Doxa, Episteme, o Modelo Tecnológico e a Escala Artesanal de Hayao Miyazaki.
Doxa e episteme são dois conceitos clássicos nas discussões sobre conhecimento e produção cultural humana, porém, contemporaneamente muitas vezes são entendidos de uma maneira maniqueísta por uma grande maioria. Muitos afirmam simplesmente que doxa é a opinião do senso comum e episteme o saber científico sistematizado. Porém, além de não ser possível haver episteme sem doxa e muito menos doxa sem episteme, há algumas nuances muito significativas. Na aproximação reduzida doxa é, tanto quanto o preconceito contra as coisas do senso comum, carregada de uma conotação pejorativa e episteme é elogiada como sendo algo superior, erudito ou pior, algo puro. A questão é que, quando não se entende a complexidade da relação entre os dois conceitos, há o risco dessa redução e a redução é o principal elemento que faz o apego a uma explicação irrefletida qualquer se tornar nocivo. Na verdade, se aceitamos a complexidade desta relação, é importante ver doxa e episteme como perspectivas e não como qualidades. Num bom doutorado de Karen Franklin¹, é possível considerar esta aproximação e, através das suas análises sobre os conceitos de doxa e episteme em Platão, aceitar que podem ter este significado muito mais ampla. Uma confirmação disso é que pode haver uma invenção altamente científica e com tecnologia de última geração, como a inteligência artificial, com uma perspectiva doxa e, por outro lado, encontra-se manifestações completamente artesanais e totalmente intuitivas, como o artesanato japonês, com uma perspectiva episteme. É melhor entender que doxa é a perspectiva de modelo e episteme é a perspectiva de escala.
E este é um dos assuntos que também pode ajudar a esclarecer aquilo que eu chamo de drama modelo/escala, principalmente nesta relação dramática entre tecnologia e artesanato, assim como para demonstrar que este é um fenômeno que permeia todas as atividades humanas. Esta não é uma ideia inédita, apenas a proponho de uma maneira diferente, para tentar torná-la mais abrangente e também provocar uma atualização nos conceitos que, de tão instrumentalizados, aparentemente não funcionam mais. Uma visão que pode ajudar é a de Edgar Morin² sobre a complexidade e a redução diante dos movimentos do progresso, que podemos usar como base para enriquecer o desenvolvimento da preocupação com o tema que retomo nesta analogia arquetípica da relação entre mentalidade e consciência, modelo e escala, tecnológico e artesanal e por que não: doxa e episteme.
"Complexidade significa que a idéia de progresso, aqui empregada, comporta incerteza, comporta sua negação e sua degradação potencial e, ao mesmo tempo, a luta contra essa degradação. Em outras palavras, há que fazer um progresso na idéia de progresso, que deve deixar de ser noção linear, simples, segura e irreversível para tornar-se complexa e problemática. A noção de progresso deve comportar auto-critica e reflexividade". (MORIN, 2002:97).
Começemos imaginando um "iceberg" a deriva no oceano. Lembre de como é somente a sua ponta que aparece fora da água. A sua maior parte está sempre submersa. É assim que Edgar Morin (2002:21) cria uma metáfora para dizer sobre a grande influência que as concepções de realidade, os paradigmas e as teorias do conhecimento, historicamente incorporadas pela humanidade, têm sobre as escolhas aparentemente neutras que a ciência moderna têm feito, e até mesmo sobre os pensamentos corriqueiros e ações imediatas. Ao observarmos desatentamente para a superficie dos fenômenos, sejam naturais ou culturais, podemos não relacionar esta visão com o resto do contexto, que está submerso, mas que afeta fundamentalmente essas escolhas e esses pensamentos. Desta maneira, quando olhamos para uma determinada paisagem cultural como, por exemplo, a relação da mentalidade do progresso nos modelos tecnológicos com a resistência da consciência da escala humana artesanal, poderiamos começar a pensar quantas coisas se interrelacionaram para que seja possível criar uma forma de agir e decidir diante das situações do cotidiano, que é justamente o cenário em que estas múltiplas influências se imbricam.
