Se não é ela mesma cultivada

Nega toda uma vida na alma


Se o seu amor desidratado

Não alimenta e não fomenta

Se não vislumbrar o horizonte

Definha no medo e na ilusão


Desabrocharia na compreensão  

Mas não vai além do desprezo 

O alento profundo da compaixão 

Não enraíza sobre um simulacro


Qual revolução poderá fazer

Alguém que em si mesmo se esconde 

Que transformações verdadeiras 

Sem que a humildade cristalize luminosa 

Antes que a mente entre na demência total


Que artificialidade então seria possível

Se nesta senda deste seu buraco fétido

Retorna esta velha insensatez fascinada

Novamente se ilude na parede de pedra

Deste movimento de irrealidade sem vida

Que desprezaria todos os avisos ancestrais

Dos messias que regressaram a gritar

O real! Veja! A verdade não se arremeda!

Para num último sopro evocar salvação

Desta enganação narcísica danada

Que essa cacotopia diz ser o futuro

Maldade que desatava enfim do espírito





23 de fev. de 2023

Éden despejado (poema)



Éden despejado


A pior corrupção

é a da pureza

assim aliciada


A pior miséria

essa abundância

desperdiçada


A pior tragédia

a que já estava

tanto profetizada





14 de fev. de 2023

O Poder (aforismo)




O poder aposta sempre com um par de dados viciados. Um, esconde o número certo, o outro,o errado...




13 de fev. de 2023

O Moralista Enrustido (crônica)




O novo calhorda do século XXI (seja metido a secular ou divino, pois o bom só melhora, mas o ruim só piora) evoluiu. Para esconder toda a sua canalhice e manter-se a posar de bondoso e compreensivo, já dissimula os cerimoniais do julgamento e da condenação (que desceram finalmente ao senso comum como algo execrável). Porém, covardemente, como é de sua linhagem, continua a deixar bem evidente a sua paranoia para a acusação (em sua obsessão por defender-se de si mesmo, pois, já se sabe que aquilo que fará um grande malefício vindouro é porque já faz qualquer mal odierno). Mas, por um mórbido ritual, e aqui é como a prova reversa de seu poder nefasto, fá-lo-á agora pela liturgia da absolvição...




6 de fev. de 2023

Bago de Cateto (crônica)







 “Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamom.” Mateus 6:24


Eu gosto dos evangelhos porque é poesia pura do mais alto nível. Daquelas que séculos de tradução (e traição) não conseguem destruir. Eu acho. Bem, eu assisti uma dessas séries americanas que expunha o dia a dia de uma gangue de motociclistas. A estória deixava revelar que a tal gangue teve um início abnegado e voltado a defender uma pequena cidade de bandidos e malfeitores, mas que com o tempo, e a natural troca de liderança, assumiu um caráter contraventor e um tempo breve depois já adotava a criminalidade pesada mesmo, com tráfico de armas, drogas, exploração de prostituição e assassinatos. Além do que viviam da velha e conhecida escola do tipo olho por olho dente por dente. 


Eu não vi mais nenhum episódio porque detesto enredos em que criminosos são heróis e desprezo profundamente me apaixonar por eles, a não ser pelos que se arrependem e passam a combater a própria gênese. Por exemplo, prefiro um desenvolvimento estilo Tarantino em que sempre os maus-caracteres se dão mal... muito mal no final, e ainda, aquele que quer ‘sair dessa vida’ consegue e sai fora na boa (depois de sofrer bastante é claro). Bem, nessa série e neste único episódio, ao qual assisti, um homem havia estuprado uma garota. O pai da garota decidiu fazer justiça pela vingança bruta. Planejou e boquejou que iria capar e matar o cretino do estuprador. Foi até o chefe da gangue das motos e disse o que queria. Os membros da gangue acharam o desgraçado. 


