O Viço e o Vício
"For canker-vice the sweetest buds doth love..." William Shakespeare¹
Na batalha entre os modelos uma visão suspensa é impossível. A consciência de escala é a única saída pacífica. Um modelo é em si mesmo um fragmento da superfície e, assim, enxerga raso e fragmentariamente. A escala é abrangente, polissêmica, complexa e diversamente profunda. Como nos diz o poeta: "os vícios mais apodrecidos amam as mais doces flores em botão". Alguns os veem como um desvio factual de caráter, intencional, pois esta é sua forma mais aparente, sugerindo modelos com seu elenco de punições como solução. Alguns outros já observam que no vício há uma dor, inconsciente, como uma característica fatídica que, porém ainda num olhar superficial, deve ser o objeto da análise e propõem algum modelo de mitigação e de sublimação da mesma. O que estas primárias aproximações não entendem é a perspectiva do próprio adicto dentro da escala humana, ainda o veem somente externamente, mas é importante que o próprio adicto um dia reflita, o descubra por ele mesmo e o diga. O tema central do vício, muito antes de um mau caráter ou de uma dor, embora se desenvolva neste um caráter ruído e um sofredor exaurido, é a decepção, como um desejo espiritual traído, uma aspiração falida, uma expectativa furtada ou um talento fracassado. O desprezo por si mesmo e por todos, toda essa dor e sofrimento é um emboloramento, é apenas uma pátina que se cria envolvendo esta decepção, ainda assim para protegê-la, porque é na própria decepção que está a essência da personalinade tentando o alinhamento com a alma, pois é somente o que um dia foi viçoso, mas que não foi cultivado, que deteriora em algo vicioso. Sendo que esse vício, na dor e no comportamento que provoca, é o esforço intuitivo e instintivo para entender aquela decepção, revivendo-a constantemente, na esperança de revelar à consciência qual qualidade anímica foi decepcionada. O vício é já a agressão e a dor em si mesmo, como resultado daquela decepção incompreendida. Então, para adotar aqui a perspectiva de escala, não se descarte nada e se comece perguntando o porquê do vício, depois o porquê da dor e, finalmente, se busque a pergunta que está no encontro com a pequena fratura anímica de uma decepção ignorada, de uma virtude que ali se perdeu e será redescoberta, que passará a ser uma parte realinhada, na salvação de seu sentido retomado na lembrança do exato instante anterior ao seu colapso, em que se revelará toda a delicadeza de uma alma que repreecontra sua vocação e seu destino.
1-"Sonetos" de William Shakespeare. Tradução de Jorge Wanderley (edição bilíngue, Civilização Brasileira, 1991. Soneto 70.