A Fronteira do Mal.
O veneno foi servido a todos, o seu antídoto, porém, só a quem sobreviveu. E este último, do que pode falar melhor, do veneno, do seu antídoto ou daquilo que estes lhe deu?
Se as monstruosidades que alguns humanos cometem provocassem sentir algo realmente, a felicidade nunca poderia existir. Enquanto o instinto animal no humano é uma árvore milenar enraizada, a intuição humana é apenas uma semente ao vento. Talvez a partir dos gregos, tudo o que ainda remanece de agressividade do animal, que neste é considerado normal, no humano começa a ser considerado maldade. A proposta do bem, da justiça, começa nesse processo de diferenciação entre o animal que era e o humano que se torna. E esta relação entre o mal e a justiça já nos pertence desde a individuação desse mal, na figura de Satan como a serpente¹ e a expulsão dos amantes do paraíso do qual, aparentemente, a serpente já fazia parte e continuou fazendo. A reação ao mal era o bem, era justiça implacável e a aspiração e manutenção da beleza imposta na punição a qualquer custo.
Então, em relação à humanidade atual, embora haja um senso comum a este respeito, não é que a maldade está tomando conta do mundo, é uma outra qualidade que faltava e que ainda está crescendo, pois, se a maldade é instintivamente animal, uma felicidade profunda seria fruto dessa nova intuição humanizada. Nesse tempo de justiça não existia o perdão, uma expressão humana que ainda não aparecia. Essa nasce depois no imaginário humano, há aproximadamente dois mil anos, seja este um evento histórico ou um arquétipo mitológico. Agora, com o Cristo, não se está mais em luta contra o mal, mas apenas o ignora, o mitiga pelo desprezo deste diante de uma nova qualidade humana, a bondade. Esta nega o mal, embora o reconheça, a justiça o equilibra, aplica um mal para devolver a maldade quando o aceita e o instrumentaliza em suas punições. A bondade exclui a punição e inaugura esse perdão. A bondade funda uma espiritualidade unificada enquanto a justiça era secular e baseada nas forças da natureza. A bondade é um fenômeno experienciado pela transcendência libertadora e a justiça é um númeno impositivo pelo destino fatídico. Sem o desprezo do mal, pelo poder do perdão, como no evento da tentação sobre a montanha², não teríamos mais que a vingança da justiça. A novidade absoluta da bondade crística não é uma ideia, uma ponderação, mas a força da ação diante da necessidade dos fatos. Não se apedreja uma mulher, não importa quem ela seja. Não se nega água e comida, não importa quem peça. Não se nega a verdade, não importa o que aconteça. E não se expulsaria ninguém do paraíso, pois essa nova bondade é o perdão total e a negação de toda e qualquer punição. As fronteiras da bondade estão definidas sobre a existência do mal. Na bondade quem é expulso, ou melhor, se auto exila pela sua própria incapacidade e fraqueza, é a maldade e não o engano. Este último é perdoado. Porém, antes de tentar entender como o mal permite a inauguração da bondade fundando a sua própria fronteira, seu próprio exílio, é preciso entender, sumariamente, o território da imaginação onde esse fenômeno de dá, porque nada que a consciência humana toca está fora da imaginação.
As Fronteiras da Imaginação
“Pretende-se sempre que a imaginação seja a faculdade de formar imagens. Ora, ela é antes a faculdade de deformar as imagens fornecidas pela percepção, é sobretudo a faculdade de libertar-nos das imagens primeiras, de mudar as imagens... Imaginar é ausentar-se, é lançar-se a uma vida nova.” Gaston Bachelard³
A imaginação tem fronteiras porque essa distorção só pode acontecer com as imagens que se percebe e a percepção humana é contida no universo, mas nunca poderá o conter. Mesmo assim, o conceito de fronteira não expressa uma borda, mas um estado. Não um limite, mas uma condição. O entendimento dessas fronteiras da imaginação obrigatoriamente deve, por esta sua própria condição abstrata, ser buscado através da consciência surgida direta e exclusivamente a partir das imagens, de metáforas e de seus arquétipos. Não é possível apenas racionalizar a imaginação, pois sua própria essência incorpora a irracionalidade. E a linguagem mitológica é o único estado que pode abranger a dialética entre racionalidade e irracionalidade, unificando a qualidade misteriosa da consciência humana. A seguir uma apresentação de duas de suas mais interessantes manifestações imagéticas das quais talvez a imaginação nunca ultrapassou em sua potência expressiva e reveladora, o prumo e o zodíaco. E por fim, uma aproximação à fronteira do mal para tentar caracterizar a qualidade da manifestação da bondade e seu impulso revolucionário para a humanidade atual.
