5 de dez. de 2024

A PM, a Depressão, o Coágulo e o Cristal (crônica)





A PM, a Depressão, o Coágulo e o Cristal.


Uma mistura de necessidade e de urgência parece forçar a fragmentação da consciência em mentalidades modelares conflitantes. Por outro lado, pode ser que este mesmo movimento, da necessidade e da urgência, também seria o impulso para a consciência de escala. As mentalidades fragmentárias louvam os modelos e de alguma maneira não conseguem vislumbrar que, desde que a consciência de escala inclui as mentalidades modelares, uma mentalidade não pode entender e solucionar sozinha problemas da consciência. Uma das coisas mais interessantes do que chamo de drama do modelo/escala é que nesta perspectiva as mentalidades sobre um fato e uma realidade podem demonstrar a complexidade da escala e produzir uma consciência e uma ação mais abrangente. 


Acredito que há manifestações de idéias do senso comum que podem ser tão valiosas quanto as mais refinadas elaborações da erudição acadêmica. O que temos que levar em conta não é a comparação qualitativa de um modelo com outro, mas sim observar até que ponto qualquer um deles representa um honesto exercício em direção à sua possibilidade dentro da escala de um determinado contexto. Não uma superação em detrimento de outra, mas, antes disso, perceber o desenvolvimento interno de cada pressuposto em relação às necessidades a que este busca atender. Não vejo que uma visão de mundo deva superar sua antecedente histórica ou qualquer outra, mas sim, ampliar a si mesma, internamente, nessa própria história. É um mecanismo que gosto de usar para reconhecer até que ponto as propostas são dinâmicas e espiritualmente envolvidas na relação com os modelos de que dispõem. Neste conceito, acerca do que seja espiritual, há basicamente dois movimentos que a consciência pode realizar em seu desenvolvimento para compreender sua própria existência na escala. Sabendo que não são opostos entre si, mas sim representam dois extremos da mesma substância, duas manifestações na mesma escala, ou melhor, da vibração deste fenômeno espiritual.


Então, no nivel mais denso está o conceito de coagulação, e na sua expansão total está a noção cristalização. Esclareço, porém, que esses dois conceitos não estão necessariamente ligados aos fenômenos biológicos correlatos, mas que se apropriam de uma certa materialidade metafórica, uma qualidade que serve apenas como um símbolo para nossa especulação. Podemos supor ainda, que possam existir pontos intermediários entre estes dois, porém, veremos somente as suas situações extremadas, para que seja o início duma análise de reconhecimento deste fenômeno.


Um modelo pode, então, relacionar-se com um cotidiano coagulando sua capacidade de reflexão, seja ela popular ou erudita, o que acaba por engrossar sua essência intelectual numa nódoa surda e sem reflexão, mas que mesmo assim pode aumentar, desenvolver-se, sem que represente nenhuma forma criadora de viver ou transformar a realidade à sua volta, ou mesmo de agir socialmente para essa mudança. É apenas uma aceitação resignada que estanca o fluxo da consciência, que proíbe seu curso de ampliação dela mesma e absorção dos significados do mundo a que pertence. Só permite que, cada vez mais, incorpore toda nova expressão imaginativa ao seu universo já solidificado na frieza de uma contusão da alma. Percebemos que não é o cotidiano em si que nos abafa, nos restringe a ação ou o desenvolvimento da consciência e liberdade, mas é a forma como estamos inseridos nesse cotidiano e nessa rotina e, neste aspecto, é a mentalidade modelar.


Para além deste quadro, podemos começar a entender uma outra forma de acercar-se ao cotidiano, sem permitir que aquela força espiritual se faça densa, ou melhor, deixando que esta força desentupa tudo. Isso seria possivel se tomássemos a perspectiva da cristalização da consciência de escala. É necessário que formalizemos outra referência para este conceito, pois ele tem sido usado, de forma generalizada, para significar exatamente conceito explicado anteriormente. A partir de agora, tomaremos o termo cristalização observando o próprio estado e desenvolvimento de um cristal. Primeiro, ele é fractal, ou seja, se expande de dentro para fora num processo que nunca termina, e que segue uma contínua manifestação de uma forma básica e simples, um padrão que busca ampliar-se em um sistema similar ås redes, em que a sua expressão última será o reflexo de seu movimento inicial. Continuando a nossa observação, percebemos que, diferentemente do coagulo modelar, que tem um desenho informe e impenetrável, o cristal revela uma qualidade reflexiva, transparente, multifacetada e expansiva. Essas qualidades podem muito bem caracterizar a maneira pela qual deveríamos nos colocar diante do nosso cotidiano, ou seja, uma reflexão escalar da consciência.