Por um lado, o projeto progressista da modernidade se gaba de ter herdado da ciência clássica, do iluminismo, a liberdade de certos dogmas e das explicações tidas como simplificadoras das religiões, mas, por outro, incorporou as suas assertivas lineares, cronológicas, redutoras, fragmentadoras e simplificadoras. Ao concordar com Morin, não acredito mais que haja um desenvolvimento em progressão geométrica, que melhore cada vez mais a situação das coisas. Talvez se consiga algo em uma área restrita, o que é muito interessante, mas isso é pouco para garantir que uma ação se justifique apenas pelos seus resultados limitados ao campo em que atua. Há uma necessidade de relacionar essa atuação com outras situações e reconhecer o quanto estas são afetadas e afetam também. Como exemplo se pode olhar para a relação doxa/episteme, ou seja, os métodos e a escala do conhecimento em que, da mesma forma que uma ação científica está intimamente ligada a uma concepção teórica do mundo e que esta concepção influencia a escolha dos objetos de estudo e dos resultados esperados, por mais que se negue isto ao tentar demonstrar ideologicamente que a ciência é neutra, a produção tecnológica tende a seguir esta mesma orientação e pode, enquanto trabalha com a certeza de que faz o melhor para a humanidade, perpetuar pensamentos preconceituosos, aniquilar originalidades na sua dimensão artesanal e ainda, como hoje em dia está evidente, ameaçar a própria vida no planeta.
A ação científica a que me refiro aqui e que tento caracterizar é aquela que aceita as formas de vida desumanizantes dessa sociedade industrial e de consumo a que todos nós estamos sujeitos pela coerção institucional e burocrática, como se isto fosse natural. É um movimento formalizante que organiza a manutenção do domínio da mentalidade do modelo sobre a escala ao banalizar a dinâmica complexa da consciência humana. Aquela mentalidade que não se auto-critica, ou que faz isto com hipocrisia funcionalista. É aquela que julga sempre estar em condições de prover aquilo que acredita faltar à sociedade mesmo estando ela própria cheia de falhas. É a da maioria, não artesanal, a que homogeneíza e simplifica sem entender o que a influencia. É aquela que não é conectada com a diversidade do real, mas que pode afirmar realidades arbitrárias.
Não há como saber de tudo com uma só certeza modelar, que constantemente reduz a consciência de escala. Quando os acontecimentos e os encontros com a ciência ou a cultura contradizem a nossa intimidade, pela própria qualidade de reinvenção entre um momento da vida e as exigências de outro, novo, é na própria identificação aos modelos das visões de mundo que perderemos as referências da clareza, pois estas são plurais, complexas, escalares. Porque, ver o mundo é, também, em alguns desses momentos, não poder lhe conferir um sentido razoável. É ainda Edgar Morin que consegue explicar muito bem essa condição reducionista da mentalidade modelar:
"A redução unifica aquilo que é diverso ou múltiplo, quer aquilo que é elementar, quer aquilo que é quantificável. Assim, o pensamento redutor atribui a 'verdadeira' realidade não às totalidades, mas aos elementos; não às qualidades, mas às medidas; não aos seres e aos entes, mas aos enunciados formalizáveis e matematizaveis. " (MORIN, 2002:27)
É interessante notar que quando se busca uma certeza unificadora acabamos por separar de forma irremediável os seus próprios elementos, como fez a ciência modelar positiva moderna, a partir de Descartes, mas, quando compreendemos a multiplicidade e a complexidade da escala da vida, parece que encontramos uma permeabilidade entre todas as coisas e conseguimos acreditar numa inter-relação que demonstre o quanto podemos pensar por uma noção de totalidade, porém, uma totalidade que deve ser ambiguamente diversa. Parece que é um impulso politicamente estético que se preocupa com as semelhanças entre os seres humanos, aquelas que os faz demonstráveis como um ser integrado e, independentemente de suas características mais superficiais, holístico. Este impulso, porém, corre o risco de se tornar uma indefesa ingenuidade neste panorama tão pseudorrealista do mundo contemporâneo em que tudo tem se tornado propaganda, entendida aqui como uma proposta de modelo. E o risco é deste impulso se tornar também propaganda ao procurar forjar e vender uma visão de mundo realista, ou seja, é na própria ação da propaganda que está a essência de um modelo de fabricação das suas imagens, desta visão falseada que é sempre feita de si mesma e sobre si mesma. Quando este esquema escapa dos processos artesanais da consciência, torna-se produto e se "desmancha no ar"³, perde sua potência de escala e reduz a qualidade da ciência e da cultura enquanto um fenômeno complexo.
