17 de set. de 2025

A Verdade Duvida Onde a Certeza Mentiu (crônica)

 



A Verdade Duvida Onde a Certeza Mentiu 


Num sonho delirante, quem deu a base psicológica para a censura do bem e a cultura do cancelamento, foi Adorno, quando o filósofo, subliminarmente, descreveu, num caminho oposto ao de Arendt, que o fascismo não seria um perigo inerente a todo ser humano, mas, seria uma qualidade apenas de um outro específico. Mais um grande mestre, inadvertidamente, contribuiu para a polarização das identidades, foi Eco, quando definiu como imbecis irrelevantes (outrora excluídos do debate erudito e que encontraram um espaço público para expressão com o nascimento da internet) aqueles que dão a sua opinião simplória do fundo dos bares insalúbres.


Desde a invenção do maior legado de Goebbels, a propaganda de massa, passando pelo fenômeno do desenvolvimento dos conglomerados de imprensa (que se apropriaram dessa herança nazista de que a mentira deve ser repetida inúmeras vezes até que se torne verdade), chegou-se aos poderosos organismos da venda de notícias para a publicidade consumista e à manipulação ideológica barata, todavia, em troca de muito dinheiro. Atualmente, nesta nova realidade, existe um contexto interessante (muito parecido com o momento em que os reinados da nobreza medieval começam a perder a hegemonia do poder para os novos comerciantes plebeus) que envolve a saga destas grandes corporações midiáticas atuais perdendo audiência para a ascensão anárquica de novos produtores independentes, e de certo modo libertários, numa revolta multicelular na internet. Por consequência se esvazia o interesse dos grandes patrocinadores no espaço da velha mídia que, contraditoriamente, ainda não alcançam os novos espaços porque estes não os recebem bem na sua imposição de conteúdos.


Os verdadeiros fascistas perderam a guerra e a voz, já os imbecis, que nunca tiveram voz, lutaram e morreram nos dois lados. Os velhos socialistas, que falharam e agora mancam pelo mundo, hoje se apegam ao identitarismo fuleiro. Os velhos fascistas, que ficaram escondidos nas feiras de relíquias de batalha e nas arquibancadas do futebol, hoje instrumentalizam a liberdade de expressão grotesca. As novas elites de progressistas oportunistas abusam daquele outro, na pele de quem não concorda com eles, condenado antecipadamente como imbecil ou fascista, e relativizam a censura política. As novas elites de conservadores oportunistas se alinharam com os imbecis excluídos, os pobres enganados pelo bem estar que nunca chegou e racionalizam a injustiça social. Hoje em dia o golpismo é um regime de estado e ambos os polos o cultivam intermitentemente.


Na história deplorável da televisão brasileira, fora toda essa manipulação de um jornalismo corrupto, alguns canalhas fizeram carreira e destruíram a mentalidade do brasileiro nas décadas de idiotices, grosserias, putarias e extremo mau gosto sem nenhum controle ou regulação de princípios, mas que têm uma coisa em comum: ficaram ricos explorando uma publicidade passional. Dentre muitos, estes são notáveis: Chacrinha (um pinguço cafetão escroto que vendia mulheres, ridicularizava pobres coitados e cagava no trabalho dos artistas); Silvio Santos (um imbecil agressor, abusador e humilhador profissional que extorquia donas de casa mal amadas com um carnê estelionatário); Xuxa (uma biscate de esquina que sexualizava e explorava a inocência das crianças com a única habilidade de ficar metendo a buceta na cara do público); Faustão (um calhorda estúpido que apodreceu a cultura nacional graças ao proxenetismo descarado e ao escárnio das suas vídeo cacetadas do caralho); Ratinho (um troglodita fedorento e estúpido que inventou o formato mais nojento, despresível e imbecil da história da comunicação); Datena (um incapaz mental que fez sucesso espremendo sangue, racismo e ódio numa das mais asquerosas estéticas já defecadas diante de uma câmara).


