16 de jan. de 2014

A Rosa de Seis Pétalas (artigo/estética)



A Rosa de Seis Pétalas: Os Temas Primitivos da Alma Artística


A Rosa de Seis Pétalas







Esbocei, numa dissertação de mestrado em educação, a partir de explanações didáticas sobre os períodos da história da arte num curso de formação de professores, um cenário imagético em que figuram uma espécie de alinhamentos poético/estéticos inerentes às imagens artísticas. Eram como motes, noções bem estáveis que poderiam ser relacionadas às obras mais identificadas aos períodos históricos da arte logo na sua apreensão mais banalizada (arte primitiva, arte antiga, arte medieval, arte renascentista, arte moderna, arte contemporânea). Apropriei-me dessa descrição para que a maioria dos participantes tivesse acesso imediato a esse conhecimento, o que permitiria uma identificação instantânea com os significados, justamente por ser um senso comum, para que depois nos aproximássemos destes mais profundamente.


Desenvolvi, a partir disso, uma abordagem da obra artística e do seu processo de criação, focado na possibilidade de elaboração de ações educativas, que procura reconhecer uma qualidade interna e uma externa que cada imagem conserva, assim como dos processos que as criam, e que chamei de disposições poético/estéticas[1]. Influenciado inicialmente pela assertiva de James Hillman: “o espírito está nos picos, a alma está nos vales”[2], percebi que ao observar as obras, e mesmo ao desconstruir seu processo de criação artístico, aparecem elementos de uma face interna, que revela um impulso poético subjacente e que julguei ligado a alma, e uma externa, numa manifestação estética, que associei estar ligada ao espírito. Estes dois fenômenos, juntos, têm o potencial de expor o tema psicológico envolvido no fazer artístico e, por consequência, na obra. Este tema relevante estaria entre essas fronteiras, no campo que vai desde a pátina de uma superfície estética materializada até a pulsação de uma profundidade poética. Do espírito do mundo, manifesto, destemido e iluminado, à alma rústica, densa, protegida e obscura. 


A partir desse contexto inicial é que foi possível, então, definir os conceitos do arquétipo que apresento aqui, associado à uma minha intuição acerca do que entendo como os temas primitivos da alma artística, evocada através de uma leitura de Gaston Bachelard[3], com os quais o imaginador[4] deve se encontrar ao se movimentar pela sua imaginação num desejo atávico, e inegavelmente arquetípico, pelo seu crescimento, seu desenvolvimento espiritual. A partir da profunda provocação contida nessas sugestões dessa alquimia rústica, primeva, absurdamente simples[5], porém, aparentemente impenetrável, à invocação para uma espiritualidade incógnita, anônima, tão antiga que nem mesmo é possível datá-la, comecei a visitar o interior de meu imaginário. E ali foi possível encontrar, em sincronicidade, como já alertava Carl Jung, o que espantosamente era na verdade o próprio imaginário humano vivo, a memória de um mundo sem nenhuma divisão, tudo e todos estavam ali.


Renomeado, retificando seus valores, descrevi as potências da cada uma das coisas que encontrava, para que o mundo fosse recriado por mim no mesmo ritual de séculos incontáveis dessa experiência humana mitológica. Neste momento incomparável, que nunca mais estanca depois da decisão fatídica a esse mergulho no desconhecido, encontrei minha pedra oculta e consegui vislumbrar sua face mitológica. Como ali tudo é sempre eterno, fora do tempo do conhecido, reescrevi seu nome para partilhar com o resto daquilo que sou, os outros humanos e também o mundo. Apresento a minha visão do que aprecio como um arquétipo que pode ser considerado como muito significativo e importante para qualquer trabalho que se dedique ao enriquecimento psicossociológico do imaginador contemporâneo: a rosa de seis pétalas.