Bem, esse movimento parece fabricar uma especificidade de estranhamento em nós: recebemos, num processo de inculcação modelar, uma ciência e uma cultura que poderia ser qualquer uma, mas que é essencialmente sempre externa, estranha, outra, porque isola, embora não completamente, a participação da originalidade de cada pessoa. Esta, acaba por ser assimilada numa troca entre seus próximos, mas que constantemente se estrutura num processo dolorido, por incorporar-se sem mesmo respeitar o que se passa com cada pessoa, pois, nesta civilização que exige um consumo tecnologicamente feroz, não temos mais tempo para refletir sobre as coisas, para que ninguém possa pensar, porque pensar é escolher e quem escolhe não compra por impulso. O modelo que instrumentaliza este impulso irrefletido numa produção de consumo não pode parar, e essa troca pede, de nossa parte, mostrar que somos apenas uma possibilidade a mais dentro das linhas de reprodução dessa mesma sociedade de consumo. Pois, com o fenômeno digital, somos produto também. Somos servos da propagação digital e nosso corpo e nossos dados, nós mesmos, a sua matéria prima. É aqui que esse estranhamento vem, nessa conceituação, da nossa impossibilidade em entender como nos tornamos tão artificiais, tão coisificados, tão vendáveis e tão compradores a ponto de por em risco a nossa própria existência no mundo, enquanto civilização. Este aspecto perigoso é bem explicação aqui:
"O progresso é acompanhado pelo seu contrário. Isso significa que o progresso não representa a dimensão total da sua realidade, sendo um aspecto devir, mas não o único. O progresso unilateral, como o de especialização, pode traduzir insuficiências que sabemos mortais". (MORIN, 2000:97)
As análises pontuais das sociedades, principalmente as realizadas a partir do desenvolvimento da Antropologia, podem demonstrar duas nuances interessantes quando se pensa na relação mentalidade conaciência: um reducionismo ilusório e um condicionamento amedrontado. A primeira, serve muito bem, para reafirmar a formação que tende sempre a aquela homogeneização, isto é, uma ilusão a formar mentalidades modelares, o que demonstra que as sociedades têm, muito em comum, e que as diferenças culturais podem ser apenas manifestações diversas da mesma substância humana que só uma consciência de escala poderia entender e reorientar. Em períodos da história em que se percebe variações profundas entre as sociedades, até mesmo ao analisar as sociedades mais distantes como as chamadas primitivas, o que até poderia demonstrar alguma especificidade muito diferente, aparentemente os objetivos conservam caracteristicas que sugerem ser similares: preparar o individuo para a vida em sua sociedade, para as exigências dessa sociedade, propondo extinguir qualquer manifestação de sua originalidade, pois seria justamente esta, quando deixada livre para agir, que poderia mudar o rumo do processo específico de cada sociedade, pelo menos ao negar-se participar dele quando não se sentisse bem com isso. Este reducionismo parece então ser uma característica constante.
Outra nuance que se pode observar neste movimento é que, em momentos de choques entre culturas, são exatamente as portas fechadas das tais culturas específicas que causam as crises civilizatórias e não exclusivamente sua diversidade, ou seja, não é por serem diferentes que não se aceitam mutuamente, isso é só uma parte superficial da questão, a parte profunda talvez seja que, não se admitem pelo medo de perder a segurança que a mentalidade oferecida pela própria cultura, aquela que já se conhece e que facilita a aceitar em suas agressões e enquadramentos, por ser generalizada, por transmitir a propaganda de conhecer como viver, dissimula esse medo, através da ilusão que o condicionamento provoca. Assim, a cultura onde se está imerso pode garantir uma mentalidade de estar mais protegido do que em outras. Com esse processo nos afastamos cada vez mais de uma criação individual, de uma tentativa de influenciar a nossa cultura com uma idéia inédita, ao ser condicionados a apenas reproduzir seus legados.