Esses programas nunca foram atacados ou denunciados tão veementemente quanto têm sofrido alguns realizadores da mídia independente e até hoje nunca foram moralmente revistos e, pelo contrário, são ovacionados constantemente. O controle e a regulação que hoje alguns canalhas tanto exigem não é realmente sobre o conteúdo, mas sim sobre o espaço para a propaganda, ou seja, o que querem é defender o monopólio do espaço vendável para a publicidade, coisa que a internet e os aplicativos estão pondo em risco pela sua pluraridade de conexões, ainda em expansão incontrolável. Assim, ironicamente, o grande risco hoje não é e nunca foi o conteúdo abjeto que todos esses desgraçados enfiaram e ainda entulham na cabeça do povo, mas sim, é algum influenciador treslocado e independente que possa vender a si mesmo com ideias livres e questionamentos ingênuos, ou alguém saído do "exército de imbecis" que possa ousar publicar a sua opinião, mesmo que equivocada e ridícula, e atrair a atenção e enfraquecer os orçamentos que por muito tempo estiveram centralizados maciçamente apenas nas grandes empresas de mídia. O que o poder quer cassar é a concessão do direito de publicar independentemente, da mesma maneira que perseguiam as rádios independentes. Precisam forçar a escassez de espaço publicitário para concentrá-lo nos monopólios de mídia.


Como aludiu Deleuze, se surgir um novo fascismo histórico este fará o seu ancestral parecer um conto de fadas, talvez, não pela aplicação do horror, mas pela sua indiferença diante deste. E isso já facilmente podemos observar assistindo aos noticiários com analistas sem vivência, os repórteres gaguejantes, os correspondentes favorecidos. O velho poder da imprensa não tem mais heróis e não vive mais de aventura há tempos, mas apenas de farsantes e fantoches, a serviço de um movimento aterrorizante de dominação implacável, que se vendem por conveniências das mais infames enquanto o mundo queima.


Já alertou Morin que a sociedade sempre foi anárquica na sua estrututura, pois, cria a si mesma constantemente, porém, é o tal poder que se esforça para dominá-la. Diante do fenômeno tecnológico, veloz e fascinante, absurdamente inclusivo e interativo, que consegue conclamar bilhões simultaneamente, de um público disposto a horas de conversas, diversão inovadora, discussão de ideias e cheio de dúvidas, os recursos diversificados de uma nova mídia ainda independente e livre, coloca a velha mídia em crise e desesperadamente tentando se agarrar a alguma coisa que possa lhe salvar, mas talvez, esta tenha apenas um de dois destinos possíveis (como foi também com as monarquias daquele tempo), tentar acordos macabros para se manter uma mentira e continuar sua sobrevida indecente e inútil ou morrer decapitada no fogo da nova revolução.





4 de set. de 2025

A Máquina do Mundo (ensaio)

 

“Vês aqui a grande máquina do Mundo,

Etérea e elemental, que fabricada

Assi foi do Saber, alto e profundo,

Que é sem princípio e meta limitada.

Quem cerca em derredor este rotundo

Globo e sua superfícia tão limada,

É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,

Que a tanto o engenho humano não se estende.”


Luiz de Camões¹        

 


A Máquina do Mundo

Uma Reflexão Sobre uma Trilogia de Pinturas





A Máquina do Mundo- F.H.Catani (primeiro da trilogia) - 2024/25 - 100cm x 150cm - acrílica s/ tela



E como eu palmilhasse vagamente uma estrada de Minas, pedregosa, e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos que era pausado e seco; e aves pairassem no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo na escuridão maior, vinda dos montes e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu para quem de a romper já se esquivava e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta, sem emitir um som que fosse impuro nem um clarão maior que o tolerável...

Carlos Drumond de Andrade

 

O Oróboros e o Carbono


Tudo é imaginação. Explicar o mundo é imaginação. Tudo o que o ser humano faz tem um traço poético/estético. Percebe-se isso até mesmo nas teorias científicas, que se carregam de racionalidade e exatidão, mas são tão mitológicas e metafóricas quanto aquele poema delirante perdido. A mesma fé que é necessária ao imaginador na sua aproximação à mitologia, à metáfora poética é necessária para sustentar, por exemplo, a explicação da criação do universo numa grande explosão que ainda se expande a partir de um único átomo num espaço completamente indefinível. Ora, o trabalho atribuído ao que chamamos ciência é também um artifício de nomeação tão metafórico quanto qualquer outra ideia humana. Os fatos e as evidências tanto para ciência quanto para a poesia são os mesmos, ou seja, aquilo que podemos encontrar do mundo através dos sentidos humanos.



Uma história² conta um incidente que pode ilustrar esta noção, é sobre o químico alemão Kekulé que estudava a estrutura do benzeno e certa noite sonha com o oróboros³ e o associa ao círculo fechado do carbono. O que é importante dizer é que os dois desenhos são metáfóricos e por isso é possível associá-los. O que importa aqui é descobrir e entender o vetor que criou as duas imagens, cada uma ligada a uma estética diversa, porém, ambas imaginadas. É lá que estará a potência espiritual do instante, deste impulso primitivo que imaginou o oróboros é que é o mesmo que imaginou o círculo de carbono do benzeno.