O Prumo: A Alma no Centro da Terra.4
O prumo marca um ínfimo inicial para garantir a aterrizagem da alma, uma fronteira metafórica nas imagens anímicas. Mas o prumo não é o símbolo representativo da alma, é apenas o movimento da alma por essa imagem. Este aparece, deste modo, como um rastro das metáforas para a interioridade e a solidão do ser. Exprime um movimento, uma condição poética, do fenômeno anímico, interior, incorporado, mudo e subjetivo. Aponta para o ponto mais profundo nos vales do centro da Terra, como queda e mergulho. Esta imagem não fala da alma, mas de uma visão anímica do mundo. Embora seja também um importante elemento em sistemas organizados, ligado de maneira imediata à significação de equilíbrio construtivo e/ou retidão do esforço espiritual, é também considerado um “flexível símbolo da verticalidade”⁵. É uma imagem perdida no tempo e independente, liberada de qualquer tradição específica, um arquétipo puro. Se retirada dessa significação de um equilíbrio estabilizado para enfatizar sua qualidade de adaptação a um desequilíbrio iminente, o prumo não indica mais um estado de perfeição, mas sim a necessidade de um estado de vigilância, atenção e contemplação para que a alma possa se manter sempre diante do instante e assim vivenviar o eterno pela intuição e a imaginação. É a indicação do único ponto onde é possível a imaginação, no momento em que a alma se revela na intuição do instante. Esta se dá apenas onde não há equilíbrio e não há continuidade. Onde não há perfeição e não há duração. Porém, não importa o que aconteça, mostra que o instante estará, de algum modo, ali onde o prumo apontar independentemente da situação de seu entorno. Seja quais forem as variantes que venham a interferir, o prumo marca o ponto exato onde a alma deve encontrar o instante. Porque o prumo marca sempre uma verticalidade e essa é a principal qualidade da alma. Por isso o prumo não é a representação da alma, mas sim da sua qualidade, da sua potência. A fronteira do prumo é a situação da alma que se esconde no fundo do vale das imagens, mas, que deixa no seu fio um mote poético de sua presença que viaja entre o ponto mais profundo da Terra e o arco do firmamento mais aberto, a outra fronteira dessa imaginação, onde o espírito aparece com mais intencionalidade. Deste modo, é o fio do prumo que marca a extensão onde aparecem as imagens. É também uma indicação do mergulho até onde a imaginação deve chegar para encontrar seu mais delicado momento que desabrocha e que possibilita essas imagens. Não importa o que aconteça, vive-se sempre através das imagens, porém é importante saber que nunca se desvendará, como ser humano, o mistério que pode estar além desse ponto profundo da alma, além do que se é.
O Zodíaco: O Espírito no Arco do Firmamento.
É interessante notar que embora o prumo enfatize esse movimento da alma em seu caminho, já esboça a fronteira do espírito em segundo plano, ao expor o arco de onde pende e que sustenta o prumo. É o arco, o firmamento, o espírito onde se situa o zodíaco, visto de onde está a alma. O zodíaco, por sua vez, é um esforço em apresentar todas as possibilidades da manifestação desse espírito humano⁶. Uma fronteira que está nas imagens dos fenômenos do mundo e da qual o zodíaco é a sua metáfora máxima. É estética, na sua condição espiritual, exterior, objetiva e manifesta. É o seu pico mais alto, o cume imagético. Pode-se ver o zodíaco, observando a tradição mitológica do conhecimento, como a fronteira do mundo imagético, como nas tradições ocultistas onde representa o ápice espacial concreto do mundo humano, que se pode entender como a escala humana. O zodíaco seria, na verdade, como uma fronteira metafórica do mundo estético. Porque, só é humano o que é imaginado e para além do zodíaco não são criadas mais explicações mitológicas acerca do universo metafórico humano. Talvez uma prova disso seja a nomeação das novas descobertas que não recebem mais nomes mitológicos, mas sim numéricos, pois, a maior distância dada pela tecnologia parece não provocar tanto a imaginação fora dessa escala humana misteriosa. Como na imagem do prumo, o zodíaco não é a representação do espírito, mas a expressão de uma condição deste. O zodíaco é a metáfora da visão espiritual do mundo onde a vida humana é possível.
