27 de dez. de 2024

A Verdade é Reversa: Quatro Motes Para Uma Só Negação. (crônica)





A Verdade é Reversa: Quatro Motes Para Uma Só Negação.


O Sabichão.


"Achei que ele passava por sábio aos olhos de muita gente, principalmente aos seus próprios, mas não o era. Meti-me, então, a explicar-lhe que supunha ser sábio, mas não o era. A conseqüência foi tornar-me odiado dele e de muitos dos circunstantes... Daí fui ter com outro, um dos que passam por ainda mais sábios e tive a mesmíssima impressão; também ali me tornei odiado dele e de muitos outros". Sócrates.¹


É muito intrigante como uma expressão pungente nunca perde sua força no tempo. Nenhuma mudança é capaz de enfraquecer sua perspicácia e esta quase sempre fala exata e justamente de um fenômeno que é atemporal, mostrando que a superação tecnológica, que descarta, é ilusória em relação à consciência, que amplia. Um bom exemplo seria Elon Musk, atualmente, o tipo do sujeito que Sócrates visitaria quando tentava elucidar o enigma do oráculo que o apontou como sendo o homem mais sábio do mundo. Dizem que o filósofo fora condenado à morte por tentar ensinar filosofia aos jovens, mas talvez o motivo tenha sido um pouco mais extenso. Sócrates provocava os supostos sábios famosos para mostrar que, embora numa área específica até pudessem ter algum conhecimento, este conhecimento não lhes garantiria poder sobre os temas fora da área do seu saber, desmistificando assim sua aura de sábios e todo o perigo de sua arrogância. O conhecimento é, muitas vezes, apenas um bom esconderijo para a ignorância.


O Mandrake.


“Tenho que ver uma coisa mil vezes, antes de vê-la uma vez.” Thomas Wolfe.²


Uma grande obra artística qualquer fala da mesma coisa que qualquer outra pessoa poderia ver, a diferença é que ela fala e tenta falar melhor. Quando se vê o que é revelado todos podem reconhecer e o que impressiona é apenas a maneira como foi descrito. E o aspecto mais ambicioso desta revelação, deveria ser, que esta será revolucionária. Um artista contemporâneo, por princípio histórico, nunca deveria defender o poder, pois, isso seria e é, como por exemplo tem feito Caetano Veloso, um tremendo equívoco filosófico. Sendo verdadeiro em sua arte, seu papel está em ser um crítico denunciador audaz, no mínimo, das manipulações do poder ou, para os mais condescendentes, no melhor dos casos e no máximo, um ombudsman cético, porque um artista cúmplice é um artista estéril.


O Vingador.


"Todo santo tem um passado e todo pecador tem um futuro." Oscar Wilde.³


O criminoso cria tanto risco para si mesmo quanto põe em risco as outras pessoas. À polícia caberia proteger a coletividade da qual este criminoso faz parte pela capacidade de afetá-la e, protegendo o criminoso de si mesmo como faria para um suicida em potencial, restabeleceria o equilíbrio na sociedade. Mas um fenômeno inquietante existe aqui. Aquilo que diferencia a bondade da maldade não é, realmente, o querer bem ou mal a alguém, pois, desde entre as simples amizades do dia a dia até mesmo entre os genocidas de milhões de pessoas, são cultivadas tanto as raivas mais profundas quanto os maiores afetos possíveis, seja pelos seus companheiros de ideias, amigos de jornada, pais, filhos ou vizinhos do mesmo território. Um exemplo é a mentalidade contraditória que se expande entre os policiais brasileiros de que, como a daquele PM que arremessou um homem de uma ponte e que ao mesmo trabalhava como segurança em escola particular, existe uma guerra inevitável entre o bem e o mal que justifica ações desta natureza. Do mesmo modo que este PM não necessariamente faria mal aos alunos da escola, um assassino cruel pode ser ao mesmo tempo, e muitas vezes foi, um grande pai de família atencioso, como o caso do "ice man"4. Fazer o bem a alguém pode ser esperar e contribuir para que se mantenha uma situação de extrema injustiça, um mal social, que o beneficia em detrimento de outros, assim como fazer mal a alguém poderia, e é o que aquela mentalidade prega, fazer o bem à sociedade. A diferença entre o bem e o mal, aquilo que poderia definí-la precariamente, não deveria estar na limitação do cuidado exclusivo ou inclusivo, mas seria talvez entender a verdade complexa desta condição e, deste modo, seria a determinação para ver um fato verdadeiro que afeta coletivamente ao longo do tempo, onde todos apenas podem querer a imposição de uma solução individual imediata. Porém, se como dizem, só a verdade liberta, é preciso estar preparado, talvez por isso mesmo se confunda tanto o levar e dar vantagem com a bondade real e, também por esse motivo, nunca são resolvidos nem mesmo os problemas mais básicos da convivência social pela maldade aplicada. Pois, ninguém aceita facilmente ser contrariado e parece evidentemente sempre prever que, antes de ser libertado por uma verdade qualquer, pode ser que seja necessário sofrer um pouco até que se tenha a força para admití-la por completo e negar a própria convicção. Esse discernimento é o vetor fundamental para equilibrar a violência de mentalidade por uma possível consciência da bondade.