 


Seria uma grade ilusão pensar, por exemplo, que as fotos produzidas pelo telescópio como o Hubble, pode se aproximar melhor do mistério do universo, mais do que a imagem do oróboros. Para um estado mental apenas racionalizante esta afirmação é um contra-senso, porém, as imagens do telescópio são tão verídicas quanto a imagem milenar do oróboros, porque surgiram do mesmo olhar. O que se quer dizer é que, em termos do reconhecimento e do espanto diante da qualidade assombrosa da vida, ambas as imagens podem causar o mesmo impacto, ou não. Pelo contrário, aquilo que antes sensibiliza para perceber melhor esse assombro é, primitivamente, o oróboros, pois, sua especificidade em alçar a alma artística, por ser uma estupenda metáfora, é proporcionalmente maior do que as imagens do telescópio. Isto é, sem a potência poética desencadeada pelo oróboros, as fotografias do universo encerram, pela perspectiva da imaginação, muito pouco desse impacto. Essas máquinas são maravilhosas, mas, alijado da consciência espiritual, cujo guardião aqui é o oróboros, não se vislumbraria a compreensão assombrosa da imensidão da vida.

É necessário estar atento para não ver o oróboros, ou qualquer outra imagem arquetípica, apenas como uma coisa ultrapassada e ingênua cujo poder de gerar conhecimento foi superada pelo progresso científico. Esta imagem atávica concentra toda a força do movimento da imaginação que construiu o próprio telescópio.   Desde o oróboros até as imagens reconstruídas do universo, encontra-se momentos de mesmo peso que, muito mais além, nunca seriam possíveis em separado.


O Matema e o Poema


Have you felt so proud to get at the meaning of poems?

Stop this day and night with me and you shall possess the origin of all poems,

You shall possess the good of the earth and sun, (there are millions of suns left,)

You shall no longer take things at second or third hand, nor look through the eyes of the dead, nor feed on the spectres in books,

You shall not look through my eyes either, nor take things from me, You shall listen to all sides and filter them from your self.

Walt Whitman


O matema é a simulação duma possível divindade na exatidão, tanto quanto o poema o faria na sua imperfeição e, se é o número quem a reconhece apenas nas evidências daquilo que consegue supor, a culpa nunca seria da palavra, que a pode ver em todo lugar. Para o poeta, a contradição e a dicotomia do fenômeno, o dia e a noite, são a gênese de sua cosmogonia. Para o matemático, a raiz da dualidade está na equação, no positivo e no negativo, baseada na identificação e na razão do númeno. Enquanto o poema brota de uma reflexão filosófica, é negação criadora, o matema se funde na racionalização ideológica, é afirmação determinante. Sem a imbricação destas potências o ser humano é latente, o poeta se perde no seu medo e o matemático, na sua ilusão.

A elaboração pelo matema, da estrutura mecanizada, raciocinada, projetada de uma forma ideal, não amplia nem diminui por si só o potencial espiritual do ser humano. Não o amplia além do que amplia o poema. A idéia de que foi superada a condição do arquétipo, enquanto imagem em potencial, pela construção mecânica que daria a visão do universo em profundidade, seja qual for o argumento utilizado para justificar essa superação, não afeta o trabalho da mitologia em alçar a consciência desse estado, dessa compreensão poética humana acerca da vida. O que oferece o poema não é menor do que o que pode oferecer o matema. Ao contrário disso, essas imagens são a própria ampliação causada pela potência que o poema desencadeia e de que falou ao olhar para aquilo que origina deste impulso.




Essa reflexão sobre o termo matema relacionado ao poema, embora já cunhado antes por estudos da psicanálise, surge através da leitura de um pequeno capítulo de um livro, em que o seu autor aponta essa possibilidade de uma condição dual:


 “...duas vias, duas orientações, comandam aqui todo pensamento do Ocidente. Uma apoiada na natureza em seu sentido originalmente grego, acolhe em poesia o aparecer como presença ad-venante do ser. A outra, apoiada na Idéia em seu sentido platônico, submete ao matema a falta, a subtração de toda presença, e separa assim o ser do aparecer, a essência da existência...”  (BADIOU,1996:107)


