Para entender os
pressupostos de Durkheim sobre a educação, assim como qualquer outro
pensamento, e qualificar nossa consciência sobre a educação de hoje, parece ser
necessário deixar de lado
qualquer abordagem linear. Existe, penso eu, uma rede de
inter-relacionamentos entre todos os
seus contemporâneos. Mesmo autores
anteriores estão ligados a essa espécie de rede, que tende a não ter começo, ou
seja, a história desses pensamentos é parte de uma totalidade de conhecimentos
e em todo momento podemos encontrar elementos de um em outro e vice-versa. Não
gostaria de entender as idéias de Durkheim como a simples superação das idéias
de outro autor, ou diagnosticar uma defasagem daquelas em relação a estas. Na
verdade, percebo equívocos de compreensão quando determinamos a história como
se fosse composta por degraus, ou mesmo como uma evolução qualitativa da consciência
humana. Essa afirmativa ainda não me é clara e carece de aprofundamento e
referências, mas não posso deixar de expressar minha necessidade de ver essa
história como algo que se expande em um movimento antilinear, provocado por
pulsos de várias experiências, que sempre estão centrífugas, mais como uma
fonte do que como uma estrada.
Neste sentido, poderemos contextualizar, ainda que
rapidamente, qual era a realidade que estava à volta de Durkheim. Nascido em
uma família de rabinos, em 1858, foi educado rigidamente. Mora durante dois
anos na Alemanha e estuda Ciências Sociais com Wundt. Escreve seus primeiros
artigos de sucesso em 1886. Depois disso, em 1870, começa a discutir,
avançadamente à sua época, os aspectos de uma instrução pública. Em 1902,
assume a cadeira de sociologia na Universidade de Paris. Foi profundamente
afetado pelos fatos sociais de sua época, tanto que estes passam a ser seu
principal objeto de estudo. Imerso nestes fatos: as crises da Comuna (1870-71); o caso Dreyfus
(1894-99); pelo assassinato de Jaurés (1914); a Primeira Grande Guerra; ainda
sofre ataques pessoais por sua ascendência estrangeira. Morre em 1917.
Na atmosfera que estabelecia, pela segunda
revolução industrial, uma estruturação urbana que destruía então, muitas das
relações sociais ligadas ao artesanato, assim como, todos os sistemas que não
se adaptassem ao sistema de produção industrial, Durkheim inicia uma análise
realizada na observação de como as capacidades das forças coercitivas atuam na
determinação da conduta dos indivíduos, ou como modernamente se diz: os
mecanismos de controle social. Foi aqui que Durkheim estabeleceria sua relação
com a educação, que ele considerava a ação exclusivamente exercida sobre as
gerações mais jovens[1].
Para Durkheim, a sociedade é uma determinante, e
exige que o indivíduo se adapte totalmente aos seus objetivos. A educação é o
principal instrumento dessa adaptação. É a educação que transforma a criança,
desprovida de um senso social, em uma peça ativa da sociedade. O trabalho dos
adultos sobre as "faltas" da criança, contribui para a incorporação
dos princípios da sociedade da qual essa criança faz parte. Desta maneira,
podemos entender, pelo prisma de Durkheim, que a história tem um papel
fundamental, ou melhor, a história nos mostra como foram educados os indivíduos
para a vida social. Por isso, Durkheim pressupõe ser indispensável à observação
histórica para termos uma noção preliminar da educação e suas aplicações.
Nesta observação da história das sociedades e suas
relações, Durkheim procura demonstrar que não podemos escapar de uma formação
voltada para o bem estar desta
sociedade, e que, se nos desviarmos deste caminho, poderemos causar muito
desconforto à criança, e até a sua exclusão do meio social, pelas dificuldades
que a criança enfrentaria se não conhecesse os valores e necessidades da
sociedade em que estará inserida. Há, no entendimento de Durkheim, uma função
ao mesmo tempo una e múltipla dos sujeitos sociais, ou seja, apesar de
construir uma especificidade de tarefas e de trabalho, o indivíduo tem que
estar a serviço de um bem maior, assim como receber e internalizar os valores
coletivos que garantem o funcionamento desta sociedade, e é justamente por este
aspecto que entendemos o pensamento durkheimiano como representante de uma
corrente funcionalista de raciocínio, em que a absorção de princípios morais
são seu fundamento. O sujeito é único enquanto sua particularidade de
especialização, mas está, ao mesmo tempo, dentro de uma constelação de valores
que são compartilhados com todo os sujeitos de uma mesma sociedade,
caracterizados como os valores culturais a que todo os indivíduos devem ter
acesso para a sua própria continuidade.
