A Alteridade Absoluta e a Gênese do Instante.
"Passa o dia e a noite comigo e possuirás a origem de todos os poemas,
Possuirás o bem da terra e do sol, (há milhões de sóis sobrando,)
Não mais tomarás coisas de segunda ou terceira mão,
Nem olharás pelos olhos dos mortos,
Nem te nutrirás de espectros em livros,
Também não olharás pelos meus olhos,
Nem tomarás coisas de mim,
Ouvirás todos os lados e os filtrarás em ti mesmo".
Walt Whitman¹
A serpente que come a si mesma eternamente é quem emoldura o espaço vazio onde a imagem arquetípica cria o seu próprio destino. A ilusão da imagem é para lembrar que não seria preciso dela se não fosse o medo de viver pelo instante, na insustentabilidade paradoxal da sua condição, como diz Gaston Bachelard: "A morte que emana da vida e a vida que emana da morte... deste modo a instituição alquímica descobre uma espécie de intimidade no símbolo da eternidade que constitui a serpente recolhida em si. É na mesma questão, através da lenta destilação do veneno no corpo da cobra, que se prepara tanto a morte do que deve morrer quanto a vida do que deve sobreviver"². Este seria e é, sem nenhum subterfúgio, mais uma oportunidade que pode expressar o drama entre o modelo e a escala: as imagens são os modelos em sucessão tentando simular o imensurável, tentando provar a sua continuidade horizontal e a intuição do instante é a revelação da escala vertical da eternidade em seu silêncio insuportável. Não é necessário que se anulem ou se superem, pois, são simultâneos, e este é exatamente o depoimento metafórico do oróboros, mas, é importante perceber que a escala inclui e é consciente do modelo, porém, não é possível que este seja consciente daquela. O modelo é mental e a escala é anímica.
Toda explicação é mitológica e surge a partir da contemplação do mundo. Toda materialização estética é metafórica. A apreensão inicial da existência é silenciosa. Pode-se ficar com ela ou elaborar imagens para aludir à sabedoria que se encontra diretamente, mas essas criações não são mais a visão original do conhecimento direto, são apenas modelos deste. Cria-se a própria imagem para evocar o instante, único posto possível para o encontro com a divindade, a escala, e depois consigo mesmo. Como expressou Mikhail Bakhtin: "Fora de Deus, fora da confiança numa 'alteridade absoluta, são impossíveis a autoconsciência e o discurso sobre si mesmo, e isto não porque na prática estas sejam operações absurdas, mas porque a confiança em Deus é um elemento constitutivo, imanente à pura autoconsciência e ao discurso sobre si mesmo"³.
A ordem inicial é para que cada indivíduo crie seu imaginário a partir de onde e como quiser e puder. A indicação deste enigma é para que se busque por si mesmo a pedra oculta, que é alcançável e disponível para todos sem exeção absolutamente nenhuma. Na singularidade, simplicidade e primitivismo do V.I.T.R.I.O.L. - “Visita Interiora Terrae Rectificando Invenies Occultum Lapidem”4- Explora o interior da terra, retificando, descobrirás a pedra oculta. Esta é uma fórmula célebre entre os alquimistas e que, de certa maneira, condensa a doutrina. É também o mesmo nome dado à flos coeli (flor do céu) o orvalho colhido pelo alquimista para realizar a obra alquímica: O Vitríolo vegetal, gordura do orvalho, espuma da primavera, princípio da vida celeste, manteiga mágica. Esta proposição é uma ordem fundante da insondável história da Alquimia, mas, aqui a aproximação é pelo seu aspecto filosófico, poético e metafórico. A realização alquímica que sugere mais uma realização espiritual, de encontro espontâneo com a rusticidade da alma (a consciência da escala) do que um sistema de técnicas científicas complicadas e da sistematização especulativa que algum de seus supostos praticantes desenvolveram (a mentalidade modelar). O momento da proposta da Alquimia que interessa aqui é, então, apenas o instante exato em que “Na noite escura o jovem buscador sonha. Os anjos o despertam para que dê início ao trabalho da Grande Obra”4.
Visitar o interior da terra é encontrar o mundo dentro de si. Renomear é dar a si mesmo o significado ao que se encontra, conhecer as coisas diretamente. A pedra oculta é o conhecimento direto e mudo do mundo que se dá, unicamente, pela intuição do instante. Para tanto, é preciso sempre recomeçar a nomeação do mundo de seu ponto mais antigo, e seu mais primitivo ponto, a origem de que fala o poema de Walt Whitman, é o de conseguir vivenciar as coisas sem o nome que lhes foi dado. Todavia, é impossível viver sem dar nomes às coisas, mas, é possível viver nos dois estados simultaneamente, retificando-os poeticamente. Retificar constantemente o nome das coisas é esta gênese do poema, que mantém a aptidão ao instante.
