2 de dez. de 2024

E um pequeno devaneio herético... (crônica)




E um pequeno devaneio herético...


Eu me transformei num pensador negativo, em um caminho mal sucedido e pouco acadêmico, só disposto a crônicas brutas e poemas crus. Minha maior inquietação atualmente é descrever o que vejo como um drama na relação entre modelo e escala. Outro dia encontrei mais uma oportunidade para olhar para esta preocupação de perto, quando li um dos livros de um psicanalista atual, famoso no meio erudito e que não é brasileiro porque aqui a psicanálise não existe, o Ogden. Embora num esforço digno e importante, achei engraçado que na introdução ele alerta que a descrição dos casos que ele faria, mudaria nossa vida. Achei um pouco pretensioso, mas depois percebi que era apenas ingenuidade. Os casos que ele conta, comparados aos que vivenciei ao trabalhar com a recuperação da adicção ativa, mais pareciam cantigas de ninar. Uma coleção sonolenta de caracteres que a maior preocupação parecia ser a vontade, nunca realizada, do ato promíscuo qualquer. O mais pitoresco nos burgueses é que eles não acreditam que exista outra realidade dramática fora a mediocridade deles, ou seja, são mestres em modelos e idiotas na escala. Aquilo me fez pensar que muitas coisas importantes são muitas vezes ainda inacabadas e o serão eternamente, talvez porque a proposição modelar é tão limitada que mostra que o fracasso das soluções está justamente na necessidade de propor um objetivo final. Algumas delas, das coisas importantes deste tipo, demonstram que algo está errado, mesmo que ainda não seja possível provar. Um dos pontos fundamentais de uma crítica à psicanálise tradicional, que eu chamo de escatológica, é que esta parece nunca evoluir para uma psicanálise política e engajada, não identitária todavia, que busque descobrir o drama de nossa escala humana e não apenas os modelos alienados de uma criança eternamente frustrada e traumatizada, como apresentou Hillman. Há um erro nessa dedução modelar, sexista, dum objeto dissimuladamente apolítico e na invenção dos seus sujeitos alucinados, reduzidos a desavisados libidinosos e incestuosos. Este modelo da escatologia psicanalítica não funciona na escala e, pior, perturba a unidade, impondo a erudição ao sofrimento, a dominação do meios sobre o fins, ou vice versa, que seja para alcançar estes ou que seja para justificar aqueles e ainda, descaradamente, descarta uma fenomenologia da alma porque seu modelo é estrita e grotescamente biológico. Numa metáfora, a psicanálise tradicional seria como um martelinho de cristal, majestosamente decorado, sendo oferecido para o trabalho com uma talhadeira de aço sobre um bloco de granito bruto. Um caminho melhor seria mesmo através e pela reflexão sobre a escala politizada, comunitária e citadina, de uma graça anímica que possa ser mais abrangente, dos delírios e revelações das poéticas e das estéticas da imaginação, da intuição, transportados pelas imagens e conceitos como uma evocação para a mudança realmente revolucionária, que se levante do divã e transforme ao mesmo tempo o indivíduo através de uma atuação radical em seu contexto e não apenas tente arrastar uma adaptação alienante, flutuando no vácuo à procura do leite materno derramado, desconectada da civilização, de sua profunda mitologia e sua imensa escala cosmogônica.




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