Assim, as fronteiras da imaginação estão neste espaço entre a Terra e o zodíaco, tanto materialmente quanto metaforicamente. E se a Terra não é o centro do universo é, certamente, o centro de onde parte a imaginação sobre este universo. É neste centro, a Terra, aqui visto do espírito, o zodíaco, que ao mergulhar se chega ao ponto que apontava o prumo. E é neste arco, o zodíaco, na visão da alma, que a Terra vislumbra o espírito. Assim, cada uma das duas imagens que se relacionam como fronteiras, mesmo ao enfatizar o seu aspecto específico, mantém a presença da outra para testemunhar a extensão que vigiam, a imaginação. As duas falam do campo em que a imaginação criou tudo que existe no mundo humano. Uma é a língua da alma, o prumo, a Terra, e a outra, o zodíaco, as constelações, é a língua do espírito. A imaginação vive cotidianamente sob esse enquadramento, dentro destas fronteiras, neste instante eterno, onde cria a sua essência e a sua experiência.
O Quatro, a Décima Terceira Constelação e o Demônio
"O doze é um número glorioso, é a manifestação da Trindade nos quatro cantos do horizonte”. François Chaboche⁷
O importante sobre o quatro, e a décima terceira constelação, é demonstrar também uma qualidade arquetípica comum a esses elementos imagéticos de sempre atuarem da obscuridade como possibilitadores da manifestação das coisas. Estas duas imagens reafirmam aquele conceito do exilado que proporciona a demarcação de uma fronteira imagética. Quando se olha a tetraktys pitagórica, por exemplo, visualiza-se um triângulo, uma trindade, mitologicamente relacionada ao mínimo, aqui em relação à alma, para a manifestação da vida na Terra. O quatro, nesta imagem, contém e protege a trindade e a conduz à manifestação daquela mesma qualidade anímica revelada no prumo. É o quatro que faz com que existam os três espaços da trindade na tetrákts quando os separa. É o quatro quem cria as fronteiras do três. Nesta qualidade de contenção é o quatro, também, como lembra Carl Jung, que “preferiu ficar por aí, em algum lugar, atrás ou embaixo”⁸. Sua condição é, em relação ao três, de contenção, de fechamento, delineamento do que é, não sendo. Se muitas vezes seu aparecimento indica essa totalidade é apenas em consequência dos espaços que permite e nunca de uma noção de infinitude. Para que a trindade se manifeste o quatro se exila na sua própria fronteira.
A décima terceira constelação, o Ophiuchus, ou Serpentário⁹, é outra situação imagética que ajuda a demonstrar a atuação destas fronteiras que permitem a manifestação de uma expressão imagética, porém, sendo consideradas exteriores numa espécie de banimento. Esta é também uma imagem que está excluída, neste caso se relacionando ao espírito, o zodíaco. Na época da constituição oficial do arco zodiacal, embora essa constelação já fosse conhecida, ficou de fora por estar longe da eclítica e, assim, não foi incluída. O que interessa aqui é que sua imagem revela sua própria situação. Esta imagem também decidiu “ficar por aí”, banida num exílio. E, assim como o quatro contém a trindade, para que existam doze constelações é necessário que existam treze bordas, pois o doze está dentro do treze. O treze cria as fronteiras do doze. Um ser humano segurando uma serpente que se enrola em seu corpo. Essa mesma situação da imagem do Serpentário é também expressa pelas imagens antiquíssimas do Bastão de Esculápio e do Caduceu. Aqui é a figura humana que contém a serpente, a controla, mesmo com o visível movimento dessa serpente dificultando essa atitude. É a única imagem dessas constelações zodiacais em que existe uma relação conflituosa e que, de certo modo, indica um perigo. Bem, o que é o quatro, quem é a serpente, aquele que se exclui, que delimita e provoca um fenômeno mesmo sem participar deste, que “preferiu ficar por aí, em algum lugar, atrás ou embaixo”, à espreita?
Finalmente, para entender a força da bondade temos que encontrar as fronteiras do mal e, definindo os seus contornos, temos que entender o demônio que é desprezado pela bondade. Para tanto, pode ser interessante guardar duas outras qualidades dessas imagens da manifestação daquilo que atua nessa espécie de clandestinidade e que são também controladas nas suas fronteiras. O quatro preferiu ficar por aí, atrás ou embaixo. A décima terceira constelação é a figura de um humano controlando uma serpente. O quatro, é um renegado que ignora, a serpente, uma entidade fugidia que convence.