O Herói.


"Mas há crescimento de ser em toda tomada de consciência. A consciência é contemporânea de um devir psíquico vigoroso, um devir que propaga seu vigor por todo o psiquismo." Gaston Bachelard.⁵


A primeira vez que encontrei a frase Lux Umbra Dei⁶, foi num contexto atribuído a uma declaração de Albert Einstein. Conta a lenda que durante uma entrevista, questionado sobre o que seria a luz ele respondeu “A Luz é a Sombra de Deus”. Ao pesquisar descobri que Einstein, se falou mesmo isso, talvez houvesse citado o poeta John Addington Symonds que usa a frase em latim num título de um poema seu. Anterior ao poeta, esta frase está inscrita num relógio de sol de 1770⁷, embora sua origem ou autoria pareça ser desconhecida. Contudo, o que me interessa aqui é a sua carga poética e também o potencial que esta frase tem em afirmar o imenso paradoxo do qual gostaria de indicar que a imaginação é cria. O lugar em que sou jogado ao refletir sobre esta demanda é aquele que não carrega mais imagens, somente alimenta uma consciência silenciosa do instante. Neste vácuo de elaboração de imagens encontro a pureza da imaginação em um estado latente, antes que esta realize seu movimento. Esta frase é uma antimusa para o imaginador, que é justamente o que suscita o elemento que permeia o seu tema primitivo, pois este é aqui uma substância desencadeadora. Este silêncio total que fomenta a criação em seu instante ínfimo e eterno é um impulso constante que nega a necessidade de imagens, paradoxalmente, para criá-las. 

A sombra é um álibi da manifestação da luz. De que é o oculto que revela o aparecimento do exposto. Tanto do movimento do que é poético sombrio, que induz o estético, como no caminho inverso, o da estética luminosa, que afeta e envenena a compreensão poética do mundo. Nas fronteiras possíveis da escala da consciência humana, partindo desde a sugestão do V.I.T.R.I.O.L.⁸, refletir sobre esta frase é evocar a intuição do instante. A minha única possibilidade aqui é refletir sobre esse instante e, ou encontro um conhecimento negativo, ou seja, que até agora não produz uma imagem, ou a frase fica sem importância nenhuma. “Lux Umbra Dei” consegue me colocar no estado em que não sei exatamente se há a necessidade de elaborar uma imagem, posso, ao meditar nisso, manter-me o máximo possível em um silenciamento anterior e primitivo, uma fonte oca, onde o meu poema arcaico ainda não está, embora seja que o único lugar em que este poema se cria, mas, por acréscimo, ou seja, mesmo que nos encante assustadoramente a literalização do poema, este é apenas um subproduto desse encontro atávico. 

O imaginador, o apaixonado pela alma rústica, artística, é despertado e parte para retificar a sacralidade da sua vida, ao retomar constantemente a reflexão filosófica ingênua sobre os seus temas primitivos. Afirma neste ato que cada uma dessas potências atávicas, que podem ser conquistadas intuitivamente simplesmente na evocação desses temas, desencadeia neste ser imaginador os elementos arquetípicos fundamentais para o processo de criação de imagens que, simultaneamente, mantêm-no apto ao instante silencioso da presença mística do espírito do mundo. 

A alma artística não se apega aos seus projetos, mas sim à potência que pode mantê-los sempre latentes. Ficar a se deslumbrar com cada imagem criada por essa potência, sem entender sua grandiosa condição espiritual, faz apenas pular de uma referência à outra, de uma emoção fugaz à outra, de uma técnica à outra sem nunca encontrar sua fonte, a sua origem, a “sarça ardente”⁹. Assim, se é a imagem uma sombra necessária para viver pela alma artística, é esta a pedra oculta que o imaginador deve sacrificar à luz, por essa persistente evocação do eterno instante, o amor, nesse evento solene e ritualisticamente elaborado, ou seja, artístico. Para reequilibrar o mundo, o verdadeiro herói é aquele que abandona, ou pela escolha ou pela desgraça, sua mentalidade, sua crenças, sua tradição e não aquele que luta por estas. Diante do apego modelar do pensamento, do sentimento e da ação é que se perpetua a degradação escalar das sociedades. A condição humana é afetada tanto pelo bem quanto pelo mal, porém, a verdade está na escala da tomada de consciência pela negação dos modelos da mentalidade contraditória. O próprio ato de negar o falso já é a ação da verdade. Onde o conflito não está aí a verdade floresce. A luz da verdade é a sombra desse amor, que se revela sempre reversamente ao esforço por o possuir.