O eterno não é o que dura para sempre (como acredita a mentalidade de modelo), mas a absoluta ausência da própria possibilidade da continuidade (a consciência de escala). Exterminado esta sua noção já se está no eterno que só a idéia da continuidade dissimulava em sua teia de imagens. Quando o senso de duração e continuidade, o modelo, deixa de interferir, revela-se o que sempre é, a presença, a escala, no instante. A imagem, através da marcação da idéia de duração, cria a ilusão de o manter e paradoxalmente provoca sua queda porque mostra o que não é o instante. Mas o paradoxo desta aproximação é perigoso, pois, sugere simultaneamente que não é preciso e que é preciso da imagem criada para aludir ao instante. O que a imagem emoldura é o vazio, é o nada do eterno, e isso é o que se pode chamar de espiritual. O imaterializavel, o indisível, o irracional é o espiritual. Por isso a poesia é, na intuição do instante, espiritual e a sua novidade sempre instantânea, outra vez diz Gaston Bachelard⁵. A grande potência desse instante eternamente vazio que sempre escapa é essa compreensão poética do mundo e da vida pela sua contemplação. Materializar ou literalizar imagens é opcional após isso. A imagem não potencializa a compreensão, mas a compreensão faz isso pela imagem. Uma imagem ou uma brisa perfumada no caminho afetam na medida em que não se é mais somente um ser separado, modelo de personalidade, mas se é também esse instante, esta escala da alma. É aí que se encontra, quando não se é, o espírito da desrazão e do não durável. Quando se está na presença do instante, a ilusão da idéia da continuidade morre.
O poema somente é criado para retificar que o instante se instaura quando justamente se deixa de tentar demarcá-lo. O poema é uma isca para o silêncio e o colhe por inversão ao elaborar seu atavismo em imagens. Mas, neste sentido alquímico, quem suporta abandonar a idéia da continuidade não o faz porque isso é um mal, mas para redimensioná-la à sua importância no apoio à retomada da manifestação do instante. A origem de todos os poemas, de que fala Walt Whitman, está nessa possibilidade do instante que segrega essa sua permanência ilusória. É a pedra oculta, sempre o vazio, sempre escapa. O instante, na sua descontinuidade e desarticulação, é a negação da idéia da continuação cronológica e é isto o que gera a poesia. O importante é esse impulso eterno de que, toda vez que conseguir esquivar do aprisionamento do momento, já se encontra mergulhado na eternidade. Por isso a ambiguidade da imagem é perigosa. A sua maior virtude almeja o implacável vício de julgar-se imprescindível. Quando traz uma imagem dessa aventura momentânea é para a própria segurança; é porque tem medo de se perder num mundo sem continuidade. Nisso, constantemente está a emoldurar o vazio, que se é eternamente a criar imagens, porque assim tateando ingenuamente se consegue dar sentido à noção de continuidade ilusória que as próprias imagens fabricam uma após a outra. O grande trabalho então não é caçar o instante, o que somente o afastaria dele, mas domar a idéia de continuidade, pois é o que impede de ser o instante.
O paradoxo do oróboros nega a importância das imagens e afirma a importância das imagens. Afetam, são maravilhosas, mas não é preciso delas para se estar no instante eterno da existência, como sugere o "estar no mundo sem ser do mundo"⁶. Porém, é preciso delas para evocar ritualisticamente esse instante. Toda imagem é mística. No entanto, o místico não é o espiritual, mas apenas seu anseio. No âmbito espiritual somente há o silêncio, e este é o primordial sentido do oculto. É conhecimento instantâneo, não carece mais da tagarelice das imagens. As imagens que entornam o vazio que escapa só dizem do vestígio, dos rastros desse instante insondável de que a vida é. Embora atraentes, as imagens são, paradoxalmente, uma fuga daquilo mesmo de que mais tentam se aproximar. O que as imagens dizem sempre é da necessidade urgente de descartá-las. A imagem é sacrificial. Entrega-se para sua morte para deixar que o instante viva para sempre em seu não viver. Essa é a pedra oculta, o instante eterno, da presença do nada que esclarece diretamente e em silêncio.
Quando se percebe a épica aventura de um cisco voando pelo chão no caminho pretencioso de explicar um vazio que se autodevora, o mítico trabalho do verdadeiro poema consistirá numa impossível missão que obrigará a realizar duas jornadas simultâneas e ambas, tragicamente, sem nenhuma esperança de regresso. Enquanto o poeta se arrisca, envenenado pelo paradoxo da vida e da morte, num assombroso mergulho letal para a alma rústica, ousa uma árdua e fatal escalada ao espírito do mundo. Deverá sacrificar desta maneira a sua mediocridade pela sua graça nesse ritual, simultaneamente brutal e sublime, que dura todas as vidas, todo o universo, num único ínfimo instante.
1- Whitman, W. 2000.Canção de Mim Mesmo-Songs of Myself.São Paulo:Imago. p02
2- Bachelard, G. 2006. La Tierra e las Ensoñaciones del Reposo: Ensayo sobre de las imágenes de la intimidad.México:FCE. p313
3- Bakhtin,M. Aesthetics of Verbal Creation. New York: Routledge, 2000. p159
4- Carvalho, J.J. 1995. Mutus Líber, O Livro Mudo da Alquimia.São Paulo:Attar. p92 e p38
5- Bachelard, G. 2007.A Intuição do Instante.Campinas:Verus. p41
6- Evangelho segundo João,17:11,16