1 de mai. de 2014

Alguma Outra Coisa (crítica/documentário)





Alguma outra coisa muito mais útil neste mundo…

Alguns dizem que aquilo que o artista faz aqui neste mundo é inútil. Ou que a fruição de suas obras é apenas um descanso do mundo real e prático, para depois voltarmos à realidade das necessidades concretas da vida. Nada mais falso. Como nos alertou Gaston Bachelard, é imprescindível escutar aos poetas para manter nossa alma viva, para resistir à extinção de nossa maior qualidade como criadores de nós mesmos. Um dia conheci um desses poetas, aos quais não podemos deixar de escutar, o Guilherme Guimarães. Depois de um tempo, num outro dia, reencontrei com esse artista, e falamos sobre um filme que ele fez sobre outros artistas, e ele me disse: “mas você assistiu o filme?”. Aí fiquei preocupado e pensei, será que perdi alguma coisa? E fui revê-lo mais uma vez. Não havia realmente perdido nada, mas certamente ganhei ao assistir mais uma vez. É um raro testemunho poético sobre algumas pessoas muito interessantes e os seus caminhos pela cidade, os melhores caminhos de uma cidade... e sobre um cuidado especial dessas pessoas pela manutenção do verdadeiro espírito desta grande cidade.

Encontrei o Guilherme uma outra vez, quando ele ainda estava no processo de criação do documentário, e ele me disse algo sobre um achado, uma filmadora Super 8 em ótimas condições. Havia conseguido uma máquina dessas, os filmes desta e também uma moviola para editar as imagens daquilo. Quando conversamos ele estava preocupado em estabelecer uma relação conceitual para poder incluir as tomadas em Super 8 entre as outras tomadas, digitais talvez. Alguma reflexão que justificasse um sentido estético profundo, um valor filosófico para inserir um outro tipo de textura para que isso não estivesse inconsequente ali, ou mesmo gratuito. Naquele dia, depois dessa nossa conversa, fiquei a pensar nisso. Queria contribuir, refleti e disse depois pra o Guilherme que, para mim, o Super 8 poderia caber ali perfeitamente, pois, remeteria à noção de resistência, assim como também era a resistência, para mim, o tema poético/estético sobre o qual seu filme se sustenta o tempo todo.

O Super 8 foi abandonado pela indústria, como muitas outras coisas, porque uma certa mentalidade desvaloriza tudo aquilo do que não pode extrair um lucro absurdo e imediato. Nessa mentalidade, algumas dessas coisas, devem se tornar obsoletas e deveriam desaparecer. É a mesma mentalidade que está desvalorizando até mesmo a própria vida para garantir esse lucro voraz acima de tudo. Quase que o próprio viver se torna obsoleto para nós se ficarmos desatentos por alguns momentos que seja. Porém, ao assistir ao filme, entendemos imediata e diretamente o sentido dessa resistência. Vemos no seu documentário algumas dessas pessoas resistentes e importantes pela sua atitude e seu estilo, pelo seu cotidiano. Pessoas que vivem na cidade e que resistem à obsolescência da vida artesanal e artística ao mantê-la numa escala humana e muito, muito poética neste seu cotidiano. Retomam as ruas para os humanos na sua medida mais especial. Enquanto muitas vezes estamos acorrentados num sistema que valoriza demais a ajuda que nos prestam algumas máquinas, motores e automações excessivas, mas que ao mesmo tempo acabam por proibir a vivência das praças, as alamedas, os recantos, as muretas, os bancos e até a sombra das árvores em função de uma lógica opressiva, estúpida, que reversamente nos agride e torna tudo insuportável demais para esse mesmo ser humano que as inventou.

No filme entendemos sobre a importância dessa resistência de uma maneira intuitiva, sem que seja preciso uma única palavra de ordem sequer. Entendemos isso, no caso excepcional deste testemunho poético, vendo alguns artistas sobre o skate, criando movimentos e vivendo sua cidade numa experiência completamente encantadora e emocionante. Mantendo essa cidade e suas ruas pungentemente humanas. Aquela cidade que sempre se vê feia quando estamos dentro da aberração do trânsito caótico, congestionado pelas regras arbitrárias de um projeto de progresso e de uma proposta de qualidade de vida que, embora cada vez mais paguemos muito caro por esta, nunca chega... esta mesma cidade começa pouco a pouco a aparecer delicada, acolhedora e maravilhosa. Pequenos detalhes de suas paisagens saem do fundo da tristeza, da fumaça acinzentada, do entulho desumanizado e embrutecido, para se iluminarem em cores suaves e sublimes, em luminosidades afetuosas, em expressões humanas sensibilizadas pela convivência e pelo encontro direto, revelando que é preciso muito pouco para reencontrar o caminho da dignidade, da retomada de nossa poesia de viver, de nós mesmos afinal.

Aquelas manobras e acrobacias, acompanhadas pela escolha de uma trilha musical na medida certa e entusiasmaste, expostas ali em seus próprios processos, suas dificuldades, na superação de suas impossibilidades, na obstinação por fazer existir um modo libertário de viver... os saltos espantosos e a maneira misteriosa de correr pelas passagens e pelas praças, calçadas e ruas, nos aproximam daquele ser humano que somente artistas como estes ainda insistem e têm coragem de nos revelar, de denunciar com tanta audácia, independente das proibições e de todas as perseguições que a lógica do progresso estéril nos impõe impiedosamente dia após dia. O filme nos coloca diante daquela nossa dignidade original e da nossa capacidade de nos relacionar com o mundo com a mais ritual e pura força da imaginação. Ali, mantemos nossa vida primitiva, como nativos correndo pela natureza, como o selvagem de que nos encheu o coração Henry Thoreau, aqueles que viviam da coletividade, da disposição voluntária, da simplicidade e que sacralizavam todos seus pensamentos, sentimentos e ações em benefício de todos, do seu mundo, da vida. Ali, a cidade não parece em nada o lugar horrível que muitas vezes a ganância e a ambição a obrigam se tornar. É isso que somos de verdade! Gritam as imagens e a ação daqueles artistas.

No filme, que o Guilherme Guimarães organizou e concretizou tão profundamente, encontramos, sentimos uma outra explicação e uma outra vontade de viver para nossa cidade e para nós mesmos. Recomeçar a fazer da cidade, nos ingênuos caminhos de todos os dias, aquilo que a minúscula formigazinha que todo poeta da vida é e nunca vai desistir de fazer: uma cidade artesanal, arranjada inteira para o tamanho e a alegria da nossa alma. Alguma outra coisa que, para toda a gente nunca mais esquecer, é realmente a única coisa mais importante deste mundo.