Foram até um lugar ermo com o infeliz patético dominado em seus últimos momentos de vida e... o pai da garota, da menina que talvez estivesse precisando da ajuda do seu pai naquele momento horrível pelo qual passava, estava lá... acreditando estar também de todo preparado para a sua vingança justa de ódio, bem alimentado por milhares de justificativas. Na hora do sacrifício o chefe da gangue, óbvio, passou as honras ao pai, porém, o vingador paternal simplesmente não conseguiu realizar a proeza de extirpar, descaroçar, desarrochar, relaxar os bagos do cateto com uma faca de castrar curvada e doída... desde as bolas daquele desacorçoado ali rendido na sua frente até o começo da sua garganta num só corte profundo, sangrento e... peidou.  


Tremendo na tremedeira entregou o instrumento da justiça para o chefe machão. Este olhou na cara dele com uma puta raiva e disse que era muito engraçado que o pai quisesse uma vingança naquele estilo, que tinha gritado, berrado que iria matar o cara, mas que saiu vomitando, correndo para longe e que agora um outro é que teria que fazer aquilo que ele mesmo não tinha peito para fazer porque era um bunda mole de um bundalêlê... e que ainda saiu correndo e nem de ver era capaz? E sabiam lá que Gandhi havia dito que nessa pegada o máximo que teremos é um mundo de cegos (e banguelas). Mas, a gangue não adotava os depoimentos de Gandhi porque, até mesmo os brutos ali percebiam, seria uma imensa incoerência, pois, se alguém acredita e atua na violência é isso e o melhor para essa pessoa, por certa honra mental, que esta tenha seus heróis e que estes sejam bem violentos. Já se não é isso. Quais serão os heróis? Matar e amar?Tem alguma moral essa estória? Tem alguma coerência nessa estória?





3 de fev. de 2023

O Ritual Tosco (poema)



No grande salão do pulmão

Do corpo como um templo

A divindade cósmica adentra

Trazendo de longe toda a vida

Lugar da atávica religiosidade

Duma grande partilha amorosa

Onde é ungida a seiva da vontade

Que despejada no sangue cru

Chega até o sacro altar coração

Onde há então a pura consagração

No eterno sacrifício dos talentos






31 de jan. de 2023

O Buddha de Todos os Tempos (poema)

 


Quando morresse o Messias

Não quereria respeito algum

Quererá só um circo montado

Esperara no meio do picadeiro

Enquanto comece uma festa

Com todos os Rhythm & Blues

Que atravessava-se toda noite

Quem por querer cantaria

Quem não queira que não

Como ninguém mesmo fora

Chamem quem quiser iria

De manhã que se acabe com tudo

E queimá-lo-íamos numa pira

No epitáfio escrevei sem medo:

"Subiste a montanha sem cordas."






28 de jan. de 2023

O bushido de Tyke (crônica)




A vi uma única vez, numa primeira imagem, desfocada e brutalmente triste. Soube depois que seu nome quer dizer criancinha, mas também alguém que não se comporta de uma maneira geralmente aceitável. E eu sei, ela estava certa. Continuei a ver só até não suportar mais, bem logo depois do seu primeiro e único olhar. Na sua bravura e desespero, alucinadamente livre, em seu desassombro derradeiro. E ela me disse ali de toda a minha miséria humana. Com sua morte heroica e em seu urro de glória ancestral eu entendi toda a sua majestade e, num lapso de espanto, quem eu sou, o que eu nunca fui e quem eu jamais serei...





23 de jan. de 2023

A lesma e o cavalo (prosa poética)



O tempo é representado sempre na horizontal. Porém, isso é ilusório e só pode ser alegado pela invenção de alguma materialidade objetiva, que simula uma continuidade circularmente plana. Todavia, toda durabilidade revela uma melancolia, pois, se se pode encenar o espaço do passado e do futuro, por outro lado, essa pretensão se distancia da inspiração e da leveza vazia, duma metafísica subjetiva, do presente. Ou seja, na verdade o tempo somente age na vertical, através da reorganização de sua carga, de seu peso possível. Se o engano está na ilusão mórbida de uma lesma num rastro de limbo duma eternidade monótona que nunca acaba, o fato está, ao contrário, na crudeza de um tempo ativo como um cavalo que despeja sua carga de vitalidade, de momento a momento, em que uma outra eternidade, reversa, sem nenhuma relação com qualquer sequência, pois, porque nunca começou e porque nunca terminará, é uma descarga. Sem esse despejamento nunca existiria a cavalgada. O tempo não é uma linha contígua que se arrasta puxando o que já aconteceu e empurrando o que ainda acontecerá. O tempo não passou, não passa e nem passará. O tempo é sustentado, é escorado. Não se realiza no tédio ingênuo por esperá-lo, porém, na força bruta em o suportar.