Desta maneira, Durkheim nos apresenta objeções às
idealizações da educação, principalmente quando essas sugerem uma educação
universal, que possa atender a todas as sociedades sem observar suas diferenças
originais e históricas. Para este pensador, não há possibilidade de mudar uma
instituição que foi construída ao longo de um período histórico que comanda as
necessidades da formação desta instituição, pois se isso acontecer, seria
necessário uma mudança na própria estrutura desta sociedade, isto porque a
educação não tem esse poder, por se aplicar a estruturas já existentes, não
sendo ela a criadora dessas estruturas, mas exatamente o contrário. Esta
dificuldade se impõe porque na história a educação tem variado com o tempo e o
meio em que participa. Cada período histórico tem sua característica
particular, o que inviabiliza a aplicação de um mesmo modelo pedagógico.
Definitivamente, é impossível mudar os costumes que formam os sistemas de
educação, pois a educação será sempre o reflexo da sua sociedade.
Entre esses projetos idealistas criticados por
Durkheim, podemos reconhecer basicamente dois modelos. O primeiro é aquele que
busca a perfeição do indivíduo ao seu extremo, como meta última na realização e
potencialização dos sujeitos. Porém,
Durkheim afirma que é uma contradição acreditar num desenvolvimento harmônico
do indivíduo em relação às necessidades de uma tarefa especializada, que este
sujeito deverá desenvolver. A outra forma idealista de educação é aquela que
procura a felicidade para si mesmo e para os outros membros da sociedade.
Também é contestada por Durkheim por perceber a felicidade como algo
essencialmente subjetivo, o que torna impossível o seu trabalho prático na
educação, que é social.
Nesta relação, una e múltipla, podemos entender
que a natureza específica da educação é realmente agir sobre as
gerações mais jovens e despreparadas para o convívio social, suscitando e desenvolvendo um certo número de
estados físicos, morais e intelectuais, que são exigidos pela sociedade no seu
todo, mas também criando o espaço para o desenvolvimento das particularidades
que o indivíduo está destinado a
trabalhar dentro e a favor deste contexto.
A definição que Durkheim impetra para educação,
sugere algumas conseqüências inexoráveis. Entre elas está a criação de um
caráter social que tende a promover uma socialização metódica constante das
novas gerações diante dos valores reclamados pela sociedade.
Aquelas formas particularizadas, que os membros de
uma sociedade devem desenvolver dentro do seu grupo específico, sejam de
trabalho ou qualquer outra estrutura de relações, forma o que Durkheim chama de
"ser individual". Já as qualidades que todos os indivíduos necessitam
obter na educação para participar da sociedade formam o "ser social".
É o "ser social" que deve ser a meta da educação para Durkheim, ou
seja, o fim dessa educação, pois é na sociedade que se expressa a moral
adquirida pela educação. Esta formação se dá quando a sociedade agrega ao ser
individual toda sua estrutura de vida, não se limitando a desenvolver somente o
ser natural, mas sim, criando um homem novo. A educação transmite para o
indivíduo conhecimentos que a natureza nunca poderia realizar, sendo que, mesmo
as qualidades que pareçam ser escolhidas pelos próprios indivíduos, são
profundamente ligadas ao meio social que as prescreve como necessárias. Assim, "desejando
melhorar a sociedade, o indivíduo deseja melhora-se a si
próprio"(Durkheim)[2].
