28 de fev. de 2014

samba enredo (crônica)







Na cabeça deles tinha um samba enredo repetido, um enxerto. Uma espécie de prótese, um calço, que traduzia tudo. Assim, nunca havia conversa de verdade, pois, tudo deveria ser decodificado para o compreendedor automático deles, eliminando o espanto da dúvida fulminantemente. Concordo... não concordo... concordo... não concordo... concordo... não concordo. Aprenderam isso desde crianças em suas escolas e no dolorido moralismo familiar que dissimulava a masturbação. Cada olhar, cada chiado, palavra, letra, todo significado era rapidamente transcrito para a comodidade da sua visão embotada, cagona, formada na padronização da idéia congelada, na constante busca paranóica que inventa antídotos de acomodação ideológica. Um provedor de sedação fabricador de certezas imunes ao silêncio, que sempre os fazia derramar seu próprio, próprio mesmo, que, simulando uma gentileza azeda e pontuda, empurra a intuição para o entulho da memória. Nitidamente dialogavam consigo ouvindo ecos, eternamente levantando cartazezinhos de grandes nomes e mestres daqui e acolá que lhes davam a sopa de razão. E, se por breves instantes dessem atenção a algo, era apenas e tão somente para reafirmar e reafirmar e reafirmar reafirmando mais uma vez o que já tinham como correto, concordado, decorado, cimentado e calcarizado no muro de sua mente fossilizada por acreditar. Nenhuma sensação de confusão comum à reflexão libertária deveria ficar a deriva, sem que fosse instantaneamente eliminada pelo fuzilamento do blá blá blá. Diziam-se dispostos a tudo para emancipar os empobrecidos do mundo, os desiludidos e os inconscientes, mas incapazes de perceber a servidão e a submissão sutil a que se entregavam cotidianamente. Pensavam, sem nenhum senão, que os heróis verdadeiros que a todo instante citavam os aceitariam sem pestanejar, e os bajulariam pelo simples fato de que eles publicavam suas frases, seus testemunhos retalhados e esquartejados puxando seus sacos pelo seu único benefício, utilidade e titulação. Embora talvez fossem eles mesmos os primeiros a serem escorraçados de uma discussão, de um momento de caminhar tranqüilo ou mesmo de uma mesa de bar se estivessem por ali a mendigar as esmolas de sua subserviência intelectual, de sua patética dependência psicológica, de sua demência domesticada, bem vestida e perfumada. Como se dissessem estarrecidos... Segundos antes de sucumbirem num redemoinho de assuntos importantes que nunca fizeram parte de suas vidas: “mas eu citei você!” 






arquivo/archive/textos/texts