Embora se entenda que, como continua o autor, “sem dúvida, o poema, ainda que interrompido pelo evento grego, jamais cessou...” (BADIOU,1996:107), é possível que esse brotar do matema, com essa caracteristica específica que aparenta o abandono da explicação delirante do mundo, ocorre muitos anos depois do evento grego. Acontece cruamente na sua retomada racionalista, no Renascimento. Porém, o interesse aqui não é especular sobre essas reflexões, mas, mais uma vez, inspirar a encontrar justamente um ponto de visão que testemunhe, qualquer que sejam as inúmeras elaborações da imaginação, a observação de um movimento arquetípico, comum à todo ser humano, ligado aos temas primitivos da alma. Um ponto em que possa ser vislumbrado a alma da experiência humana, como a potência que instigou tanto o poema quanto o matema. Por isso, o que importa aqui não é saber quando ou como o matema interfere no poema, ou se o poema resiste ao matema, mas uma fenonenologia da alma, através da imaginação poético/estética, que origina a paixão por expressá-los.


Uma Qualidade Espiritual


Jesus disse: 'Venham, para que eu lhes ensine segredos que ninguém jamais viu. Pois existe um reino grande e sem limites, cuja extensão nenhuma geração de anjos jamais viu, no qual há um grande Espírito invisível, que nenhum olho de anjo jamais viu, nenhum pensamento do coração jamais compreendeu, e nunca foi chamado por nenhum nome'. Judas


As citações aqui representam uma maneira de demonstrar aquilo que caracteriza o espectro arquetípico onde estas pinturas são executadas. Evidenciam, antes de tudo, o universo imagético onde este trabalho artístico está vagando. Neste sentido, é uma evocação de um estado anterior e primevo àquilo que é o campo místico onde se estabelece a posição do artista, onde nada ainda se conhece, nada foi visto e nada pode ser lembrado. Assim, é o trabalho artístico um estado de transformação que exige um contágio interior do ser humano pelos apelos de seu meio exterior. Uma dialética mitológica entre alma e espírito. Neste instante, que ele se sente impregnado na realização de uma construção que busca alinhar o sentido material, emocional e mental de uma obra qualquer para que, no impulso intencional de concretização de sua existência, possa ser/estar consciente neste mundo de uma dinâmica insuportavelmente criadora e, ao identificar-se como parte desse mundo que o cerca e que ao mesmo tempo ele é, saber-se nesse estado e produzir uma relação espiritual com a vida. Espiritual porque supera a mera movimentação, exigindo a emersão de um ser total, atento, na presença inédita de seu espírito pela realização de seu eterno presente, para que esse mundo e ele mesmo, na revelação de sua alma, enfim, exista.


“Ora, é necessário que aquilo que foi gerado seja corpóreo, isto é, visível e tangível; porém, nada pode tornar-se visível separado do fogo, nem tangível sem algo sólido, nem sólido sem terra. Foi por isso que, quando começou a constituir o corpo do universo, o deus o fez a partir do fogo e da terra. Mas não é possível que apenas duas coisas sejam constituídas de forma bela, sem uma terceira; porque é necessário introduzir entre ambas um elo que as ligue; e o mais belo dos elos é aquele que produz a maior unidade em si próprio e nos termos que une; e é a proporção matemática que por natureza leva a cabo este efeito da forma mais bela. De facto, sempre que, de três números, sejam inteiros ou em potência, o do meio é de tal modo que está para o último como o primeiro está para ele, e, da mesma maneira, como o último está para o do meio, o do meio está para o primeiro, de tal modo que o do meio se torna primeiro e último e, por sua vez, o último e o primeiro se torna ambos os meios, torna-se então necessário que sejam idênticos e que, tendo-se tornado idênticos uns aos outros, formem todos uma unidade.” (PLATÃO, 2003:69)


É o processo, não o resultado, que está subjacente ao trabalho superior da atividade humana criadora. É mais importante compreender a vontade que leva o ser a construir algo forte, significativo do que ficar impressionado com a obra em si mesma, ou pelo impacto causado pela sua presença, ou seja, apesar de a obra ser importante ela é apenas o álibi de um acontecimento que ocorre no interior da escolha, da decisão e, principalmente, da imaginação do ser criador, através das relações que ele estabelece com este seu mundo nas fronteiras do sonho e da vigília, no redemoinho entrelaçando onirismo e devaneio. Assim, cada ação artística, desde o instinto até a intuição, é apenas um subterfúgio para estabelecer um encontro com a profundidade infinita de si mesmo e a imensidão inalcansável de tudo mais. O grande acontecimento, aquela transformação interior, se subjetiva na consciência durante o processo de execução das manifestações que se objetivam exteriormente. Porém, esses dois movimentos são simultâneos, coetâneos e indissociáveis. É apenas uma desilusão que busca separá-los, mas o imenso trabalho do artista é o reencontro consigo mesmo atuando e navegando no universo ao recriar, reconstituir a cada obra a sua manifestação.