Durkheim defende uma educação pública, e ainda que
existindo uma iniciativa privada, esta conviveria com uma intervenção do
Estado, apenas enquanto representante e vigilante da moral de que a sociedade é
autora. Este Estado, irá zelar pela qualidade da mensagem da sociedade na
formação do novo homem, não assumindo o papel de idealizador da formas da
moral, mas sim fiscalizar os professores e os sistemas para que nenhum personalismo
proíba que a nova geração saia da ignorância e do egoísmo e a barbárie da
infância, para uma vida social plena de riquezas morais e princípios
valorizados pela sociedade saudável. Neste processo, a criança passará por um
intenso exercício de contenção de suas extravagâncias e desejos, assim como
ocorrerá a eliminação da necessidade de experiências improvisadas. A vida do
estudante é se estruturar dentro de um sistema que extingue a criatividade, ou
os impulsos de natureza investigativa sem um propósito científico claro e
definido pelas necessidades do seu grupo social. Sendo o Estado o mediador
entre essa falta primordial e a moralização dos alunos, coerentemente
legitimado pela sociedade.
Todo o trabalho do educador, respaldado pela
coordenação das diretrizes morais pelo Estado, será voltado para mostrar
através dessa moral irredutível como deve ser
o comportamento de um verdadeiro cidadão. Esta pedagogia é urgente e
atende a necessidades vitais de formação das crianças, não pode esperar para se
desenvolver com a pesquisa científica e retomadas críticas. A educação, para
Durkheim, é um processo em que, é fundamental destruir na criança aquilo que é
inadequado para o convívio social, através da disciplina, do enquadramento e da
autonomia, que aliás é, este último, um conceito pouco definido por ele, mas
que podemos entender como uma síntese do trabalho dos dois primeiros fatores
tornando o ser individual totalmente solícito às regras que são propostas a
ele, ou seja, depois de um processo de extinção de seu egoísmo, o indivíduo
passa a aceitar a moral que lhe foi impetrada e passa ele mesmo a assumir sua
determinação em seguir essa moral. Torna-se autônomo em sua própria designação,
sem precisar mais de nenhuma coordenação ou controle. Por isso talvez durkheim
não se estenda na definição da autonomia, ela é alcançada em um momento que o
indivíduo já foi trabalhado pela disciplina e pelo enquadramento, sendo seu
fruto mais tranqüilizador. É como se ela surgisse já no ser social instituído e
finalizado, isto é , é mais um objetivo do que uma ferramenta.
É necessário, então, que o espaço esteja vazio,
pela ação do educador, para que este mesmo educador possa incutir na criança
todos os preceitos de um Outro, que é a expectativa da sociedade civilizada,
pois a criança não sabe amar o convívio social pela suas limitações, e assim a
educação permite, amorosamente, a inserção deste novo homem, desta alteridade,
depois de corretamente educado e moralizado. O aluno se transforma num pólo
receptivo que irá receber, ou melhor, encarnar uma transferência de todas as
normas morais. A educação é um ato de moralização, a serviço dos interesses que
a sociedade exige, enquanto realidade de vida, e enquanto estruturas formais da
razão, e não da religião. Durkheim nega a moral religiosa que se apresentava
como parâmetro de conduta até o início da modernidade, e esclarece que a moral
laica é que pode revelar a qualidade exata da formação do novo homem, mesmo
porque a religião fora criada pela sociedade. É esse Outro encarnado que, com
sua moral social, irá controlar, no processo pedagógico, que o ser individual
se submeta ao interesse da coletividade em que está inserido, e passe a
trabalhar para a manutenção dessa moral.
É curioso entender como Durkheim e seus contemporâneos,
entendiam a forma de cativar a atenção dos alunos neste trabalho de
moralização, e assim transmitir da melhor maneira os atributos dessa moral
laica, a salvadora e constituidora da verdadeira sociedade civilizada. Todo o
processo educacional foi, então, comparado com a técnica da hipnose que, no
contexto da época, era uma forma conceituada de resolver os mais variados
problemas e assumia ares milagrosos. O
educador deveria assumir a atitude de um hipnotizador, expressando sua
autoridade sem titubeios, e magnetizando os alunos com sua postura moral
inquebrantável. Essa postura irredutível transmitiria a força insubstituível da
moral racional da sociedade moderna, que estava crescendo a todo vapor,
literalmente. Desta maneira, o professor seria uma fonte de desejo, pois os
alunos buscariam adquirir a moral que o próprio mestre encerra, e depois
buscariam o próprio âmago do bem social, sublimando ao máximo a sua
participação no todo da experiência coletiva, servindo a um fim superior a ele
e a todos os outros indivíduos, autonomamente, perfeitamente disciplinado e
enquadrado, e por isso, disciplinando e enquadrando.