Estas atuações mostram duas faces que podem ser relacionadas com duas das mais influentes e conhecidas entidades demoníacas da modernidade, uma é Arimã e a outra é Lúcifer¹⁰. Ainda inspirado no conceito da fronteiras, da alma ao espírito, as descrições desses arquétipos da manifestação espiritual do mal se relacionam diretamente a dois conceitos anímicos ligados a esta mesma manifestação, do medo e da ilusão. Antes de revelar a qualidade espiritual daquelas duas entidades mitológicas é importante descobrir a essência destes dois estados anímicos, pois, a relação entre os dois extremos mostra o espaço entre as fronteiras do mal onde a atuação da bondade se manifestará. Estes últimos, o medo e a ilusão, falam das marcas do poema da vida que se perdem nas divagações do futuro e as tonalidades das imagens que somem na angústia do passado. Por isso, esse movimento é eternamente recriado a cada possibilidade, num esforço para ser compreendido. É um conflito, consciente ou não, entre essa racionalidade e a irracionalidade da imaginação, para negar a opressão dessa ilusão do futuro, desse medo do passado e não se afastarem da presença, do instante desconhecido ao criar imagens, ao imaginar. A imaginação fascina, e esse fascínio é sua própria essência. Ela é o exercício de viver e amar esse presente que não se pode prender porque escapa. Ela é o vestígio desse viver que se perde sempre, dessa morte vivente que cerca e da qual se é parte. E esta é uma condição pura da qualidade sacrificial da imagem. Porém, somente o desconhecido é vivo. Somente a situação imaginativa, nas fronteiras de seu movimento poético/estético, dá qualidade à experiência de ser humano. Quando o viver é equânime ao desconhecido, ao revelar não a impossível visão da sua face, mas ao partilhar o espanto em relação a ela através das imagens, surge a felicidade da eternidade insuperável, que é a proposição da bondade. Tudo aquilo que se cria é apenas e tão somente uma tentativa de elaborar uma explicação deste impacto, desse espanto. Tudo o que se cria é imaginação, que se desenvolve na irracionalidade de um delírio e de uma revelação.
“Todo delírio é revelador, e toda revelação, delirante”. James Hillman¹¹
Continuando, para alimentar a imaginação sobre aquelas duas entidades arquetípicas, não é necessário definir o lugar do mal, tampouco explicar porque a maldade existe. Mas, talvez seja importante sugerir uma percepção de como essas fronteiras específicas aparecem. O mais importante, porém, não é denunciar o aparecimento do mal em certos momentos ou impressionar a todos com essa aparição, mas apontar como esse arquétipo é dominado pelas disposições poéticos/estéticas fronteiriças que atuam em função da possibilidade da manifestação daquela novidade da bondade. É então possível literalizar essas condições do mal, através de duas manifestações expressas em performances musicais, em que muitas vezes manipulam a expressão dessas entidades malignas em benefício próprio, de dois dos maiores grupos da música, escolhidos aqui simplesmente por serem capazes de reunir um grande público em suas apresentações, mobilizar as maiores e mais custosas estruturas para espetáculos, o U2 e o Rolling Stones.
Da banda U2 na canção “I Believe in Father Cristimas” há a atitude imagética arquetípica que demonstra a energia arimânica sob controle, no momento exato em que poderia ser tomada em função dessa criação artística para o entendimento do impulso da bondade. Essa energia é descrita por como uma potência de possessão. Porém, na obra, é possível associar essa afirmação com esse mesmo teor, mas, em uma noção que propõe um sentido inverso. É o imaginador que impõe uma possessão à energia arimânica ao dominar o medo e questioná-lo. A performance expressa a dominância sobre o medo e a frieza, apresentada numa iluminação como a de um gelo azul, associada a essa entidade que acaba sendo possuída pela expressão artística da apresentação porque é revelada.
"Disseram que haveria paz na Terra
Mas ao invés disso, apenas continuou a chover
Um véu de lágrimas para o nascimento da Virgem...
...E eu acreditei no Pai do Natal
E eu olhei para o céu com olhos ansiosos
Até que eu acordasse com um bocejo na primeira luz do alvorecer
E eu vi ele e através de seu disfarce
Eu lhe desejo um Natal cheio de esperanças
Eu lhe desejo um corajoso ano novo
Que toda dor agoniante e tristeza
Deixem seus corações e limpem as suas estradas
Disseram que haveria neve no Natal Disseram que haveria paz na Terra
Aleluia, Noel, seja no Céu ou no Inferno
Cada um tem o Natal que merece."