Este contexto desvenda, enfim, os seis temas primitivos que orbitam essa alma artística, nascidos daquelas duplas de disposições poético/estéticas que os desencadeiam, sendo, então, assim demonstrados: o ritmo e ritual geram o tema primitivo do Tempo; a reflexão e mitologia o tema do Divino; a devoção e religiosidade para o Sacrifício; a identidade e humanidade o da Verdade; a dinamização e sociedade para o tema primitivo do Ser; a equanimidade e panculturalidade geram o tema da União. Acredito que este arquétipo constitutivo, do que chamo de uma visão da alma artística, poderá amparar e ampliar meus próprios estudos, pesquisas e ações na área da educação estética e da reeducação psicológica, social e cultural, assim como produzir e disponibilizar saberes e conhecimentos para pesquisadores e profissionais também envolvidos nesta temática e nesta área de atuação.


O objetivo principal desta exposição é demonstrar a veracidade, a necessidade e a aplicação destes seis temas primitivos, como uma visão inédita e acessível da alma artística em seus processos de criação. Nomeei-os como a rosa de seis pétalas, numa associação livre entre a qualidade reveladora desses temas primitivos, a sincronicidade de serem também seis aqueles períodos da história da arte, e a própria simbologia de transmutação que acumula a rosa de seis pétalas como uma das principais e mais fundamentais imagens da tradição da alquimia.


Seu sentido psicológico é importante aqui porque é uma referência metafórica ao trabalho da busca do conhecimento simultaneamente superior e profundo de si mesmo, inerente ao seu processo de libertação espiritual[6], que acredito se dá através da vivência poético/estética do processo criador da imaginação, desde uma resistência intuitiva a se entregar às prisões da personalidade comprometida pelo sofrimento psicológico até o mais superior e espiritualizado anseio por uma vivência de excelência filosófica.





Referências Bibliograficas:


BACHELARD,G.(1999).A Psicanálise do Fogo.São Paulo:Martins Fontes

CARVALHO,J.J.(1995).Mutus Líber, O Livro Mudo da Alquimia.São Paulo:Attar

CATANI,F.H.(2011).Uma Visão da Alma Artística.Mestrado.Campinas:FE-Unicamp

HILLMAN,J.(1983).Psicologia Arquetípica.São Paulo:Cultrix


JUNG,C.G.(2002).Sincronicidade.Petrópolis:Vozes

PLATÃO(2010).Teeteto.Porto:FCG





[1] “Assim, relacionei uma estética de ‘ritual’ ao um impulso poético de ‘ritmo’ principalmente nas imagens e no contexto atribuído ao período da chamada arte primitiva. Uma estética ‘mitológica’ a um impulso de ‘reflexão’ poética que estavam mais evidentes nas imagens e contexto da chamada arte antiga. Uma estética de ‘religiosidade’ com seu constante exercício poético de ‘devoção’ ocorriam de forma mais aparente no período dito arte medieval. Uma experiência estética intensa de ‘humanidade’ que sugere uma consciência de ‘identidade’ poética esteve sempre claramente evidente nas realizações amplamente divulgadas da chamada arte renascentista. Uma estética focada na construção da ‘sociedade’ que se esforça para a ‘dinamização’ de significados poéticos surgia com maior força nas criações da arte moderna. E, finalmente, uma estética de ‘panculturalidade’ amparada por uma determinação de ‘equanimidade’ poética era mais potente nas situações artísticas do que comumente se chama arte contemporânea.” CATANI,F.H.(2011:28).Uma Visão da Alma Artística. Mestrado.Campinas:FE-Unicamp.