Há quatro conceitos fundamentais para a realização destas pinturas, sendo os dois primeiros ligados à execução pictórica. Um inicial é a tensão constante, na ação do processo de criação da obra, do drama vivenciado entre a dualidade da luz total e da escuridão absoluta. O segundo, é esta própria experiência da dinâmica daquele movimento, do fenômeno psicológico causado pela inversão entre fundo e figura, num estranhamento forçado entre paisagem e grafismo, diante do processo de aparição da obra pictórica em si mesma.

Os outros dois conceitos são fundamentais para a apreensão da obra e estão ligados à sua expressão temática. No terceiro, há uma intenção filosófica, assumidamente insana, pagã e de uma teogonia atávica, uma cosmologia rupestre, por colher em cada obra todo o universo imagético possível numa criação de um arquétipo total do ato criador da divindade, principalmente em sua qualidade ligada à gênese do universo e aos aspectos mitológicos associados à unidade e a interdependência entre vida e morte, que se expressa na metáfora de uma sacralidade que pode ser chamada de morte viventeO último deles, é a evocação da intuição do instante, ou seja, em cada realização se busca uma experiência mística e sacrificial do presente, onde o aparecimento desses arquétipos que, ao mesmo tempo em que abstraem os seres, os astros e os fenômenos da natureza, literalizam uma figuração dos eventos cósmicos onde sua mitologia  será o ritual de um encontro com a presença desta divindade no momento imediato, como a única possibilidade de compreensão da realidade mítica da existência e de sua eterna ruptura e reorganização, o caos e a gênese.

Na relação entre estes elementos se força um exercício espiritual, ritualístico e religioso, para alcançar a expressão simbólica de um ícone máximo que se repete a cada pintura, inerente a uma reverência ao fenômeno da criação das coisas do mundo. É sempre uma dialética imanente entre uma intenção poética para uma materialização estética e, reversamente, uma afetação desta literalização sobre aquela imaginação. Uma teleologia de poemas visuais rústicos, não eruditos, em reverência a uma teologia da pintura ingênua. É uma tentativa por manter o aparecimento das combinações de formas e movimentos de uma maneira intuitiva, espontânea e até mesmo aleatória em sua execução, mas finalizada numa estruturação convicta, ordenada e autosuficiente. É uma emulação arquetípica que rabisca um grafismo que começa a ser esboçado grotescamente como apenas um mote da composição. Uma ação expressionista segue separando as formas e a partir de certo ponto o que era grafismo começa a aparecer como fundo e o que era o fundo surge como a própria definição das figuras, resultando numa imagem em que formas flutuam e se interagem num fundo que hora é total escuridão hora é total luminosidade, demonstrando um diágolo vigoroso, numa vontade de apresentar uma linguagem com referências à símbolos de um marcante teor épico, mitológicamente essencialista e fundamentalmente cosmogônico.


O Demiurgo e a Criança


Quando Jesus apareceu na Terra, realizou milagres e grandes prodígios para a salvação da humanidade. E, como alguns andavam no caminho da justiça, enquanto outros andavam em transgressões, os doze discípulos foram chamados. Ele começou a falar com eles sobre os mistérios além do mundo e o que aconteceria no fim. Muitas vezes, ele não aparecia aos seus discípulos como ele mesmo, mas era encontrado entre eles como uma criança.” Judas


Como quando um demiurgo recolhe a matéria inerte e a carrega do espírito do movimento, os trabalhos desta trilogia são uma tentativa de recriar imagens místicas a partir da uma mitologia própria, de uma intrínseca iconografia, ambiguamente fundada num espanto infantil e uma saga anciã, que encherga o inusitado no que já conhece como se o visse pela primeira vez, que na energia desta derradeira primeira novidade, recomeça, redimensiona e revive toda criação eternamente, renascendo de si mesma, reverenciando os elementos espirituais que cada ícone evoca, que cada forma inspira e provoca para existir. Então, a partir própria vontade do fazer artístico, cria-se um firmamento arquetípico, profano e sagrado, simultaneamente, transfigurado na presença de cada uma das pinturas da trilogia. Enquanto almeja um iconoclastia em suas decodificações externalizadas, desequilibradas como um dialeto irreconhecível, ao mesmo tempo, são também orações internas cadenciadas, expressas como mantras silenciosos para uma meditação religiosa. Dessa forma, são anárquicos em sua estética, mas ritualísticos em sua poética. Cada uma destas pinturas é uma invocação e uma materialização ao mesmo tempo. É um testemunho atávico de uma engenharia rupestre, observada reversamente, no desencadeamento das explosões e implosões de um delírio de anunciação assombrosa, apocalípse e salvação, pela revelação dessa máquina do mundo. Esta é uma visão do instante eternamente inédito, que é a origem de todos os poemas, o anseio daquilo que nunca foi visto, anterior a qualquer coisa imaginada ou fabricada, porque é a matriz misteriosa do espírito que constrói a si mesmo e que estampa sua existência, sendo em seu não ser, pela alma rústica da humanidade.