Na outra atuação, da banda Rolling Stones na canção “Sympathy for the Devil” está a situação arquetípica luciférica. Outra vez, este arquétipo discorre sobre esta energia demoníaca, porém, como uma potência de sedução. Aqui, da mesma maneira que na performance anterior, ocorre uma inversão e a dominação da ilusão e do calor pelo imaginador, expressa numa apresentação tomada por uma iluminação como o fogo amarelo, que a coloca também a seu serviço. A sedução é dominada quando se torna a própria apresentação da banda.
"Prazer em conhecê-lo
Espero que tenha adivinhado meu nome
Mas o que o está confundindo
É somente a natureza de meu jogo (Quem? Quem?)
Assim como todo policial é um criminoso
E todos os pecadores são santos
E cara é coroa
Simplesmente me chame de Lúcifer
Porque preciso de alguma amarra
( Quem? Quem?)
Então se encontrar-me
Seja cortêz,
Seja simpático e tenha bom gosto
(Quem? Quem?)
Use de toda etiqueta que conhece
Ou então tomarei sua alma
(Quem? Quem?)"
Nas duas aparições o ser humano controla a energia da serpente em função da imaginação, como na constelação do serpentário. Nestas situações imagéticas se pode vislumbrar uma condição psíquica mais aprofundada do como poderia ser a relação da bondade com o mal, com a esfera infernal, porque as entende, expõe, elucida e domina. Esse aprofundamento se dá através de uma potência poética de profanação muito comum às manifestações artísticas. Isso é muito importante aqui, pois pode mostrar o movimento que faz com que o mal seja dominado em função de uma necessidade humana e, assim, transforma-se em uma energia que será fundamental para todos os processos da imaginação humana, numa reflexão sobre os valores e a moral, na transgressão do próprio mal. Porque não é possível eliminar o mal da existência, mas é possível encontrar a sua posição, manter as suas fronteiras, colocando-o assim num lugar onde seja importante na compreensão da vida. Não é o crescimento do mal que domina o mundo, mas o abandono da ação da bondade. O lugar do mal é sempre o mesmo, porém, a ausência da manifestação da bondade faz com que, proporcionalmente, a maldade se torne mais evidente. Como na tentação do demônio no topo da montanha, é a aceitação ou não das propostas do mal que definem a sua exata dimensão.
"Não faço o bem que quero, mas faço o mal que não quero”. Paulo de Tarso¹²
Para mitigar o mal, não é nada necessária uma infindável batalha contra a sua existência, pois, sendo esta mesma existência uma condição para a própria manifestação da bondade, isso o fortalece ainda mais, porém, bastaria apenas cultivar a bondade. Sem este cultivo consciente, o fundamento de toda a manifestação do arquétipo do Cristo, fica-se eternamente preso nessa fronteira entre esses dois momentos que, embora possam declarar seu antigo desejo da vingança pela justiça, nunca mergulharão na promessa apaixonada da bondade e de sua profunda felicidade no perdão.
1- Genesis, 3
2- Mateus, 4
3- Bachelard, G. 2001. "O Ar e os Sonhos". São Paulo: Martins Fontes. p1
4- Trechos reconstruídos a partir de: Catani, F.H. 2011. "Uma Visão da Alma Artística". Dissertação de Mestrado. Campinas: FE-Unicamp. p15
5- CHEVALIER, J.& GHEERBRANT, A. 1992. Dicionário de Símbolos.Rio de Janeiro:José Olympio. p432
6- A partir de algumas palestras de Rodolf Steiner, que é também um dos maiores estudiosos da obra de Goethe: https://www.fourhares.com/anthroposophy/twelve_senses.html. The Notebooks of Rudolf Steiner, Watari & Kugler, eds, Watari Museum of Contemporary Art, Tokyo, 2000, pp84-86
7- CHABOCHE. 2005. "Vida e Mistério dos Números".São Paulo: Hemus
8- Jung, C. 1994. "Interpretação Psicológica do Dogma da Trindade". Petrópolis: Vozes. p53
9- https://planetario.ufsc.br/a-polemica-do-13%C2%BA-signo/#:~:text=Ofi%C3%BAco%20%C3%A9%20uma%20constela%C3%A7%C3%A3o%20um,a%20Escul%C3%A1pio%2C%20deus%20da%20medicina.
10- Prokofieff, S. 2018. "O Encontro com o Mal". São Paulo: Antroposófica
11- Hillman, J. 1993. "Paranóia". Petrópolis, RJ: Vozes. p56
12- Romanos, 7:19