No fundo se pode dizer que a mesma coisa acontece, também de uma maneira arquetípica, em todos os cantos do mundo em que seres humanos se reúnem em sociedade: aceitar essa dor da homogeneização em detrimento da originalidade individual, por medo de mesclar com algo alterado. As sociedades estão, de uma certa maneira, a atravessar o tempo e perpetuar sua propaganda mesquinha, porém, contraditoriamente sempre alardeada como a única original. Já houve e ainda há uma infinidade de culturas neste planeta, e todas procuram achar uma maneira de identificar a justiça ou a impropriedade das suas ações dentro de si mesmas, o que acaba por construir uma sedimentação de escolhas históricas, que muitas vezes passam a ser reforçadas em todas as próximas gerações somente por essa necessidade de segurança no que parece ser a única questão do processo socializador realmente importante, a tradição, que surge como a resposta para a atávica questão filosófica, da qual dizia Leon Tolstoi: o que devemos fazer e como devemos viver?4
E aqui começa um interessante caminhos pelas sugestões de Jiddu Krishnamurti⁵. Este pensador é uma presença alternativa no contexto atual que, embora pouco entendido, mal entendido ou mesmo desmerecido e visto como mais um guru de meditação no movimento da autoajuda, representa o ponto mais amplo e possivelmente mais inédito em reflexões sobre nossa condição humana. Mesmo que desvinculado das hierarquias acadêmicas, ele é capaz de resignificar toda uma tradição de reflexões principalmente no que inclui a sua retórica dedicada ao “momento a momento”, à percepção daquilo “o que é”. Não são também conceitos inéditos, porém, a abordagem e a maneira como JK os aplica é totalmente inovadora, principalmente na sua proposta do “pensamento negativo”, ou seja, que é através da negação do falso que já estamos diretamente imersos no verdadeiro. De que se não devemos buscar positivamente a verdade, mas que a consciência da realidade é já um estado existente que apenas é desvelado no não esforço por alcançá-lo, sendo esta negação a sua própria açao libertadora e consciência revolucionária. São princípios profundamente importantes para a reinteração da compreensão do drama modelo/escala, pois, apenas desapegando da mentalidade modelar já estamos automaticamente imersos na consciência escalar. Ou seja, o próprio ato de colocar o modelo no seu devido lugar já é uma ação na escala. Ou ainda, entender a proporção de doxa já é agir na dimensão da episteme. Então, na reflexão que a negação da tradição, como condicionamento pela ilusão e a redução pelo medo, seja fundamental para uma tomada de consciência, este movimento deve se dedicar a aprender da sua observação direta dos fatos e do conhecimento de si mesmo diante de seu contexto imediato.
"Você pode descobrir a verdade somente se estiver disposto a dar toda a sua mente e coração a ela, não alguns momentos do seu tempo facilmente poupado. Se formos sinceros, encontraremos a verdade; mas essa sinceridade não pode depender de estímulo de nenhum tipo. Devemos dar nossa atenção plena e profunda à descoberta da verdade do nosso problema, não por alguns momentos de relutância, mas constantemente. É a verdade sozinha que liberta o pensamento de seu próprio processo de fechamento." (KRISHNAMURTI,1946:5a).
Questionando assim um certo aspecto da erudição, pois, diante da imensa produção de conhecimento hoje em dia disponibilizada, é intrigante entender qual quantidade deste saber seria suficiente, ou mesmo possível, de ser internalizada. E esta é uma problematização fundamental: que os principais problemas humanos hoje não são de modelo, mas sim, de escala, porque o contexto tecnológico e industrial da sociedade atual é de tal maneira sobre-humano, que qualquer proposição de reequilíbrio deve estar na dimensão artesanal de um alinhamento da ação, sentimento e pensamento. Ao mesmo tempo também é muito importante entender que, tanto a produção de conhecimento objetivo ou qualquer criação imagética subjetiva, tem sua gênese diretamente relacionada à potência imediata dos fatos e à maneira como nos aproximamos destes fenômenos, ou seja, qualquer análise fenomenológica, principalmente no que se refere ao progresso, deve sempre partir desta realidade.
E aqui se pode começar, depois destas analogias conceituais, a refletir finalmente sobre a questão dramática, e mesmo trágica, que surge desde o desenvolvimento da mentalidade industrial e a exploração dos modelos tecnológicos sobre a escala artesanal. Assim, já que as teorias modelares da tradição exigem que se deva decorar tudo antes de olhar para aquilo que a própria teoria inventada olhou para ser elaborada, então, mesmo sem descartar todo o conhecimento criado pela ciência e a cultura, por que não seria melhor olhar diretamente para o fato que a teoria olhou ao fazer a teoria para realmente compreendermos o desenvolvimento do seu fenômeno? Para tanto é preciso começar pala compreensão, e aqui vem Gaston Bachelard a ajudar, da maior qualidade da consciência humana.