“... ele formou este todo único e perfeito, que não pode envelhecer nem adoecer. E deu-lhe a forma que lhe é mais conveniente e mais afim; efetivamente, a forma conveniente ao ser vivo que deve envolver dentro de si mesma todas os seres vivos é aquela que compreende em si mesma todas as formas possíveis; foi por isso que, fazendo-a girar, lhe conferiu a forma redonda, a forma esférica, na qual a distância do centro a todos os pontos da periferia é sempre a mesma, a mais perfeita de todas as formas e a mais semelhante a si mesma, pois considerava que o semelhante é mil vezes mais belo do que o dissemelhante. E tornou liso e redondo todo o exterior, por vários motivos. Efetivamente, não precisava de olhos, uma vez que não restava no exterior nada para se ver, nem de ouvidos, porque também não restava nada que se ouvisse; e também não havia ar à sua volta, que fosse necessário respirar; nem precisava ter um órgão por meio do qual, ora recebesse os alimentos que nele entrassem, ora eliminasse aqueles que tivessem previamente absorvido. Pois nada saía dele e nada entrava nele, donde quer que viesse – já que nada mais havia. De fato, foi gerado pela técnica de modo a fornecer a si mesmo os seus alimentos, que são aquilo que nele perece, e de modo a que tudo aquilo que realiza ou pelo qual é afetado esteja em si mesmo ou seja por si mesmo; pois aquele que o constituiu considerou que seria melhor se fosse auto-suficiente do que tivesse necessidade de outros... e constituiu um céu circular, único, exclusivo e solitário, girando em círculos, capaz pela sua própria excelência, de viver consigo mesmo, sem precisar de nenhuma outra coisa, uma vez que se conhece e se ama a si mesmo de forma suficiente. E foi por meio de tudo isto que o gerou, como deus bem-aventurado.” (PLATÃO,2003:71-72)





ANDRADE, C. D. de. (1996). Claro

Enigma. Rio de Janeiro: Nova Fronteira

BADIOU,A.(1996). O Ser e o Evento. Rio de Janeiro:Jorge Zahar-UFRJ

(1) Camões é a primeira referência poética à Máquina do Mundo e à qual Drumond retoma em seu poema e eu como tema desta trilogia de pinturas: CAMÕES, L. de. (1572). Os Lusíadas. Lisboa: Imprensa Nacional

CATANI, F.H.(2004). Arte Banida Arte Bandida:Aspectos do Fracasso Escolar e da Medida Sócio Educativa.TCC.FE Unicamp

CATANI, F.H.(2011). Uma Visão da Alma Artística. Dissertação de Mestrado. Campinas:FE-Unicamp

(2) JUNG, C.G. Psicologia e Alquimia (OC 12, § 328).

(3) O oroboros (também conhecido como ouroboros, do grego “devorador de cauda”) aparece pela primeira vez citado é o Livro Enigmático do Mundo Inferior (em inglês, Enigmatic Book of the Netherworld), um texto funerário egípcio antigo encontrado na tumba do faraó Tutancâmon (KV62), no Vale dos Reis, datado do século XIV a.C. (aproximadamente 1323 a.C.).

KASSER, R., MEYER, M., WURST, G., & GAUDARD, F. (2007). The Gospel of Judas. National Geographic Society

WITHMAN, W.(2000). Canção de Mim Mesmo-Songs of Myself. São Paulo:Imago

PLATÃO.(2003). Timeu. Lisboa:Instituto Piaget

(4) O termo “matema” foi introduzido por Jacques Lacan pela primeira vez em 4 de novembro de 1971, durante uma palestra no âmbito do seu seminário “O Saber do Psicanalista” (Le savoir du psychanalyste).