Nesta dialética da consciência da escala, o resultado não é a superação dos modelos, mas uma resignificação que, ao observar as suas contradições, compreende e revela as relações intríncecas, simultâneas e insuperáveis que esclarecem uma realidade. Acontece que é exatamente na pressão da escala por esta resignificação sobre os modelos em contradição que gera o contexto trágico que vivemos atualmente. E é aí que o exercício da consciência e a ação da intuição devem se apresentar.


É exatamente aqui que, forçados por uma mentalidade fragmentada, podemos perder a oportunidade de entender esta relação da pressão da escala sobre um modelo ao olhar para um dos mais importantes fenômenos atuais na nossa civilização que mostra justamente os resultados deste drama, a depressão. Como disse Jiddu Krishnamurti, "A sociedade é saudável para que um indivíduo retorne a ela? A própria sociedade não ajudou a tornar o indivíduo doente? Claro, o doente deve se tornar saudável, isso é óbvio, mas por que o indivíduo deveria se ajustar a uma sociedade doente? Se ele é saudável, ele não fará parte dela. Sem primeiro questionar a saúde da sociedade, qual é o bem de ajudar os desajustados a se conformarem à sociedade?"¹. Uma aproximação modelar ignora esta qualidade de uma sociedade doente e pode entender que a depressão é apenas uma incapacidade de sentir felicidade, uma situação intrinsecamente individual, que vigora numa tristeza profunda onde a pessoa fica o tempo todo tentando simular a felicidade e escondendo algo terrível sempre prestes a acontecer. Na verdade, o depressivo tem ambas, tanto uma trinteza profunda quanto uma felicidade profunda, o maior perigo da depressão é justamente não conseguir entendê-la como um fenômeno da consciência na escala dramática das sociedades contemporâneas e sucumbir na busca por um modelo que prometa eliminar uma, a tristeza, e manter a outra, a felicidade, o que é impossível. A partir dessa incompreensão é que surge a maior, talvez a única, constante preocupação em relação à depressão, Como o próprio Hillman sugere no seu livro "Suicídio e a Alma": "Há uma tentativa de atingir outro estado de ser através do suicídio. Há uma tentativa de transformação. Transformação, para ser genuína e completa, sempre afeta o corpo. Suicídio é sempre em algum lugar um problema do corpo"². Ou mesmo Albert Camus, no seu ensaio “O Mito de Sísifo”, ​​nos diz: “Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio”³.


É uma mentalidade fragmentada, da qual muitos psicólogos também são responsáveis, da busca de um modelo da felicidade constante que inventa, e até mesmo provoca, o risco de vida na depressão e nunca ela em si mesma. Mas gostaria de propor uma nuance, o depressivo não busca somente fugir da tristeza, como a mentalidade modelar acredita, muito mais amplamente ele busca aquela transformação da escala da tragédia humana, na qual está dramaticamente inserido, pela felicidade profunda que vivencia e, embora ainda não a reconheça, que vê totalmente possível, porém, imediatamente irrealizável. O tamanho da tristeza do depressivo é diretamente proporcional ao tamanho da sua felicidade, no entanto, são os modelos propostos por uma sociedade fragmentada que não aceitam a tristeza, forçando uma necessidade de eliminação da tristeza. Neste sentido, se olharmos para esta condição é possível perceber que, embora a necessidade de transformação tenha realmente um problema no corpo, no indivíduo, tem também aquela absurda pressão de seu ambiente, que talvez possa ser o fator principal dessa outra necessidade modelar, distorcida e fragmentária de transformação, ou melhor, o corpo acaba sendo insuportavelmente responsabilizando pela implacabilidade da exigência por realizar em si a transformação da qual um ambiente caótico, nitidamente, não irá aceitar mudança nenhuma, nunca. Mas é aqui, quando cessa a especulação, que uma outra dimensão deste drama pode resignificar a nossa existência. Diante desta consciência, que agora reconhece sua condição absurda, deixa de barganhar entre um modelo fragmentado e outro na busca por uma solução definitiva e assume sua escala, a sua condição de impermanência, algo profundo pode vir à tona, algo imprescindível que a própria depressão evocava e que o florescer da alma a cada instante renova, como o próprio Hillman especula: "Se você não está deprimido, você é anormal. Porque a alma sabe sobre as árvores que são destruídas, a feiura que está se espalhando, o caos da cultura de muitas maneiras. E de alguma forma se você não está de luto pelo que está acontecendo no mundo, você está exilado da alma do mundo. Nesse sentido, eu pensaria que uma depressão subjacente é u⁴⁴⁴m tipo de adaptação à realidade do mundo. A depressão abre a porta para uma beleza de algum tipo especial"4. 


