19 de fev. de 2014

Durkheim e a Educação Para a Sociedade (ensaio)





Para entender os pressupostos de Durkheim sobre a educação, assim como qualquer outro pensamento, e qualificar nossa consciência sobre a educação de hoje,  parece ser  necessário  deixar de lado qualquer abordagem linear. Existe, penso eu, uma rede de inter-relacionamentos  entre todos os seus contemporâneos. Mesmo  autores anteriores estão ligados a essa espécie de rede, que tende a não ter começo, ou seja, a história desses pensamentos é parte de uma totalidade de conhecimentos e em todo momento podemos encontrar elementos de um em outro e vice-versa. Não gostaria de entender as idéias de Durkheim como a simples superação das idéias de outro autor, ou diagnosticar uma defasagem daquelas em relação a estas. Na verdade, percebo equívocos de compreensão quando determinamos a história como se fosse composta por degraus, ou mesmo como uma evolução qualitativa da consciência humana. Essa afirmativa ainda não me é clara e carece de aprofundamento e referências, mas não posso deixar de expressar minha necessidade de ver essa história como algo que se expande em um movimento antilinear, provocado por pulsos de várias experiências, que sempre estão centrífugas, mais como uma fonte do que como uma estrada.

Neste sentido, poderemos contextualizar, ainda que rapidamente, qual era a realidade que estava à volta de Durkheim. Nascido em uma família de rabinos, em 1858, foi educado rigidamente. Mora durante dois anos na Alemanha e estuda Ciências Sociais com Wundt. Escreve seus primeiros artigos de sucesso em 1886. Depois disso, em 1870, começa a discutir, avançadamente à sua época, os aspectos de uma instrução pública. Em 1902, assume a cadeira de sociologia na Universidade de Paris. Foi profundamente afetado pelos fatos sociais de sua época, tanto que estes passam a ser seu principal objeto de estudo. Imerso nestes fatos:  as crises da Comuna (1870-71); o caso Dreyfus (1894-99); pelo assassinato de Jaurés (1914); a Primeira Grande Guerra; ainda sofre ataques pessoais por sua ascendência estrangeira. Morre em 1917.

Na atmosfera que estabelecia, pela segunda revolução industrial, uma estruturação urbana que destruía então, muitas das relações sociais ligadas ao artesanato, assim como, todos os sistemas que não se adaptassem ao sistema de produção industrial, Durkheim inicia uma análise realizada na observação de como as capacidades das forças coercitivas atuam na determinação da conduta dos indivíduos, ou como modernamente se diz: os mecanismos de controle social. Foi aqui que Durkheim estabeleceria sua relação com a educação, que ele considerava a ação exclusivamente exercida sobre as gerações mais jovens[1].

Para Durkheim, a sociedade é uma determinante, e exige que o indivíduo se adapte totalmente aos seus objetivos. A educação é o principal instrumento dessa adaptação. É a educação que transforma a criança, desprovida de um senso social, em uma peça ativa da sociedade. O trabalho dos adultos sobre as "faltas" da criança, contribui para a incorporação dos princípios da sociedade da qual essa criança faz parte. Desta maneira, podemos entender, pelo prisma de Durkheim, que a história tem um papel fundamental, ou melhor, a história nos mostra como foram educados os indivíduos para a vida social. Por isso, Durkheim pressupõe ser indispensável à observação histórica para termos uma noção preliminar da educação e suas aplicações.

Nesta observação da história das sociedades e suas relações, Durkheim procura demonstrar que não podemos escapar de uma formação voltada para  o bem estar desta sociedade, e que, se nos desviarmos deste caminho, poderemos causar muito desconforto à criança, e até a sua exclusão do meio social, pelas dificuldades que a criança enfrentaria se não conhecesse os valores e necessidades da sociedade em que estará inserida. Há, no entendimento de Durkheim, uma função ao mesmo tempo una e múltipla dos sujeitos sociais, ou seja, apesar de construir uma especificidade de tarefas e de trabalho, o indivíduo tem que estar a serviço de um bem maior, assim como receber e internalizar os valores coletivos que garantem o funcionamento desta sociedade, e é justamente por este aspecto que entendemos o pensamento durkheimiano como representante de uma corrente funcionalista de raciocínio, em que a absorção de princípios morais são seu fundamento. O sujeito é único enquanto sua particularidade de especialização, mas está, ao mesmo tempo, dentro de uma constelação de valores que são compartilhados com todo os sujeitos de uma mesma sociedade, caracterizados como os valores culturais a que todo os indivíduos devem ter acesso para a sua própria continuidade.