"O vocábulo fundamental que corresponde à imaginação não é imagem, mas o imaginário. O valor de uma imagem mede-se pela extensão de sua aureola imaginária. Graças ao imaginário, a imaginação é essencialmente aberta, a própria experiência da novidade. Mais que qualquer outro poder, ela especifica o psiquismo humano. Como proclama Blake: ‘A imaginação não é um estado, é a própria existência humana’”. (BACHELARD,2001:1)
Tudo é imaginação. O que faço para explicar o mundo é imaginação. Tudo o que faço tem um traço poético/estético. Percebe-se isso até mesmo as teorias científicas, que se carregam de racionalidade e pretensa exatidão, mas são tão mitológicas e metafóricas quanto aquele poema delirante perdido numa estante empoeirada. A mesma fé que é necessária ao imaginador na sua aproximação à mitologia, à metáfora poética é necessária para sustentar, por exemplo, a explicação da criação do universo numa grande explosão que ainda se expande a partir de um único átomo num espaço completamente indefinível. Ora, o trabalho atribuído ao que chamamos ciência é também um artifício de nomeação tão metafórico quanto qualquer outra idéia humana. Carl Jung aponta um incidente que pode esclarecer essa afirmação quando conta que o químico alemão Kekulé estudava a estrutura do benzeno e certa noite sonha com o Oróboros o associando ao círculo fechado do carbono (JUNG,1964:38). O que quero dizer é que os dois desenhos são metáfóricos e exatamente por este motivo é possível associá-los. O que importa é entender o impulso que criou as duas imagens, cada uma ligada a uma estética diversa, porém, imaginadas. É lá que estará a escala espiritual do instante. O impulso primitivo que imaginou o Oróboros pode ser o mesmo que imaginou o círculo de carbono. Acredito que seria uma grade ilusão pensar, por exemplo, que as fotos produzidas pelo telescópio Hubble⁸, podem desvendar os segredos do universo mais do que a imagem do próprio Oróboros. Para um estado mental racionalizante esta minha afirmação é um contrassenso, porém, as imagens do Hubble são tão verídicas quanto a imagem milenar do Oróboros. O que eu quero dizer é que, em termos do reconhecimento e do espanto diante da qualidade assombrosa da vida, ambas as imagens podem causar o mesmo e o Oróboros não é menos nesta relação. Pelo contrário, aquilo que antes sensibiliza para perceber melhor esse assombro é, primitivamente, o Oróboros, pois, sua especificidade em alçar a consciência de escala, por ser uma estupenda metáfora, é proporcionalmente maior do que as imagens do Hubble, que estão aprisionadas num modelo tecnológico de tradução. Isto é, sem a potência poética desencadeada pelo Oróboros, estas imagens do Hubble encerram, pela perspectiva da imaginação e se existissem sem aquela, pouco impacto. Essas máquinas são maravilhosas, mas, alijado da consciência na escala imagética, cujo guardião aqui é o Oróboros, não se vislumbraria a compreensão assombrosa da imensidão da vida fundada nessa imaginação. É necessário estar atento para não ver o Oróboros, ou qualquer outra imagem arquetípica, apenas como uma coisa primitiva e ingênua cujo poder de gerar conhecimento foi superada pelo progresso científico. Esta imagem atávica concentra toda a força do movimento da imaginação que construiu o próprio telescópio Hubble. Desde o Oróboros até as imagens do Hubble que são atribuídas ao universo, encontra-se momentos de mesmo peso e, muito mais além, talvez nunca seriam possíveis em separado.