1- Platão. 2012. "Diálogos". São Paulo: Cultrix. p17

2- Wolfe, T. 1998. "You Can't Go Home Again": HarpPerenM.

3- Wilde, O. 2013. "Children In Prison: Every saint has a past, and every sinner has a future.”: A Word To The Wise.

4- Ver o documentário "The Iceman Confesses: Secrets of a Mafia Hitman" do diretor Arthur Ginsberg)

5- Bachelard, G. 2001. "A Poética do Devaneio". São Paulo:Martins fontes. p5

6- Este trecho está em: Catani, F.H. 2011. "Uma Visão da Alma Artística". Dissertação de Mestrado. Campinas: FE-Unicamp. p273

7- "LUX UMBRA DEI". A Luz é a Sombra de Deus. Inscrição encontrada em relógio de sol, sundial, da Dymock Church, Gloucestershire. 

8- Carvalho, J.J. 1995. "Mutus Líber, O Livro Mudo da Alquimia". São Paulo: Attar. p92: O V.I.T.R.I.O.L. “Visita Interiora Terrae Rectificando Invenies Occultum Lapidem”. Explora o interior da terra. Retificando, descobrirás a pedra oculta. Esta é uma fórmula célebre entre os alquimistas e que, de certa maneira, condensa a doutrina. É também o mesmo nome dado à flos coeli (flor do céu) o orvalho colhido pelo alquimista para realizar a obra alquímica: O Vitríolo vegetal, gordura do orvalho, espuma da primavera, princípio da vida celeste, manteiga mágica.

9- Almeida, J.F. de. (2001). "A Bíblia Sagrada". Barueri:Sociedade Bíblica do Brasil.








22 de dez. de 2024

Sem Fim (poema)

 



No máximo que se recolha

O infinito nunca lhe alcança

Cheio sem nada no imenso

Antes no denso perece


Depois no oco recomeça

Vazio com tudo no ínfimo

O eterno sempre lhe escapa

No mínimo que se expanda





20 de dez. de 2024

Do Erotismo Artesanal à Pornografia Tecnológica. (crônica)




Do Erotismo Artesanal à Pornografia Tecnológica.




O maior problema da deterioração de uma atividade humana está na perda da sua excelência artesanal, não na metástase de sua reificação e nunca será na repressão à proliferação do grotesco que pode estar a sua equilibração, mas na valorização de seu antídoto mais natural. Reprimir o vício sem nutrir o viço, além de enfraquecer o segundo acaba potencializando o primeiro. Como um exemplo, numa analogia poética, pode-se ter um olhar sobre os antibióticos. Sem dúvida são algo importantíssimo, porém, a maioria das infecções são proporcionalmente mais agressivas quanto mais surgem num contexto imunológico enfraquecido. Portanto, embora os antibióticos tenham sua função inequívoca, o equilíbrio de um organismo saudável faria com que sua utilização se restringisse a casos extremos em que a própria parcimônia traria, além do fortalecimento da saúde geral, a vitalização mesma de suas propriedades terapêuticas. Assim, embora o modelo do antibiótico seja verdadeiro, é também limitado se utilizado sem coerência com a escala do desenvolvimento de um contexto saudável que por sua vez, sendo deste incrementado, diminuiria a necessidade daquele. Neste mesmo sentido, a pornografia disseminada nas redes digitais é uma degeneração, mas não é inédita, só é diferente hoje na sua escala. E é perigoso pensar que a degradação está apenas no ato promíscuo das pessoas, pois, está também nas formas de condenação desses mesmos atos. Há um grande perigo também nesta determinação, desde a sua gênese, destes conceitos moralistas de salvação e danação. Este determinismo do julgamento coisifica tanto quanto a sua deploração. São impulsos do mesmo movimento, do mesmo trágico destino. A condenação brutal depende da falha, tanto quanto a falta monstruosa, de sua sentença. Esta é a aproximação que é necessária para redimir a mentalidade de modelo que sempre ilude oferecer uma solução, um remédio, que muitas vezes apenas amplia o problema, que esta mesma fabrica e que está constantemente a reforçar. É preciso abandonar o pensamento reducionista, que inventa as polaridades e suas batalhas apenas para acomodar os medos da sua responsabilidade inerente. O perigo da pornografia não está exatamente na metástase da afirmação da sua promíscuidade, ou seja, é a própria não compreensão da sua qualidade que faz a ploriferação de sua inicuidade, na medida da decomposição de sua significação. Do mesmo modo que a fatalidade de um corpo infeccionado está muito menos no poder de antibióticos, mas muito mais na necessidade de recomposição da capacidade de sua resposta imunológica. Há uma urgência, da mesma qualidade que reagiria a um perigo mortal, por uma reflexão estética e uma ação política, ambas pela piedade e não pela inquisição, sobre a consciência de escala. Há que ser posta nas teorias e nas práticas, em todo canto, não importa antecipadamente como e não interessa prospectivamente até quando, pois, será imprescindível para sempre e em todos os lugares. É somente nesta sua nova dimensão anímica, numa consciência de escala abrangente, que será possível existir alguma nova e verdadeira revolução do espírito.