Desta maneira, Durkheim nos apresenta objeções às idealizações da educação, principalmente quando essas sugerem uma educação universal, que possa atender a todas as sociedades sem observar suas diferenças originais e históricas. Para este pensador, não há possibilidade de mudar uma instituição que foi construída ao longo de um período histórico que comanda as necessidades da formação desta instituição, pois se isso acontecer, seria necessário uma mudança na própria estrutura desta sociedade, isto porque a educação não tem esse poder, por se aplicar a estruturas já existentes, não sendo ela a criadora dessas estruturas, mas exatamente o contrário. Esta dificuldade se impõe porque na história a educação tem variado com o tempo e o meio em que participa. Cada período histórico tem sua característica particular, o que inviabiliza a aplicação de um mesmo modelo pedagógico. Definitivamente, é impossível mudar os costumes que formam os sistemas de educação, pois a educação será sempre o reflexo da sua sociedade.

Entre esses projetos idealistas criticados por Durkheim, podemos reconhecer basicamente dois modelos. O primeiro é aquele que busca a perfeição do indivíduo ao seu extremo, como meta última na realização e potencialização dos sujeitos.  Porém, Durkheim afirma que é uma contradição acreditar num desenvolvimento harmônico do indivíduo em relação às necessidades de uma tarefa especializada, que este sujeito deverá desenvolver. A outra forma idealista de educação é aquela que procura a felicidade para si mesmo e para os outros membros da sociedade. Também é contestada por Durkheim por perceber a felicidade como algo essencialmente subjetivo, o que torna impossível o seu trabalho prático na educação, que é social.

Nesta relação, una e múltipla, podemos entender que a natureza  específica  da educação é realmente agir sobre as gerações mais jovens e despreparadas para o convívio social,  suscitando e desenvolvendo um certo número de estados físicos, morais e intelectuais, que são exigidos pela sociedade no seu todo, mas também criando o espaço para o desenvolvimento das particularidades que  o indivíduo está destinado a trabalhar dentro e a favor deste contexto.

A definição que Durkheim impetra para educação, sugere algumas conseqüências inexoráveis. Entre elas está a criação de um caráter social que tende a promover uma socialização metódica constante das novas gerações diante dos valores reclamados pela sociedade.

Aquelas formas particularizadas, que os membros de uma sociedade devem desenvolver dentro do seu grupo específico, sejam de trabalho ou qualquer outra estrutura de relações, forma o que Durkheim chama de "ser individual". Já as qualidades que todos os indivíduos necessitam obter na educação para participar da sociedade formam o "ser social". É o "ser social" que deve ser a meta da educação para Durkheim, ou seja, o fim dessa educação, pois é na sociedade que se expressa a moral adquirida pela educação. Esta formação se dá quando a sociedade agrega ao ser individual toda sua estrutura de vida, não se limitando a desenvolver somente o ser natural, mas sim, criando um homem novo. A educação transmite para o indivíduo conhecimentos que a natureza nunca poderia realizar, sendo que, mesmo as qualidades que pareçam ser escolhidas pelos próprios indivíduos, são profundamente ligadas ao meio social que as prescreve como necessárias. Assim, "desejando melhorar a sociedade, o indivíduo deseja melhora-se a si próprio"(Durkheim)[2].