[2] HILLMAN, J.(1983:15).Psicologia Arquetípica.São Paulo:Cultrix



[3] “Com efeito, as condições antigas do devaneio não são eliminadas pela formação científica contemporânea. O próprio cientista, quando abandona seu trabalho, retorna às valorizações primitivas. Seria inútil, portanto, descrever, na linha de uma história, um pensamento que não cessa de contradizer os ensinamentos da história científica. Ao contrário, dedicaremos uma parte de nossos esforços a mostrar que o devaneio não cessa de retomar os temas primitivos, não cessa de trabalhar como uma alma primitiva, a despeito do pensamento elaborado, contra a própria instrução das experiências científicas.” BACHELARD, G. (1999:5) A Psicanálise do Fogo.São Paulo:Martins Fontes



[4] Nomeação dada por mim ao caráter fundamental do ser humano atual, contemporâneo (CATANI,F.H.-2011. Uma Visão da Alma Artística. Dissertação de Mestrado. Campinas:FE-Unicamp). Esta perspectiva afirma aqui uma qualidade humana muito importante para este trabalho, a de que este ente humano é hoje, antes de tudo, um imaginador. Aqui também o caminho para a compreensão desta qualidade específica começa a partir das reflexões de James Hillman: “O cultivo da alma é também descrito como imaginar, ou seja, ver e ouvir por meio de uma imaginação que enxerga a sua imagem através de um evento. Imaginar significa libertar os eventos de sua compreensão literal para uma apreciação mítica. Cultivo da alma, neste sentido, equipara-se com des-literalização; aquela atitude psicológica que suspeita do nível dado e ingênuo dos acontecimentos e o rejeita para explorar seus significados sombrios e metafóricos para a alma”. HILLMAN,J.(1983:55). Psicologia Arquetípica. São Paulo:Cultrix



[5] Esta referência à Alquimia surge já nas minhas primeiras iniciativas de reflexão sobre o tema da alma, inspiradas numa obra imagética muito especial: o Mutus Líber, o livro mudo da alquimia (CARVALHO,1995), e principalmente em sua particular qualidade de indicar aspectos psicológicos do imaginário poético humano, que ao mesmo tempo mostra uma beleza artística incomum, materializados em placas para gravura em metal que descrevem os símbolos e os procedimentos dos fundamentos iniciáticos do trabalho alquímico filosófico. Estas ilustrações e o ensaio que acompanha a edição elencam os mais importantes termos, proposições metafóricas e arquetípicas da alquimia, e é peça fundamental para a elaboração em meu trabalho dos sentidos de uma concepção de alquimia psicológica. Este tema me interessa essencialmente por seu inusitado aspecto de singularidade, simplicidade e primitivismo psicológico em sugerir que o desenvolvimento espiritual é possível à todos os seres humanos irrestritamente como, por exemplo, está implícito no V.I.T.R.I.O.L. “Visita Interiora Terrae Rectificando Invenies Occultum Lapidem”. Explora o interior da terra. Retificando, descobrirás a pedra oculta. Esta é uma fórmula anônima célebre entre os alquimistas e que é a indicação do primeiro passo, uma ordem fundante da história insondável da Alquimia, mas, a tomo aqui me aproximando de seu aspecto filosófico, poético e metafórico de sugestão e chamamento a uma vivência de libertação, daquilo que acredito seja e que defini como o principal problema psicológico humano: a relação entre o medo e a ilusão (CATANI,2011:15), e ao trabalho de desenvolvimento e de crescimento pessoal. A realização alquímica que admito me sugere mais uma realização espiritual, de encontro espontâneo e intuitivo com a rusticidade da alma, do que um sistema de técnicas laboratoriais complicadas que são historicamente associadas ao desenvolvimento das ciências exatas. O momento da proposta da Alquimia que interessa aqui é, então, apenas o instante exato em que “Na noite escura o jovem buscador sonha. Os anjos o despertam para que dê início ao trabalho da Grande Obra” (CARVALHO,1995:38). Proponho que este é o grande instante psicológico humano, o resto vem depois.



[6] O desenvolvimento de uma definição de processo de libertação espiritual, o que também representa uma introdução fundamental à metodologia constitutiva das proposições deste meu trabalho teórico/prático de ação educativa, tem sua gênese e é subsidiada aqui pelas descrições atribuídas a Sócrates (PLATÃO.2010.Teeteto.Porto:FCG), em Platão na obra Teeteto, acerca do método socrático da maiêutica: o trabalho de trazer a alma humana à luz. 























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