Um outro fenômeno que observarei nesta crônica para desenvolver um pouco mais a compreensão daquilo que proponho ser o drama modelo/escala nos caminhos para sua equilibração e que tem a mesma qualidade do exemplo da depressão no que se refere à pressão de uma sociedade doente sobre um indivíduo que precisa ser saudável é a discussão atual sobre a atuação da PM de São Paulo. Antes de tudo é preciso entender que num contexto brutal a crítica pura, feita no vácuo, é impraticável e inútil. Bem, o modelo atual das ações em segurança pública tem raizes profundas. Não se pode deixar de citar, mesmo que algumas mentalidades modelares o odeiem, Michel Foucault, na obra clássica "Vigiar e Punir", em que afirma que houve uma mudança nessa abordagem, há aproximadamente 150 anos, quando se deixava de se punir a infração ao deslocar o alvo da ação correcional, que passou então a: "Dar aos mecanismos da punição legal um poder justificável não mais simplesmente sobre as infrações, mas sobre os indivíduos; não mais sobre o que eles fizeram, mas sobre aquilo que eles são, serão, ou possam ser"⁵. No entanto, para entender a necessidade de uma ação na escala desta tragédia e não apenas na proposição de trocas de modelo sem a equalização do ambiente, encontraremos outra vez em Camus, um dos grandes pioneiros da observação da escala da tragédia humana, no que ele escreveu em seu livro “O Homem Revoltado”: “A comunidade das vítimas é a mesma que une a vítima ao carrasco, mas o carrasco não sabe disso”⁶.


A escala de uma comunidade de vítimas de um ambiente inclui a todos e também inclui os seus carrascos, porém, estes não têm consciência desta sua tragédia exatamente porque desenvolveram uma mentalidade modelar fragmentada que justifica sua alienação e dissimula a sua responsabilidade. É interessante analisar as contradições entre os modelos de solução que são sugeridos quando uma crise, justamente criada pela própria qualidade da mentalidade modelar fragmentária, exige uma ação abrangente e integradora, porém, é muito raro encontrar uma aproximação que proponha a necessidade de uma consciência de escala da qual Camus nos alertou. Se a trágica realidade da nossa sociedade atual, que não aparenta nenhuma progressão espiritual, que está dilacerada entre miríades de modelos que não funcionam e se atrapalham, contudo, que nos une no mesmo drama e é responsabilidade direta de todos, sem nenhuma excessão, então, qual proposta que respeitasse aquela dimensão de escala que nos coloca na mesma condição, pode realmente ser efetiva, eficaz e eficiente? 


De toda essa condição que nos põe em risco, no perigo da nossa própria reificação, ao nos relacionar com os processos elaborados para a dissimulação das dificuldades do cotidiano, num movimento pendular em que são a um tempo vendidos pela propaganda e a outro impostos pelo poder. Dessa tentativa de manipulação das mentalidades, que expressa uma constante contradição entre a desatenção de uma poesia que nos embriagaria e a elitização de uma filosofia que nos distancia. Entre o teatro de uma arte despolitizada que nos torna promíscuos e a revolução pragmática que nos tira o riso. Entre a atual cultura de massa que nos espreme e modela, nos mói, aniquila e a alta cultura contemporânea que, de tão reservada, nos põe no lugar do não saber, do não ser, do não entender, surge a possibilidade de uma apropriação anárquica, da tomada tanto dos aparelhos materiais como dos instrumentos intelectuais que, ao tornarem-se obsoletos para a dominação tecnológica, que cresce em ritmo alucinante e não controla seu lixo, podem vir a cair nas mãos dos excluídos do conhecimento e dos seus processos de criação. Com esses refugos nas mãos, inicia-se uma resistência que constrói novas possibilidades para as velhas situações tecnológicas descartadas.