Durkheim defende uma educação pública, e ainda que existindo uma iniciativa privada, esta conviveria com uma intervenção do Estado, apenas enquanto representante e vigilante da moral de que a sociedade é autora. Este Estado, irá zelar pela qualidade da mensagem da sociedade na formação do novo homem, não assumindo o papel de idealizador da formas da moral, mas sim fiscalizar os professores e os sistemas para que nenhum personalismo proíba que a nova geração saia da ignorância e do egoísmo e a barbárie da infância, para uma vida social plena de riquezas morais e princípios valorizados pela sociedade saudável. Neste processo, a criança passará por um intenso exercício de contenção de suas extravagâncias e desejos, assim como ocorrerá a eliminação da necessidade de experiências improvisadas. A vida do estudante é se estruturar dentro de um sistema que extingue a criatividade, ou os impulsos de natureza investigativa sem um propósito científico claro e definido pelas necessidades do seu grupo social. Sendo o Estado o mediador entre essa falta primordial e a moralização dos alunos, coerentemente legitimado pela sociedade.

Todo o trabalho do educador, respaldado pela coordenação das diretrizes morais pelo Estado, será voltado para mostrar através dessa moral irredutível como deve ser  o comportamento de um verdadeiro cidadão. Esta pedagogia é urgente e atende a necessidades vitais de formação das crianças, não pode esperar para se desenvolver com a pesquisa científica e retomadas críticas. A educação, para Durkheim, é um processo em que, é fundamental destruir na criança aquilo que é inadequado para o convívio social, através da disciplina, do enquadramento e da autonomia, que aliás é, este último, um conceito pouco definido por ele, mas que podemos entender como uma síntese do trabalho dos dois primeiros fatores tornando o ser individual totalmente solícito às regras que são propostas a ele, ou seja, depois de um processo de extinção de seu egoísmo, o indivíduo passa a aceitar a moral que lhe foi impetrada e passa ele mesmo a assumir sua determinação em seguir essa moral. Torna-se autônomo em sua própria designação, sem precisar mais de nenhuma coordenação ou controle. Por isso talvez durkheim não se estenda na definição da autonomia, ela é alcançada em um momento que o indivíduo já foi trabalhado pela disciplina e pelo enquadramento, sendo seu fruto mais tranqüilizador. É como se ela surgisse já no ser social instituído e finalizado, isto é , é mais um objetivo do que uma ferramenta.  

É necessário, então, que o espaço esteja vazio, pela ação do educador, para que este mesmo educador possa incutir na criança todos os preceitos de um Outro, que é a expectativa da sociedade civilizada, pois a criança não sabe amar o convívio social pela suas limitações, e assim a educação permite, amorosamente, a inserção deste novo homem, desta alteridade, depois de corretamente educado e moralizado. O aluno se transforma num pólo receptivo que irá receber, ou melhor, encarnar uma transferência de todas as normas morais. A educação é um ato de moralização, a serviço dos interesses que a sociedade exige, enquanto realidade de vida, e enquanto estruturas formais da razão, e não da religião. Durkheim nega a moral religiosa que se apresentava como parâmetro de conduta até o início da modernidade, e esclarece que a moral laica é que pode revelar a qualidade exata da formação do novo homem, mesmo porque a religião fora criada pela sociedade. É esse Outro encarnado que, com sua moral social, irá controlar, no processo pedagógico, que o ser individual se submeta ao interesse da coletividade em que está inserido, e passe a trabalhar para a manutenção dessa moral.

É curioso entender como Durkheim e seus contemporâneos, entendiam a forma de cativar a atenção dos alunos neste trabalho de moralização, e assim transmitir da melhor maneira os atributos dessa moral laica, a salvadora e constituidora da verdadeira sociedade civilizada. Todo o processo educacional foi, então, comparado com a técnica da hipnose que, no contexto da época, era uma forma conceituada de resolver os mais variados problemas e assumia ares  milagrosos. O educador deveria assumir a atitude de um hipnotizador, expressando sua autoridade sem titubeios, e magnetizando os alunos com sua postura moral inquebrantável. Essa postura irredutível transmitiria a força insubstituível da moral racional da sociedade moderna, que estava crescendo a todo vapor, literalmente. Desta maneira, o professor seria uma fonte de desejo, pois os alunos buscariam adquirir a moral que o próprio mestre encerra, e depois buscariam o próprio âmago do bem social, sublimando ao máximo a sua participação no todo da experiência coletiva, servindo a um fim superior a ele e a todos os outros indivíduos, autonomamente, perfeitamente disciplinado e enquadrado, e por isso, disciplinando e enquadrando.