Do mesmo modo, as religiões também são sistemas imaginativos de explicações, que apenas de tão elaborados, assim como a ciência que criou o Hubble, tornaram-se extremamente complexos e complicados. São o movimento da poética e da estética dos séculos sobre séculos. Quando vou a um desses lugares fantásticos de determinada religião, ligo-me à poesia específica que foi elaborada ao longo de muitos anos em um mesmo ritmo. Tudo o que as idéias falam existe de uma forma abstrata que só um impulso poético pode literalizar, estetizar, em suas metáforas, em seus arquétipos ou em seus objetos. É uma maneira artística de realizar a imaginação. Como todo ser humano, um buscador de explicações, um imaginador, o resultado de seu ímpeto é sempre uma fermentação poética que se materializa de alguma maneira numa arrumação estética, através dos inúmeros artifícios da habilidade humana que podem ser chamados de científicos ou artísticos. Sem essas modelos de compreensão haveria apenas um total silêncio. A distorção imaginativa da realidade imediata não sofre nenhum limite sobre como e o que pode atingir, contudo, está restrita entre as fronteiras de uma escala humana.
A elaboração da máquina, pelo matema, da estrutura mecanizada, raciocinada, projetada de uma forma ideal, não amplia nem diminui por si só o potencial espiritual do ser humano. Não amplia além do que amplia o Oróboros, o poema. A idéia de que foi superada a condição do Oróboros enquanto imagem em potencial, pela construção mecânica que daria a visão do universo em profundidade, seja qual for o argumento utilizado para justificar essa superação, não afeta o trabalho do Oróboros em alçar a consciência desse estado, dessa compreensão poética humana acerca da vida. O que oferece o Oróboros não é menor do que o que pode oferecer as imagens do universo criadas a partir do Hubble. Ao contrário disso, essas imagens são a própria ampliação causada pela potência que o Oróboros desencadeia e de que falou em primeira mão. Essa reflexão sobre o matema, relacionado ao poema, surge através da leitura de um pequeno capítulo de um livro de Alain Badiou, em que esse autor aponta essa possibilidade de uma condição dual:
“...duas vias, duas orientações, comandam aqui todo pensamento do Ocidente. Uma apoiada na natureza em seu sentido originalmente grego, acolhe em poesia o aparecer como presença advenante do ser. A outra, apoiada na Idéia em seu sentido platônico, submete ao matema a falta, a subtração de toda presença, e separa assim o ser do aparecer, a essência da existência... sem dúvida, o poema, ainda que interrompido pelo evento grego, jamais cessou...”(BADIOU,1996:107).
Esse brotar do matema, com essa caracteristica específica que aparenta o abandono da explicação delirante do mundo, ocorre muitos anos depois do evento grego. Acontece cruamente na sua retomada racionalista, no Renascimento. Porém, o interesse aqui não é trabalhar outras especulações sobre essas reflexões, mas, mais uma vez, inspirar a encontrar justamente um ponto de visão que testemunhe qualquer que seja das inúmeras elaborações modelares da imaginação pela observação de um movimento arquetípico ligado a uma consciência escalar primitiva. Um ponto em que se possa vislumbrar a alma da experiência humana, como a potência que imaginou tanto o poema quanto o matema. Por isso, o que importa aqui não é saber quando ou como o matema interfere no poema, ou vice-versa, mas entender o impulso da imaginação que origina o interesse profundo por expressá-los.
É então que alguns fenômenos, tanto de processos científicos quanto artísticos, podem ser interessantes para demonstrar essa condição, para constatar que habilidades antiquíssimas ainda são extremamente importantes, ou melhor, insubstituíveis mesmo situações extremamente tecnológicas. A modelagem em argila, por exemplo, uma das mais antigas habilidades da humanidade, é uma peça fundamental na elaboração do design de automóveis ultra tecnológicos da atualidade. Outro exemplo é a linguagem de sinais gestuais que em certas situações representa a única possibilidade de comunicação. Como acontece, por exemplo, no meio extremamente tecnologizado da aeronáutica ou das corridas automobilísticas como a fórmula 1.¹⁰
É na gênese desses processos artísticos que, por sua vez, desdobra-se esta possibilidade de resistência quando demonstra que a sua qualidade não está diretamente relacionada com o avanço tecnológico. A qualidade da imaginação aconteceu plenamente mesmo em épocas em que não existia o paroxismo tecnológico, este mesmo que ainda é proposto, pela herança do projeto da modernidade, como fundamental para o desenvolvimento da civilização. A influência da imaginação é a mais pura negação do cronológico-progressista-positivista porque não se pode descrever sua história simplesmente pela idéia do avanço, da evolução e do progresso. A criação imagética não é passível de análise mediante a lógica da superação, principalmente quando entendemos que as coisas podem ser encadeamentos, intra-significações e intersignificações, teias e redes, e que o movimento da imaginação nem de longe se identifica com as proposições que dizem que vamos sempre do menos para o mais, do pior para o melhor, do velho para o novo, do incivilizado para o civilizado, do não saber para o saber, do nada para o tudo ou até mesmo do pecado para Deus. Um bom exemplo, é a qualidade poética do filme "O Garoto", de Charles Chaplin. Embora a tecnologia atual seja outra e, talvez, melhor, esta obra cinematográfica não pode ser mensurada sobre a qualidade poética de qualquer outra obra da atualidade, pois isto seria realizar uma redução do potencial daquela. O que foi criado com o filme "O Garoto", pertence a esta obra, é insuperável, intransferível e intraduzível.
