A Verdade é Reversa: Quatro Motes Para Uma Só Negação.
O Sabichão.
"Achei que ele passava por sábio aos olhos de muita gente, principalmente aos seus próprios, mas não o era. Meti-me, então, a explicar-lhe que supunha ser sábio, mas não o era. A conseqüência foi tornar-me odiado dele e de muitos dos circunstantes... Daí fui ter com outro, um dos que passam por ainda mais sábios e tive a mesmíssima impressão; também ali me tornei odiado dele e de muitos outros". Sócrates.¹
É muito intrigante como uma expressão pungente nunca perde sua força no tempo. Nenhuma mudança é capaz de enfraquecer sua perspicácia e esta quase sempre fala exata e justamente de um fenômeno que é atemporal, mostrando que a superação tecnológica, que descarta, é ilusória em relação à consciência, que amplia. Um bom exemplo seria Elon Musk, atualmente, o tipo do sujeito que Sócrates visitaria quando tentava elucidar o enigma do oráculo que o apontou como sendo o homem mais sábio do mundo. Dizem que o filósofo fora condenado à morte por tentar ensinar filosofia aos jovens, mas talvez o motivo tenha sido um pouco mais extenso. Sócrates provocava os supostos sábios famosos para mostrar que, embora numa área específica até pudessem ter algum conhecimento, este conhecimento não lhes garantiria poder sobre os temas fora da área do seu saber, desmistificando assim sua aura de sábios e todo o perigo de sua arrogância. O conhecimento é, muitas vezes, apenas um bom esconderijo para a ignorância.
O Mandrake.
“Tenho que ver uma coisa mil vezes, antes de vê-la uma vez.” Thomas Wolfe.²
Uma grande obra artística qualquer fala da mesma coisa que qualquer outra pessoa poderia ver, a diferença é que ela fala e tenta falar melhor. Quando se vê o que é revelado todos podem reconhecer e o que impressiona é apenas a maneira como foi descrito. E o aspecto mais ambicioso desta revelação, deveria ser, que esta será revolucionária. Um artista contemporâneo, por princípio histórico, nunca deveria defender o poder, pois, isso seria e é, como por exemplo tem feito Caetano Veloso, um tremendo equívoco filosófico. Sendo verdadeiro em sua arte, seu papel está em ser um crítico denunciador audaz, no mínimo, das manipulações do poder ou, para os mais condescendentes, no melhor dos casos e no máximo, um ombudsman cético, porque um artista cúmplice é um artista estéril.
O Vingador.
"Todo santo tem um passado e todo pecador tem um futuro." Oscar Wilde.³
O criminoso cria tanto risco para si mesmo quanto põe em risco as outras pessoas. À polícia caberia proteger a coletividade da qual este criminoso faz parte pela capacidade de afetá-la e, protegendo o criminoso de si mesmo como faria para um suicida em potencial, restabeleceria o equilíbrio na sociedade. Mas um fenômeno inquietante existe aqui. Aquilo que diferencia a bondade da maldade não é, realmente, o querer bem ou mal a alguém, pois, desde entre as simples amizades do dia a dia até mesmo entre os genocidas de milhões de pessoas, são cultivadas tanto as raivas mais profundas quanto os maiores afetos possíveis, seja pelos seus companheiros de ideias, amigos de jornada, pais, filhos ou vizinhos do mesmo território. Um exemplo é a mentalidade contraditória que se expande entre os policiais brasileiros de que, como a daquele PM que arremessou um homem de uma ponte e que ao mesmo trabalhava como segurança em escola particular, existe uma guerra inevitável entre o bem e o mal que justifica ações desta natureza. Do mesmo modo que este PM não necessariamente faria mal aos alunos da escola, um assassino cruel pode ser ao mesmo tempo, e muitas vezes foi, um grande pai de família atencioso, como o caso do "ice man"4. Fazer o bem a alguém pode ser esperar e contribuir para que se mantenha uma situação de extrema injustiça, um mal social, que o beneficia em detrimento de outros, assim como fazer mal a alguém poderia, e é o que aquela mentalidade prega, fazer o bem à sociedade. A diferença entre o bem e o mal, aquilo que poderia definí-la precariamente, não deveria estar na limitação do cuidado exclusivo ou inclusivo, mas seria talvez entender a verdade complexa desta condição e, deste modo, seria a determinação para ver um fato verdadeiro que afeta coletivamente ao longo do tempo, onde todos apenas podem querer a imposição de uma solução individual imediata. Porém, se como dizem, só a verdade liberta, é preciso estar preparado, talvez por isso mesmo se confunda tanto o levar e dar vantagem com a bondade real e, também por esse motivo, nunca são resolvidos nem mesmo os problemas mais básicos da convivência social pela maldade aplicada. Pois, ninguém aceita facilmente ser contrariado e parece evidentemente sempre prever que, antes de ser libertado por uma verdade qualquer, pode ser que seja necessário sofrer um pouco até que se tenha a força para admití-la por completo e negar a própria convicção. Esse discernimento é o vetor fundamental para equilibrar a violência de mentalidade por uma possível consciência da bondade.
O Herói.