21 de jan. de 2023

Ao bel-zebu (prosa poética)




O triste é quem mais se lembra da felicidade. Mas, seria belo se soubesse da importância filosófica da infelicidade, que é o bem, já que esta é a essência da alegria e da qual é impossível se ter consciência, pois, ser feliz é exatamente o estado de não saber que não se é... e, não passasse o infeliz a maior parte do tempo, e isso é o que torna sua sina a miséria espiritual, simulando não viver nesta, que é o mal... já que tanto mais entristecido mais espaço teria, se esquecesse disso, para abrigar a felicidade...






14 de jan. de 2023

O centauro sem cabeça (crônica)




Camus escreveu, em seu devaneio de um pós-guerra do bem triunfante (ou não), que numa comunidade de vítimas condenadas, como mais um dos fenômenos do absurdo, inclui-se também os seus próprios verdugos; o curioso porém, e apontava o filósofo, é que somente o carrasco nunca saberia claramente sobre essa mórbida qualidade mútua. Olhando bem atentamente para estes nossos dias, nesse pós-tudo de um grande mal finalmente apocalíptico, nem o algoz e nem o sacrificado conseguem mais saber de coisa nenhuma, numa ciranda de uma loucura surreal, e nem de nada mais; deliciam-se  na mesma fascinação pelo seu destino de besta anômica... e que se fodam (agora sim), simultaneamente e em tempo real conectados...






9 de jan. de 2023

desdelírio panutópico (prosa poética)



sabotaram a loucura, excomungaram a revolução; desalmaram a desobediência; sequestraram a rebeldia; o destino anárquico, numa inversão monstruosa, foi tomado do artístico, do porra louca, do bicho solto, do diabo... e agora é da baderna moralística, da selvageria pornográfica, duma razão em crise psicótica, duma ingenuidade estuporada; ou se afundam então num amontoado fragmentado e reverso de manutenção de sortes e imposição de azares, fechados na ilusão também fascista da tolerância litigiosa das identidades, na obrigatoriedade da aceitação mansa... ou negam um cetro a tal verdade e se elevam para uma coletividade, única e responsável, que partilha a sorte e mitiga o azar, aberta na equanimidade panculturalista comunitária; seja, enfim, a negação da moribunda utopia do controle total, porém, na afirmação, então, da realidade retro/libertária de uma antiutopia máxima...







7 de jan. de 2023

estrela cadente (poema)





o que passa daqui para adiante

tudo naquilo que se vê e sente

é tudo tão rápido e inconstante

só uma centelha incandescente

que num rastro de um instante

apaga como se estrela cadente





5 de jan. de 2023

pode ser... (poema)




pra quem perdeu nos dias

todos os primeiros da vez 

tem naqueles como diziam 

que quem morre ainda antes 

de cair profundo dum abismo 

antes de bater no chão da pedra 

que se morre mesmo do coração 

como se fosse a quase queda 

e sem saber nessa hora ainda

no saber de que se descobre vivo

tornar noutra chance de começar 

que poderia agarrar num galho 

daqueles dos desenhos animados 

que imitam a vida... pode ser...




o último desejo (poema)





o último desejo do poema moribundo

que de anunciação seria agora epitáfio

foi ser compreendido em seu instante

intacto na anatomia dos seus versos

e que fosse inútil dissecar as rimas

sendo a causa de um outro efeito

que estivesse de um mote, apenas isso,

como um velho rio é para seu leito

como o céu turqueza é para as nuvens

como a pedra na costa é para o mar

que o leitor solitário ficasse ali quieto

diante daquilo que viu na estrofe pura

pois, que na sua esperança derradeira

que de cada vez que lido se desvendasse

que da sua poesia nada nunca se explica

que fosse ele próprio a explicação de tudo





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