A Soberania da Compaixão Flácida e A Ditadura da Sobriedade Hipócrita
“O Buda, a Divindade, mora tão confortavelmente nos circuitos de um computador digital ou nas engrenagens de uma transmissão de motocicleta quanto no pico de uma montanha ou nas pétalas de uma flor. Pensar de outra maneira é aviltar o Buda, o que significa aviltar-se a si mesmo.” Robert Pirsig¹
O desentendimento humano atual não é mais pela incompreensão insuperável entre as línguas, mas pela mesma situação babélica, porém, entre os modelos ideológicos. Estes modelos se tornaram linguagens que já não se traduzem entre si, não mais por escolha, senão por uma identificação fragmentária que se autoimpõe a alienação, principalmente, porque a negação total do outro modelo exige que se afirme arbitrariamente o próprio modelo, perigosamente, incluindo todos os seus erros e as suas falhas. Esta condição turva uma possível visão suspensa, que somente uma consciência de escala, que pode ser entendida como uma perspectiva em que se observa a base verdadeira existente em todos os modelos, senão pela simples percepção da absoluta interdependência entre as pessoas, pela premissa filosófica de que a verdade é onipresente e pertence a todas as coisas, possibilitando a integração complementar destes numa ação complexa que superaria os entraves que bloqueiam a convergência entre os modelos. A partir da compreensão geral desta espécie de nova realidade cultural, um dos seus fenômenos muito preocupante, que é pertinente para o entendimento deste drama entre afirmação de modelos e a implacabilidade da escala, é em relação ao tratamento que se dá ao alcoólatra e o adicto, principalmente àqueles que acabam vivendo na rua.
Está cada vez mais comum ver pessoas defendendo e, muito agressivamente, ao lamentar os resultados do movimento antimanicomial, desejando a retomada da internação tipo manicômio como a melhor solução para moradores de rua alcoólatras ou usuários de drogas. E muitos destes mais intransigentes têm, aparentemente, um certo acúmulo de algum conhecimento e, é possível dizer, são letrados até. Ao mesmo tempo, muitos dos que discordam resolutamente sobre uma internação mais restritiva, o fazendo apenas superficialmente apesar da também aparente erudição, parecem não ter uma ideia muito clara do que seria possível fazer, efetivamente, além de tentar melhorar apenas paliativamente a desgraça desta população, mantendo os espaços de aglomeração sem nenhuma dignidade, distribuindo somente um mínimo de recursos, o que muitas vezes até mesmo contribui para o fomento de uma subcultura nascida do seu precário contexto social.
Há muitos casos de reabilitação através de programas de acolhimento que preveem afastamento temporário do convívio social, mas que não se limitam a simples espaços de confinamento e abandono, assim como existem programas abertos e sem previsão de internação, que são históricamente eficazes sem escorregar numa permissividade cúmplice e irresponsável. O problema é que, por vários fatores, muitas destas iniciativas de ambos os modelos, não funcionaram bem, o que hoje já é possível analisar, porém, os casos de programas mal aplicados, mal desenvolvidos, não deveriam servir para invalidar o princípio do trabalho de recuperação, de reabilitação e de reintegração em si. Quando se busca soluções observando a escala do problema e não apenas a crítica, a negação e a substituição de modelos que, fragmentariamente ideológicos, não polissêmicos, ainda não chegaram efetivamente ao menos a iniciar a resolver este drama social, seria fundamental se dedicar a equilibrar e integrar as propostas, entendendo as suas bases verídicas, num grande esforço para as convergir, pois, talvez se possa encontrar soluções mais efetivamente compassivas do que aquelas que, ou apenas permitem e aceitam a degradação ou tentam criar campos de concentração de exclusão.
