16 de jan. de 2014

Musicalidade/Expressão Corporal/Escola (ensaio)




Encontro com a musicalidade



É muito importante, quando estamos diante da iniciativa pedagógica da implementação da educação musical na educação básica, diferenciar uma compreensão funcionalista de música e, por outro lado, um conceito poético de musicalidade. Embora nunca sejam necessariamente ênfases contraditórias, e muitas vezes, ao contrário, complementares, uma abordagem baseada na formação cultural humana precisa deixar inicialmente de lado a preocupação com a execução técnica mecânica e a habilidade de raciocínio prático para envolver os participantes a se aproximarem da linguagem musical, do devaneio sonoro, enquanto uma intuição poética que pode se materializar de incontáveis maneiras numa expressão estética específica. 


Vejo, então, ao elaborar essa diferenciação entre estes dois momentos da possibilidade de aproximação ao universo da música. Primeiro a música, que na sua acepção contemporânea, muitas vezes tende a ser entendida apenas como aquela estrutura organizada de conhecimentos, estabelecida em inúmeras convenções, regras, técnicas e escritas próprias, que visam normatizar e constituir uma atividade humana profissional que exige estudos e aperfeiçoamento constantes, para que possa acontecer o domínio desses elementos e a subsequente apresentação formalizada e profissionalizada de seus resultados. Depois, a musicalidade, que é uma qualidade inerente a todo ser humano. Está ligada à vivência e à experiência sensorial de um fenômeno que é em si mesmo a capacidade humana de criar sons e ritmos que podem ser tanto representações de pensamentos e emoções como influenciar a nossa atitude, consciência, e até mesmo nossa expressão corporal. É um impulso que nos envolve espiritualmente com o mundo em que vivemos, no sentido filosófico do termo espiritual. 


É entendido desta maneira, antes de tudo, uma herança cultural, tanto consciente como inconsciente, de toda a humanidade e que pode ser cultivada e ritualizada em nosso cotidiano para o enriquecimento do desenvolvimento do ser humano em geral o que, claro, não pode faltar à formação das crianças. Numa abordagem que promove a construção dos processos criativos, a musicalidade, será expressa a incorporação da vivência musical e esta será, então, mais profícua, pelo fato de que os processos de subjetivação, ou seja, dos processos em que o indivíduo usa para incorporar e se apropriar da intuição musical e do seu apreço por essa qualidade humana da musicalidade, serão encontrados em si e por si mesmo. O cultivo da musicalidade e a felicidade de seu encontro é também uma melhor preparação ao domínio posterior de técnicas mais elaboradas e será assim muito mais relevante do que a demonstração de execução habilmente mecânica que, principalmente nestes momentos iniciais da educação básica, na maioria das vezes, é ainda incompatível com a condição dos sujeitos da educação básica, que estão mais a maravilhar-se com o fenômeno da musicalidade do que com as performances dos músicos.


Esse é o caminho proposto para uma educação musical: Cultivar e organizar a aproximação das pessoas com a musicalidade do mundo à sua volta, de uma maneira ampla, completa, para que essa linguagem seja incorporada e apropriada pelo participante na sua construção como cidadão e na sua formação de princípios e de sua consciência humanizada, e não apenas parcialmente enfatizada como uma capacidade motora, técnica, diante de uma ambição profissional. Para tanto, é imprescindível que essa aproximação se dê através de alguns elementos e fundamentos que promovam o despertar da musicalidade latente em todo ser humano. Enumero alguns elementos que considero fundamentais num processo de iniciação: Toda e qualquer apresentação e execução deve ser totalmente acústica (no entanto alguns trechos gravados podem ser inseridos como complemento). Por este motivo o canto é indiscutivelmente imprescindível. Com isso, uma iniciativa de educação musical que não apresente em primeiro lugar um coral, está totalmente fadada ao insucesso nessa abordagem. Integrado ao coral deveriam ser utilizados os pequenos instrumentos de percussão (que podem ser inventados com os objetos mais variados); Os instrumentos sonoro percussivos como os sinos, os berimbaus, as kalimbas, xilofones e os instrumentos feitos com materiais inusitados como canos, peças de ferro, etc; Os instrumentos de sopro artesanais simples como apitos e flautas. E, é claro, os violões e qualquer outro instrumento de corda acústico são indiscutivelmente necessários. 