"Mas há crescimento de ser em toda tomada de consciência. A consciência é contemporânea de um devir psíquico vigoroso, um devir que propaga seu vigor por todo o psiquismo." Gaston Bachelard.⁵
A primeira vez que encontrei a frase Lux Umbra Dei⁶, foi num contexto atribuído a uma declaração de Albert Einstein. Conta a lenda que durante uma entrevista, questionado sobre o que seria a luz ele respondeu “A Luz é a Sombra de Deus”. Ao pesquisar descobri que Einstein, se falou mesmo isso, talvez houvesse citado o poeta John Addington Symonds que usa a frase em latim num título de um poema seu. Anterior ao poeta, esta frase está inscrita num relógio de sol de 1770⁷, embora sua origem ou autoria pareça ser desconhecida. Contudo, o que me interessa aqui é a sua carga poética e também o potencial que esta frase tem em afirmar o imenso paradoxo do qual gostaria de indicar que a imaginação é cria. O lugar em que sou jogado ao refletir sobre esta demanda é aquele que não carrega mais imagens, somente alimenta uma consciência silenciosa do instante. Neste vácuo de elaboração de imagens encontro a pureza da imaginação em um estado latente, antes que esta realize seu movimento. Esta frase é uma antimusa para o imaginador, que é justamente o que suscita o elemento que permeia o seu tema primitivo, pois este é aqui uma substância desencadeadora. Este silêncio total que fomenta a criação em seu instante ínfimo e eterno é um impulso constante que nega a necessidade de imagens, paradoxalmente, para criá-las.
A sombra é um álibi da manifestação da luz. De que é o oculto que revela o aparecimento do exposto. Tanto do movimento do que é poético sombrio, que induz o estético, como no caminho inverso, o da estética luminosa, que afeta e envenena a compreensão poética do mundo. Nas fronteiras possíveis da escala da consciência humana, partindo desde a sugestão do V.I.T.R.I.O.L.⁸, refletir sobre esta frase é evocar a intuição do instante. A minha única possibilidade aqui é refletir sobre esse instante e, ou encontro um conhecimento negativo, ou seja, que até agora não produz uma imagem, ou a frase fica sem importância nenhuma. “Lux Umbra Dei” consegue me colocar no estado em que não sei exatamente se há a necessidade de elaborar uma imagem, posso, ao meditar nisso, manter-me o máximo possível em um silenciamento anterior e primitivo, uma fonte oca, onde o meu poema arcaico ainda não está, embora seja que o único lugar em que este poema se cria, mas, por acréscimo, ou seja, mesmo que nos encante assustadoramente a literalização do poema, este é apenas um subproduto desse encontro atávico.
O imaginador, o apaixonado pela alma rústica, artística, é despertado e parte para retificar a sacralidade da sua vida, ao retomar constantemente a reflexão filosófica ingênua sobre os seus temas primitivos. Afirma neste ato que cada uma dessas potências atávicas, que podem ser conquistadas intuitivamente simplesmente na evocação desses temas, desencadeia neste ser imaginador os elementos arquetípicos fundamentais para o processo de criação de imagens que, simultaneamente, mantêm-no apto ao instante silencioso da presença mística do espírito do mundo.
A alma artística não se apega aos seus projetos, mas sim à potência que pode mantê-los sempre latentes. Ficar a se deslumbrar com cada imagem criada por essa potência, sem entender sua grandiosa condição espiritual, faz apenas pular de uma referência à outra, de uma emoção fugaz à outra, de uma técnica à outra sem nunca encontrar sua fonte, a sua origem, a “sarça ardente”⁹. Assim, se é a imagem uma sombra necessária para viver pela alma artística, é esta a pedra oculta que o imaginador deve sacrificar à luz, por essa persistente evocação do eterno instante, o amor, nesse evento solene e ritualisticamente elaborado, ou seja, artístico. Para reequilibrar o mundo, o verdadeiro herói é aquele que abandona, ou pela escolha ou pela desgraça, sua mentalidade, sua crenças, sua tradição e não aquele que luta por estas. Diante do apego modelar do pensamento, do sentimento e da ação é que se perpetua a degradação escalar das sociedades. A condição humana é afetada tanto pelo bem quanto pelo mal, porém, a verdade está na escala da tomada de consciência pela negação dos modelos da mentalidade contraditória. O próprio ato de negar o falso já é a ação da verdade. Onde o conflito não está aí a verdade floresce. A luz da verdade é a sombra desse amor, que se revela sempre reversamente ao esforço por o possuir.
1- Platão. 2012. "Diálogos". São Paulo: Cultrix. p17
2- Wolfe, T. 1998. "You Can't Go Home Again": HarpPerenM.
3- Wilde, O. 2013. "Children In Prison: Every saint has a past, and every sinner has a future.”: A Word To The Wise.
4- Ver o documentário "The Iceman Confesses: Secrets of a Mafia Hitman" do diretor Arthur Ginsberg)
5- Bachelard, G. 2001. "A Poética do Devaneio". São Paulo:Martins fontes. p5
6- Este trecho está em: Catani, F.H. 2011. "Uma Visão da Alma Artística". Dissertação de Mestrado. Campinas: FE-Unicamp. p273
7- "LUX UMBRA DEI". A Luz é a Sombra de Deus. Inscrição encontrada em relógio de sol, sundial, da Dymock Church, Gloucestershire.
8- Carvalho, J.J. 1995. "Mutus Líber, O Livro Mudo da Alquimia". São Paulo: Attar. p92: O V.I.T.R.I.O.L. “Visita Interiora Terrae Rectificando Invenies Occultum Lapidem”. Explora o interior da terra. Retificando, descobrirás a pedra oculta. Esta é uma fórmula célebre entre os alquimistas e que, de certa maneira, condensa a doutrina. É também o mesmo nome dado à flos coeli (flor do céu) o orvalho colhido pelo alquimista para realizar a obra alquímica: O Vitríolo vegetal, gordura do orvalho, espuma da primavera, princípio da vida celeste, manteiga mágica.
9- Almeida, J.F. de. (2001). "A Bíblia Sagrada". Barueri:Sociedade Bíblica do Brasil.