A Crônica Abandonada da Demolição
Eu nasci num teatro, mas foi durante uma tragédia, a da sua destruição. Porém, na sua agonia, eu vi os grandes cara a cara, das coxias inventadas, dos camarins improvisados, da entrada pela rua de trás, enquando o Don Quixote bêbado, meu pai, refazendo tudo num tablado de mesas de bar, tentava salvar o palco. Para mim, criança, eram como eu, só que maiores. Estavam brincando, nunca duvidei que aquilo era onde tudo começava. Mas dos entulhos, tudo se danou, acabou, nas nuvens de chumbo. Num dia, alguns anos depois, sentei pra ver uma entrevista, porque adoro entrevista. Era uma repórter novinha, ela estava ansiosa e eu também. A entrevistada seria uma das divas do teatro brasileiro. Num ponto, a mocinha jornalista juntou coragem e pediu para a matrona que desse uma mensagem para os mais jovens, os amantes do teatro. Foi um dos dias mais tristes das entrevistas que eu via. Ríspida, a rainha disse que desistíssemos, abandonássemos nosso sonho idiota, de amar o teatro, de continuar tentando, que fôssemos fazer qualquer coisa outra, porque do teatro nossa ilusão era inútil. Hoje entendi, é porque a vaga do sucesso, da homenagem, dos recursos patrocinados, estava já destinada, como herança da nobreza e não como cultura popular. E nós, ainda estamos aqui, sem exílio, sem troféu, ficamos pela estrada, da decepção empoeirada, onde teu senhor do engenho nos roubou até as luzes da ribalta e nos resta, então só, a ti princesa, admirar. No fundo, só existem duas coisas, o que era de todos e o que é apenas exclusivo. Mas, nos resta a identificação. Nada mais fundante do domínio do mal que a identificação. Pois, sua gênese não é a violência, esta é o seu produto. A sua semente, donde nasce, está em todo lugar, é o que dá uma face à idolatria, do privilégio ao privilegiado, somente a sensação; demolindo do bem a sua disseminação, a equanimidade, da sua vida no dia a dia. E agora ali chegaste, protegida e apadrinhada. Mereceste, sem dúvida nenhuma, mas a excelência, talvez, é preciso lembrar, não seja feita só do mérito, pois, se talento fosse sinal de caráter, o demônio, este sim, teria as chaves do céu...