A Mestria ou A Propaganda
Sempre se tem dito que deveríamos voltar a estudar os clássicos porque é ali que tudo está. Os clássicos são ótimos e não há nada de ruim em estudá-los, realmente é fundamental conhecer nossa história e identidade, porém, qual foi o fenômeno que criou os clássicos? Antes destes existia o quê? E aqui encontramos novamente um questionamento que pode elaborar mais um pouco a reflexão sobre o drama modelo/escala. Se tudo o que foi criado, foi criado pela observação direta e silenciosa da natureza, podemos dizer que sem esse impulso de atenção, que é a intuição, nada existiria, a cultura não existiria, apenas as reações instintivas. Para resolver nossa dramática situação civilizatória atual, seja no âmbito amplo da noção conceitual de sociedade ou na realidade íntima das relações diretas entre os indivíduos, talvez devêssemos abandonar um pouco a confiança nos modelos racionais para voltar a nos dedicar à intuição de nossa escala espiritual, que podemos entender como a perspectiva da alma humana. Neste ponto o importante não seria nos apegar ao modelo que nos identificamos mais, mas sim, mergulhar na escala da criação de todos os modelos, porque ali está nossa qualidade criadora fundamental enquanto humanidade. Ora, se tudo o que foi criado na cultura, foi criado no momento onde ainda não havia nada, então, é na intuição que a possibilidade de tudo está realmente. Quando nos fixamos apenas no movimento de uma sucessão de modelos, na evolução linear de seus aspectos racionais, na horizontalidade em que podem ser comparados, perdemos a capacidade de entender a escala e a dimensão do processo criador com o qual provocamos a evolução de nossa espécie, que se dá num movimento que, muito além da linearidade, é de profundidade, de verticalidade.
Um outro bom exemplo para estender aqui é um fato relacionado ao ato de racismo que foi noticiado nestes dias. Uma acadêmica francesa e negra, conhecida por seus renomados estudos em questões de relações de raça, foi impedida de palestrar no parlamento europeu sobre como promover a igualdade e inclusão no ambiente de trabalho, por uma líder partidária francesa e branca, que a acusou de enaltecer o racismo contra os brancos. Este acontecimento também denuncia o impasse que o jogo entre superação de modelos nos coloca, sem nunca resolver o contexto de forma equilibrada, mas apenas alimentando mais conflitos e até mesmo prejudicando o desenvolvimento de novas compreensões no nível mais abrangente da escala. Quando você tenta atacar um modelo com outro modelo, isso só gera conflito entre os modelos, pois modelos tendem a ser axiomáticos pela sua própria natureza, que exige a elaboração de premissas positivas e o descarte do último modelo para a implementação de um novo proposto. O grande problema surge quando uma ação, por inúmeros comprometimentos institucionais e ideológicos, é apenas propaganda que se limita a ações simbólicas, que têm a sua potencialidade, mas que por não visar afetar a escala, incluindo os inúmeros aspectos que compõe um contexto complexo, pretende implementar um modelo e não uma ação que busca abrangência de escala. Assim, aquele modelo se enfraquece e abre brechas para ser desqualificado. A aproximação pelo modelo é fragmentar, exclusiva e divide, o que é errado quando a necessidade é inclusão, já a abordagem pela escala é fractal, inclusiva e permite a existência simultânea das contradições, o que torna mais próximo as equilibrações. Algo que nasce de um erro, por mais nobre que seja, só vai gerar mais erros. A perspectiva tem que mudar, senão nada vai funcionar e os modelos passam a tentar resolver aqueles problemas que estes mesmo fabricam. E qual seria então a possibilidade de uma perspectiva que pudesse afetar a escala trágica de nosso contexto, seja do racismo, da fraqueza das identidades ou qualquer outro drama de nossa sociedade atual, sem inventar mais conflitos e consequentemente piorar a realidade ao contrário de melhorá-la?
A cultura se desenvolve ou é organizada basicamente de duas maneiras. Uma é pela mestria, que é uma organização antiga, restrita e artesanal, mas que ainda tem reminicências em algumas especificidades em que é praticamente imprescindível. Uma outra é pela propaganda, que nem é tão nova assim e é a conhecida formalidade retórica, que tende aos processos de massificação e que é a que mais nos apegamos atualmente. A mestria seria uma relação direta com o fazer e o teorizar de uma atividade qualquer, em que mestre e aprendiz realizam um projeto real em andamento, não simulado, inseridos num ambiente de criação que atende a uma demanda concreta por sua produção. A propaganda seria quando uma mídia descarrega conhecimentos que, tomados como importantes, simulam uma reflexão e uma necessidade para um espectador, numa possível situação em um ambiente hipotético, baseado na ideia de que posteriormente o mesmo vai aplicar o que entendeu e supostamente admitiu como necessário, numa situação prática concreta. A mestria é uma ação pela escala, é vertical e busca o aprofundamento de seus processos. A propaganda é uma reação por modelos, é horizontal e força a multiplicação de suas replicações. Diferentemente do que poderíamos pensar o modelo é algo que tende a ser cada vez maior e a escala é algo que tende a ser cada vez menor, porém, o modelo é contido na escala e a escala é que o contém.
A manifestação de uma perspectiva que possa abandonar os conflitos e gerar equilíbrio, necessariamente deveria abarcar estes dois movimentos simultaneamente. Compreendendo que, fundamentalmente, os modelos só se tornam um problema quando deixam de ver a si mesmos como elementos da escala e entram em disputa por autonomia e sobreposição entre si dentro desta escala. Ou seja, o maior problema com o modelo é exatamente excluir de si mesmo a perspectiva de que é intrinsecamente um elemento que não consegue existir equilibradamente sem pertencer a uma escala que o contextualiza e o reorienta constantemente. E como então se daria, praticamente e objetivamente, uma ação destas? Retomemos as sensações das reflexões sobre da volta aos clássicos e o do embate da resistência racial para poder propor um caminho, porém, a partir das questões que problematizamos sobre estes, vamos pensar em uma atividade a ser apresentada a uma única iniciativa para um grupo bem específico, por exemplo e numa experiência que realmente existe, numa ação educativa e terapêutica para um pequeno grupo de dependentes químicos, adictos, numa pequena comunidade rural. A ação intuitiva, artesanal, ao contrário do embate comparativo entre modelos cada vez mais complexos, buscaria desenvolver e criar um ambiente tão agradável e promissor que deixaria os participantes tão impressionados, para que todos se sentissem tão acolhidos, que abandonar o processo seria quase impossível. O apelo seria que, então, proporcionasse a integração das contradições pela vontade e a vocação de manter esse contexto superlativo comum e, mesmo que cada participante vez por outra tivesse dificuldade de se integrar, o acordo coletivo seria manter a qualidade dessa promessa. Diferentemente das iniciativas modelares que mantêm a ameaça constante de punição pela exclusão de uma dificuldade de integração, a iniciativa escalar aumentaria a facilidade integrativa com a constante oferta de reaproximação cada vez mais inclusiva. O modelo dificulta tanto a permanência com tantas punições que é quase impositivo desistir. Na escala ao oferecer o melhor de forma tão abundante e facilitada fica quase impossível resistir a se integrar. Ou seja, nesta especificidade, numa abordagem pelo modelo quem mais precisa acaba por ser forçado a escapar para fora, já na aproximação pela escala quem mais precisa será induzido a fugir para dentro. Pela excelência que atrai do que pela exigência que repele.