Antes de concluir um argumento sobre a crise entre modelo e escala, mentalidade e consciência, é preciso retomar agora um pouco dos conceitos de doxa e episteme. Principalmente naquilo que Platão organizou como uma limitação de doxa diante da qualidade de episteme, que é uma outra analogia que gostaria de fazer entre doxa e fantasia, num contraponto entre episteme e imaginação. Ou seja, a mentalidade de modelo tecnológico pode ser um fenômeno importante, porém, não alcança a precisão da consciência na escala da imaginação. A fantasia é uma expressão que tem o seu lugar, no entanto, nunca poderá superar a dimensão criadora da imaginação.
"Tanto no 'Górgias' como na 'República', surge o problema da doxa verdadeira como possibilidade de se manter a ação devida sem a precisão conceitual que a suporta. Isso implica que, em alguma instância da relação entre epistemologia e ética, é possível considerar a ação sob o ponto de vista de uma doxa verdadeira, mas isso não significa que esse tipo de saber poderá tornar-se fundamento ético em Platão". (FRANKLIN, 2004:resumo)
O trabalho artístico que apenas elabora uma fachada de equilíbrio é o da fantasia e este se afasta da imaginação porque esta busca ao contrário, o desequilíbrio. Assim como o trabalho da personalidade é diferente do trabalho da alma, pois, a personalidade é inventada e busca o convincente, o técnico, já o verdadeiro quando aparece é refletido, poético e injustificável pela sua própria condição anímica. É preciso diferenciar sempre uma situação fantasiosa que a personalidade comumente fabrica, de uma outra condição anímica típica da imaginação. A reflexão poética nunca foi e nunca será dedicada apenas à formatação de uma moralidade técnica como a fantasia. Como lembra Gaston Bachelard:
“Não é raro reconhecer nessas imagens poéticas uma consistência particular que não pertence a imagens reunidas pela fantasia. Elas são dotadas da maior das realidades poéticas: a realidade onírica." (BACHELARD, 2001:30)
Para finalizar, farei uma apresentação de duas manifestações de contradição entre os modelos tecnológicos e a escala artesanal. A primeira é a mais intrigante das novidades da massificação tecnológica, a chamada Inteligência Arrificial e suas invenções imagéticas. A IA só é capaz de produzir através de arquivos datados, mas nunca a partir de uma imaginação dinâmica. Ou seja, somente é capaz de inventar pela fantasia e nunca pela imaginação. Imaginar é algo que vai além da memória. Muito embora a incorpore, existem outros elementos que serão colhidos diretamente do presente, da realidade imediata e, por isso, inacessível à IA. As criações de IA se utilizam apenas do passado, que tecnicamente, são coisas mortas. E isto é bem evidente nas invenções desse modelo em que uma estranha morbidez pode ser constatada facilmente. A vida é beleza no sofrimento. Além das coisas produzidas por um modelo de IA serem mórbidas e fantasmagóricas, o IA parece só conseguir progredir o que é ruim. Na concepção que alerta que doxa pode até expressar uma ação devida, porém nunca poderá alcançar a qualidade conceitual de uma episteme, é esta mesma concepção que adverte que as invenções de IA constantemente renegam em princípio a própria consciência ética do processo criativo e a essência de seu fundamento. Uma IA nunca será capaz de refletir neste campo complexo porque é reduzida ao que é datado, de um passado inanimado que não é mais capaz de sofrer, pesar em compaixão, pois esta condição humana dinâmica só existe na intuição do instante, aquele único e absoluto lugar da imaginação, o presente.