Durkheim sabia que todos têm algumas faculdades recebidas dos pais, mas que estas são muito gerais e por isso muito maleáveis e totalmente educáveis. Havia também uma discussão, bem trabalhada por Guyau, que caminhava nesta direção, paralelamente com a capacidade da hipnose em realizar no indivíduo uma transformação tal que este pudesse superar fatores hereditários, o que servia ao pressuposto científico de Durkheim de que essa mesma hereditariedade não poderia definir completamente o destino do indivíduo, sendo possível uma alteração, um novo sugestionamento, justamente por sua qualidade extremamente vaga. Deste modo, entre essas qualidades inatas tão rasas e o novo homem moral necessário à sociedade, existe uma grande distância, sendo que é este o papel da educação: levar a criança a percorrer essa distância, desviando-a das degenerações morais de certos estratos da sociedade que se perderam completamente da moralidade sugerida pela razão saudável. Com o magnetismo de um hipnotizador, a fé interior nesses princípios que esse educador aprende a amar, a personificação do dever do homem perante a superioridade da sociedade, uma vontade irredutível de se desenvolver educando os mais jovens, o professor forçará a retirada do instinto rudimentar inato à criança e a posterior internalização dos conceitos que formam  sua autoridade. Através do reconhecimento por parte da criança da força moral do educador, representada por necessidades históricas e absolutamente indispensáveis, esta mesma criança, quando adulta, encontrará dentro de si, já cristalizada na sua consciência, esta moralidade. E agindo autonomamente para garantir sua liberdade perante a renúncia de si mesmo, de sua condição incivilizada e rebelde, em detrimento ao pedido irrecusável de um todo do qual agora ela faz como prioridade participar.

Esse processo é um trabalho de colonização, pois o intuito é destruir totalmente o que possa existir de individualidade, de criatividade, e instalar uma nova maneira de ver o mundo, criada absolutamente por fatores externos ao indivíduo. Procura-se a morte da subjetividade da criança ou a submissão completa aos novos parâmetros que a educação tem por mérito inculcar nas novas gerações. O objetivo é a cópia do adulto e de sua moral social, demonstrando a criança como um "ser da falta", alguém que não pode ser deixado à mercê das improvisações do individualismo egocêntrico e involuido. Para destruir qualquer levante de uma subjetividade mais rebelde, é usada uma aclimatação dos ambientes sociais a uma censura moral permanente que exclui o sujeito que realize alguma ação fora do senso dessa moral estabelecida. Cria-se, se necessário, formas de punição que visam desestabilizar o infrator, pela vergonha ou pela própria culpabilidade de suas faltas, o que leva a valorizar ainda mais os indivíduos que os observem descumprindo o dever, por estarem eles próprios mostrando a incapacidade da subjetividade em se estabilizar no âmbito da sociedade, e fortalecendo a importância de ser submisso para ser aceito e valorizado pela coletividade. Antes de servir como castigo, a punição é um regulador que será interiorizado junto com as outras regras da moral social.

A colonização dessa criança que, segundo Durkheim, tem uma natureza avessa a novidades, ou seja, misoneísta, precisa convencê-la a desejar a regra e a disciplina, em um processo que visa dar autonomia à desse desejo. É preciso que o estudante se torne impotente perante a grandeza das propostas civilizadoras de sua sociedade. Promover uma fusão desses indivíduos na consciência coletiva, e configurar uma diluição da consciência individual na sua forma coletiva, e não a criação de estruturas pessoais associadas e participativas. É uma completa extinção de qualquer sentido fragmentado que impeça a moralização laica, cuja realização depende de revelar aos indivíduos um objetivo que os ultrapassa, em um sacrifício devoto ao amor de uma totalidade pura e humana, racional e estabelecida, para o desenvolvimento da qualidade produtiva da sociedade.  



   

  
 






[1] DURKHEIM, Émile."Natureza da Pedagogia e Seu Método". In: Educação e Sociologia. São Paulo: Melhoramentos, 1955. II p57
[2]  DURKHEIM, Émile. Educação e Sociologia. São Paulo: Melhoramentos, 1955. I p33-57

arquivo/archive/textos/texts