É importante então buscar, antes de tudo e por princípio, a concordância e o consenso por um bem comum entre modelos e, ao contrário de refutar os erros e junto eliminar os acertos, acolher prioritariamente os acertos e desprezar os erros como a única maneira para que este movimento possa realmente existir. Assim, a própria energia dedicada ao acolhimento dos acertos faria mitigar a importância dos erros. Dois exemplos reais que provam esta possibilidade, um primeiro, numa iniciativa totalmente aberta e não prevendo afastamento social, é o fenômeno de Narcóticos Anônimos, NA, um movimento social global de recuperação baseado nos 12 Passos e 12 Tradições, oferecendo apoio mútuo a dependentes químicos sem distinção de droga, raça ou credo. Fundado nos EUA em 1953, que se expandiu para mais de 140 países, com milhares de grupos autônomos e autogeridos que operam sob princípios de anonimato, solidariedade e espiritualidade, promovendo abstinência e reintegração social através de reuniões presenciais e até mesmo virtuais, literatura traduzida em dezenas de idiomas e uma estrutura descentralizada sustentada por voluntários que não aceita subsídios externos. Outra experiência, esta dedicada a um programa que prevê internação, é a Simple Promise Farms, situada em Elgin, Texas, que é mais do que apenas uma fazenda em funcionamento, é uma proposta de esperança para pessoas em recuperação do vício em drogas e álcool. A experiência gira em torno da criação de um ambiente ativo e voltado para a comunidade, que inspira senso de responsabilidade e auxilia na recuperação. Combina métodos tradicionais de recuperação com abordagens inovadoras, como agricultura terapêutica e terapia assistida por animais, em parceria com a Ranch House Recovery e organizações locais. Essa combinação promove um espaço alternativo acolhedor, que não prevê um processo diretamente imerso na sociedade, porém, propício à cura e à transformação positiva. A iniciativa é dedicada a apoiar a comunidade em recuperação, onde a fazenda oferece oportunidades de hospedagem e trabalho significativas para aqueles em recuperação inicial e também assistência financeira para vida sóbria, saúde mental e atividades comunitárias focadas na recuperação com esforços visam capacitar indivíduos a fazer escolhas de vida transformadoras, até que esta pessoa possa se reinserir socialmente em segurança.
Tanto os modelos de intolerância irredutível ou os de tolerância complacente se embatem sempre nas suas abordagens, porém, ambos têm errado nas suas aproximações e o que elucidada esta reflexão é que o problema continua grande e constantemente aumenta. Na própria crítica de cada modelo ao seu suposto contraditório se revelam as incongruências de suas propostas. Por exemplo, na racionalização dos intolerantes mais endurecidos ao acolhimento, é frequentemente dito que este mantém uma tutela prejudicial, porém, é a sua própria ideia de afastamento total da sociedade que cria uma tutela absoluta. Já na relativização dos tolerantes, com a recusa intransigente da intervenção, acaba por abandonar ainda mais aqueles que, de uma maneira ou de outra, são impotentes na organização de sua vida pessoal e sofrem a imposição de um contexto brutal. Ou seja, ambos, ou até mesmo uma combinação dos dois elementos é que o que prejudica e atrasa a recuperação, a reabilitação e a reinsersão. Se os modelos são intrangigentes desde o início entre si e cada vez mais se repelem e se afastam, é exatamente este distanciamento que é o maior fator do fracasso de ambos, pois, torna insustentável a sua própria manutenção e existência, acabando por insistir exatamente naquilo que um ataca no outro, aumentando a profundidade das suas falhas, fomentando as suas contradições insuperáveis. Para melhor olhar esta dicotomia trágica, da condição já dramática deste contexto, permitindo florescer o espaço social e cultural para uma solução abrangente, talvez seja a aproximação pela compreensão da influência da escala sobre os modelos que torne possível entender o conflito profundo desta relação, pois a escala é, ao mesmo tempo, antes pela sua incompreensão, o que provoca a colisão dos modelos quando estes se alienam e, pela sua compreensão, o que disolve a contradição entre os modelos quando estes estão dispostos a tanto. Finalmente, aqueles dois exemplos mostram exatamente aquela observação da base de verdade que está dentro das duas situações, que é fundamental, pois até mesmo a constatação dos próprios erros é um movimento da verdade. Esta atitude de resgate do verdadeiro seja onde for é, por si mesma, a evocação da consciência escalar, que terá por impulso na sua própria força o vetor de transformação da crise modelar, ampliando e criando novas oportunidades honesta e humanamente comprometidas tanto com uma sobriedade compassiva quanto com uma compaixão sóbria.
Pirsig, R. (1984). Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p24