O segundo e último impressionante exemplo para provocar a reflexão final sobre esta qualidade dual, este drama dilacerante entre a velocidade da tecnologia e a meditação artesanal, pode ser visto no documentário "Hayao Miyazaki e a Garça", sobre o processo criativo do artista e realizador do filme de animação "O Menino e a Garça". Entre todas as divagações filosóficas, que somente o próprio filme é capaz de desenvolver e que aqui não seriam ampliadas, há um importante detalhe, uma nuance que trata da dimensão desta fatalidade. Enquanto este seu último trabalho está na linha de frente dos mais avançados recursos tecnológicos para a criação de uma animação, ampliando todas as fronteiras dos modelos reprodutivos possíveis, tendo sido até mesmo premiado com um Oscar em 2024, toda a carga do trabalho criativo da sua imaginação está apoiada na escala dos seus esboços e que ainda são elaborados quadro a quadro e a lápis.
O homem imaginador em sua piedade política que surge em Hayao Miyazaki, que espera na dialética entre a sua tragédia irracional e sua redenção espiritual, na sua corporalidade mesma, romper com a estultícia da racionalidade que sugere que a humanidade progride e evolui linearmente e de que somos melhores do que outros seres humanos do passado somente porque fabricamos mais rapidamente as coisas. Que desvenda que a dimensão poética está fora desse jogo, ou melhor, o engole, como um de seus monstros, porque estes são de uma densidade atemporal e imensurável. Nega aquela fantasia do modelo tecnológico que confunde propositalmente quantidade com qualidade, que tenta dissimular seu projeto exclusivamente consumista, para reafirmar e reinventar uma imaginação absoluta em que a escala absorve e expande o real e o irreal sem nenhuma barreira. Neste seu último aspecto é, portanto, ponto de excelência contra a barbárie da desumanização de nossa escala, pois, se não podemos esperar que o imaginar lhe seja em si mesmo um antídoto, é improvável que este se ausente de qualquer processo com aquele desejo. É esta qualidade que é preciso desenvolver para criar espaço para a liberdade em decodificar as linguagens, o comportamento estético. Está também intrinsecamente ligado a esses processos humanos que, ao refletir sobre a realidade construída, permitem a manifestação e o desdobramento daquele fundamento ético e estético numa situação espiritual na sua vida e nas suas realizações. Onde a potência de sua obra evoca a totalidade de nossa própria existência, a sua doxa, a fantasia são as flores da imensa árvore milenar da imaginação, a sua episteme. Hayao Miyazaki é simultaneamente um deus, o herói e uma das pragas na sua própria obra, um genial e desapercebido demiurgo que amalgama toda a nossa tragédia e toda a nossa graça na ponta dos seus dedos. Como um guardião da escala artesanal da consciência humana, ao nos mergulhar na sua expansão onírica, no poder e na glória da unidade de nossa própria essência, ele nos explode a tampa da cabeça através da inevitável onipresença de sua imaginação total.
1- Franklin, K. 2004. "Os conceitos de Doxa e Episteme como Determinação Ética em Platão". Doutorado em Filosofia: PUCRGS.
2- Morin, E. 2002. "Ciência com Consciência". Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
3- "O sólido se desmancha no ar". Frase que aparece na peça Macbeth, de Shakespeare e é citado por Marx e Engels em seu Manifesto Comunista.
4- Citado em: "A Ciência Como Vocação". In: GERTH,H.H. e WRIGHT MILLS (1971)
5- http://www.jkrishnamurti.org/
5ª- Transcript of Talk 1, Ojai, 7 April 1946
6- Bachelard, G, 2001. "O Ar e os Sonhos".São Paulo: Martins Fontes
7- Jung, C. 1964. "O Homem e Seus Símbolos". Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
8- “Hubble – A Última Fronteira” (Hubble´s Final Frontier – SkyWorks Digital,Inc.)
9- Badiou, A. 1996. "O Ser e o Evento". Rio de Janeiro: Jorge Zahar-UFRJ
10- “Os Segredos da Fórmula 1: Domínio e Controle”, exibido pelo Canal Discovery Channel/Discovery Turbo.