A partir disso o encontro com a musicalidade deve ser agradável, divertido e acordado na medida do possível com os participantes, mas nunca coercitivamente obrigatório. Com isso é preferível organizar oficinas, laboratórios, performances e brincadeiras curtas, que valorizem mais um trabalho de elaboração extenso e uma mostra pequena, do que, como comumente é realizado, em apresentações que se esgotam em parecer formais, mas muitas vezes com um trabalho de elaboração curto e corrido, às pressas, numa apresentação grande e enfadonha. 






Expressão corporal artística






Embasado nas mesmas proposições explicitadas sobre uma abordagem poético/estética para a educação básica e consequentemente para os processos de formação musical, uma proposta para o desenvolvimento e o enriquecimento da expressão corporal na educação básica deve encontrar seus recursos nas formas mais artesanais dessa matéria. Para tanto, acredito que o teatro é uma das formas de arte mais significativas para a formação cultural do ser humano. Ninguém poderia ser excluído de um encontro com essa maravilhosa oportunidade de expressão e desenvolvimento. Não é possível viver como um ser humano e não fazer parte do teatro de alguma maneira. O ser humano que não tem a oportunidade de se encontrar com o teatro é um ser humano deficiente e sofre muito por isso e, assim, toda a sociedade sofre também. Porque o teatro nos dá a possibilidade insubstituível de conhecer nossa condição humana. Dá-nos a medida e a escala de nossa alma. É artesanato espiritual. Manufaturado no ritmo de nossa alegria e de nossa tristeza. 


O ponto de partida para qualquer iniciativa de expressão corporal que espere desenvolver a autonomia dos participantes para que sejam fortalecidas as bases de uma posterior dedicação ao trabalho artístico ligado ao corpo e seus movimentos e possibilidades criativas é a liberdade. Tentar encontrar na própria vivência cotidiana de cada um os movimentos que possam sugerir significados e intuições sobre a poética do corpo e sua expressão. O teatro é importante, pois, não se trata do movimento pelo movimento. É importante que ocorra um engajamento filosófico, político para que esta atividade esteja vinculada aos principais sentidos, significados e apreensões da arte contemporânea. É preciso que haja algo a ser dito. A expressão corporal que é dinamizada no teatro é linguagem muito potente para o ser humano entender sua condição e seus temas são a revelação de seus mais sutis necessidades existenciais. 





Porém, é imprescindível que aqui também seja valorizada a situação do processo criativo do teatro e isso somente é possível se o trabalho é realizado dentro de um espaço físico que disponibilize os elementos materiais da teatralidade, é absoluramente necessário que o trabalho seja realizado inserido na arquitetura de um teatro real com toda a sua parafernália. É no exercício e no fazer teatral rústico, básico e primitivo que o ser humano vai fortalecer seus principais momentos, toda sua humanidade estará ali. A voz, o corpo em expressão, os princípios, a moralidade, a emoção. A elaboração e os trabalhos específicos de criação no teatro são um exercício completo para a humanização. Mas há um problema quando as atividades realizadas normalmente focam muito nas apresentações, geralmente porque sempre existe um compromisso e uma preocupação paranóica com os resultados, com as provas de que realmente está sendo feito algo aproveitável. Isso pode atrapalhar o desenvolvimento dessa qualidade anímica tão fundamental para a formação humana. Com essa preocupação em deixar a liberdade criadora sem pressão é possível desencadear um bom trabalho paciente e delicado que pode levar ao encontro de um alinhamento entre as principais qualidades do ser humano, tanto físicas quanto espirituais, podendo provocar aquilo que mais profundo consegue manifestar a alma artística humana na nossa vida.








arquivo/archive/textos/texts