Durkheim sabia que todos têm algumas faculdades
recebidas dos pais, mas que estas são muito gerais e por isso muito maleáveis e
totalmente educáveis. Havia também uma discussão, bem trabalhada por Guyau, que
caminhava nesta direção, paralelamente com a capacidade da hipnose em realizar
no indivíduo uma transformação tal que este pudesse superar fatores
hereditários, o que servia ao pressuposto científico de Durkheim de que essa
mesma hereditariedade não poderia definir completamente o destino do indivíduo,
sendo possível uma alteração, um novo sugestionamento, justamente por sua
qualidade extremamente vaga. Deste modo, entre essas qualidades inatas tão
rasas e o novo homem moral necessário à sociedade, existe uma grande distância,
sendo que é este o papel da educação: levar a criança a percorrer essa
distância, desviando-a das degenerações morais de certos estratos da sociedade
que se perderam completamente da moralidade sugerida pela razão saudável. Com o
magnetismo de um hipnotizador, a fé interior nesses princípios que esse
educador aprende a amar, a personificação do dever do homem perante a
superioridade da sociedade, uma vontade irredutível de se desenvolver educando
os mais jovens, o professor forçará a retirada do instinto rudimentar inato à
criança e a posterior internalização dos conceitos que formam sua autoridade. Através do reconhecimento por
parte da criança da força moral do educador, representada por necessidades
históricas e absolutamente indispensáveis, esta mesma criança, quando adulta,
encontrará dentro de si, já cristalizada na sua consciência, esta moralidade. E
agindo autonomamente para garantir sua liberdade perante a renúncia de si
mesmo, de sua condição incivilizada e rebelde, em detrimento ao pedido
irrecusável de um todo do qual agora ela faz como prioridade participar.
Esse processo é um trabalho de colonização, pois o
intuito é destruir totalmente o que possa existir de individualidade, de
criatividade, e instalar uma nova maneira de ver o mundo, criada absolutamente
por fatores externos ao indivíduo. Procura-se a morte da subjetividade da
criança ou a submissão completa aos novos parâmetros que a educação tem por mérito
inculcar nas novas gerações. O objetivo é a cópia do adulto e de sua moral
social, demonstrando a criança como um "ser da falta", alguém que não
pode ser deixado à mercê das improvisações do individualismo egocêntrico e
involuido. Para destruir qualquer levante de uma subjetividade mais rebelde, é
usada uma aclimatação dos ambientes sociais a uma censura moral permanente que
exclui o sujeito que realize alguma ação fora do senso dessa moral
estabelecida. Cria-se, se necessário, formas de punição que visam
desestabilizar o infrator, pela vergonha ou pela própria culpabilidade de suas
faltas, o que leva a valorizar ainda mais os indivíduos que os observem
descumprindo o dever, por estarem eles próprios mostrando a incapacidade da
subjetividade em se estabilizar no âmbito da sociedade, e fortalecendo a
importância de ser submisso para ser aceito e valorizado pela coletividade.
Antes de servir como castigo, a punição é um regulador que será interiorizado
junto com as outras regras da moral social.
A colonização dessa criança que, segundo Durkheim,
tem uma natureza avessa a novidades, ou seja, misoneísta, precisa convencê-la a
desejar a regra e a disciplina, em um processo que visa dar autonomia à desse
desejo. É preciso que o estudante se torne impotente perante a grandeza das
propostas civilizadoras de sua sociedade. Promover uma fusão desses indivíduos
na consciência coletiva, e configurar uma diluição da consciência individual na
sua forma coletiva, e não a criação de estruturas pessoais associadas e participativas.
É uma completa extinção de qualquer sentido fragmentado que impeça a
moralização laica, cuja realização depende de revelar aos indivíduos um
objetivo que os ultrapassa, em um sacrifício devoto ao amor de uma totalidade
pura e humana, racional e estabelecida, para o desenvolvimento da qualidade
produtiva da sociedade.