A formação moral do ser humano é um processo complexo, estabelece-se não numa ordem linear ou acumulativa, mas sim, numa organização dinâmica, fractal, atemporal que não pode ser controlada como não pode ser controlado o resultado de sua existência que se expressa na escala do que conhecemos como cultura da humanidade. A insistência nesse controle inventa modelos agressivos e causa polarizações destrutivas. Para intervir neste movimento e qualificar a formação moral é preciso desconstruir a mentalidade dos que pretendem dominar e também os sistemas fabricados por estes com esse fim. É preciso desconstruir também os ninhos de legitimação desta dominação internalizados em nós. Isto acontece, acredito, quando mergulhamos numa alteridade espiritual que evoca o estranhamento de nós mesmos, cotidianamente e num ritual de sacralização desta rotina como é próximo do artista que nega as tramas do imediatismo. 


Esta compreensão se estabelece através da aceitação de que somos espirituais quando ultrapassarnos as fronteiras do conhecido, do condicionado, do estabelecido. Expresso o termo espiritual arquetipicamente, na aceitação da necessidade de deixar o limitado para alcançar aquilo que é novo, que muitas vezes nos é possível aproximar, pela qualidade artesanal da consciência de si mesmo mergulhado na dramática realidade da escala de nossa existência. Como expressou Mikhail Bakhtin: "Fora de Deus, fora da confiança numa 'alteridade absoluta', são impossíveis a autoconsciência e o discurso sobre si mesmo, e isto não porque na prática estas sejam operações absurdas, mas porque a confiança em Deus é um elemento constitutivo, imanente à pura autoconsciência e ao discurso sobre si mesmo"⁷.


Vivemos em tempos de uma estética pavorosa de opressão pelos modelos que está sempre a denunciar inimigos em todos os cantos escuros da sua própria imbecilidade. Uma de suas principais armadilhas, a aceitação da dominação, na sua imposição pura, cria uma estética destrutiva que, como alerta Walter Benjamim, "tornou-se tão alienada de si mesma que consegue viver sua própria destruição como um prazer estético de primeira ordem"⁸. É a guerra cotidiana da indiferença violenta e da violência indiferente, entre vítimas e carrascos de nós mesmos, como é também a negação da ambiguidade sublime, ao mesmo tempo feliz e triste, viva na nossa própria alma.


A desconstrução dos modelos das mentalidades contraditórias que sustentam a violência, contra si e contra o outro, só pode ser elaborada por uma cristalização de uma específica consciência da escala nos processos artesanais de observação de fato a fato, de caso a caso, de proposta em proposta que, pelas suas escolhas lânguidas, desconfia das formas coaguladas do fazer, do sentir e do pensar, através da negação do frenesi da indústria, do consumo e, principalmente, pelo cultivo de novos espaços, livres da ansiedade das soluções modelares, plenos da atitude artística e política artesanal, cotidiana, numa atenção vagabunda pela diversidade das necessidades. Este não fazer, segura a porta aberta para a participação de tudo, de todos e, por isso mesmo, é uma forma politizada e libertadora de criação. É apenas o começo, um recomeço.




1.https://kfoundation.org/it-is-no-measure-of-health-to-be-well-adjusted-to-a-profoundly-sick-society/

2.Hillman,J. Suicide and the soul. 1985. p70

3.Camus,A.- O Mito de Sísifo. p07

4.https://youtu.be/V_sYFlhLrDY?si=c211zKTNd9Qj9MxU

5.Foucault,M., Vigiar e Punir. Petrópolis, Vozes, 1977. p20

6.Camus,A. L’Homme Révolté. 1951. p24

7.Bakhtin,M. Aesthetics of Verbal Creation. New York: Routledge, 2000. p159

8.Benjamim,W. "A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica" In; Teoria da Cultura de Massa. São Paulo:Paz e Terra, 2000. p254





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