18 de dez. de 2024

Doxa, Episteme, o Modelo Tecnológico e a Escala Artesanal de Hayao Miyazaki. (crônica)





Doxa, Episteme, o Modelo Tecnológico e a Escala Artesanal de Hayao Miyazaki.


Doxa e episteme são dois conceitos clássicos nas discussões sobre conhecimento e produção cultural humana, porém, contemporaneamente muitas vezes são entendidos de uma maneira maniqueísta por uma grande maioria. Muitos afirmam simplesmente que doxa é a opinião do senso comum e episteme o saber científico sistematizado. Porém, além de não ser possível haver episteme sem doxa e muito menos doxa sem episteme, há algumas nuances muito significativas. Na aproximação reduzida doxa é, tanto quanto o preconceito contra as coisas do senso comum, carregada de uma conotação pejorativa e episteme é elogiada como sendo algo superior, erudito ou pior, algo puro. A questão é que, quando não se entende a complexidade da relação entre os dois conceitos, há o risco dessa redução e a redução é o principal elemento que faz o apego a uma explicação irrefletida qualquer se tornar nocivo. Na verdade, se aceitamos a complexidade desta relação, é importante ver doxa e episteme como perspectivas e não como qualidades. Num bom doutorado de Karen Franklin¹, é possível considerar esta aproximação e, através das suas análises sobre os conceitos de doxa e episteme em Platão, aceitar que podem ter este significado muito mais ampla. Uma confirmação disso é que pode haver uma invenção altamente científica e com tecnologia de última geração, como a inteligência artificial, com uma perspectiva doxa e, por outro lado, encontra-se manifestações completamente artesanais e totalmente intuitivas, como o artesanato japonês, com uma perspectiva episteme. É melhor entender que doxa é a perspectiva de modelo e episteme é a perspectiva de escala. 


E este é um dos assuntos que também pode ajudar a esclarecer aquilo que eu chamo de drama modelo/escala, principalmente nesta relação dramática entre tecnologia e artesanato, assim como para demonstrar que este é um fenômeno que permeia todas as atividades humanas. Esta não é uma ideia inédita, apenas a proponho de uma maneira diferente, para tentar torná-la mais abrangente e também provocar uma atualização nos conceitos que, de tão instrumentalizados, aparentemente não funcionam mais. Uma visão que pode ajudar é a de Edgar Morin² sobre a complexidade e a redução diante dos movimentos do progresso, que podemos usar como base para enriquecer o desenvolvimento da preocupação com o tema que retomo nesta analogia arquetípica da relação entre mentalidade e consciência, modelo e escala, tecnológico e artesanal e por que não: doxa e episteme.


"Complexidade significa que a idéia de progresso, aqui empregada, comporta incerteza, comporta sua negação e sua degradação potencial e, ao mesmo tempo, a luta contra essa degradação. Em outras palavras, há que fazer um progresso na idéia de progresso, que deve deixar de ser noção linear, simples, segura e irreversível para tornar-se complexa e problemática. A noção de progresso deve comportar auto-critica e reflexividade". (MORIN, 2002:97).


Começemos imaginando um "iceberg" a deriva no oceano. Lembre de como é somente a sua ponta que aparece fora da água. A sua maior parte está sempre submersa. É assim que Edgar Morin (2002:21) cria uma metáfora para dizer sobre a grande influência que as concepções de realidade, os paradigmas e as teorias do conhecimento, historicamente incorporadas pela humanidade, têm sobre as escolhas aparentemente neutras que a ciência moderna têm feito, e até mesmo sobre os pensamentos corriqueiros e ações imediatas. Ao observarmos desatentamente para a superficie dos fenômenos, sejam naturais ou culturais, podemos não relacionar esta visão com o resto do contexto, que está submerso, mas que afeta fundamentalmente essas escolhas e esses pensamentos. Desta maneira, quando olhamos para uma determinada paisagem cultural como, por exemplo, a relação da mentalidade do progresso nos modelos tecnológicos com a resistência da consciência da escala humana artesanal, poderiamos começar a pensar quantas coisas se interrelacionaram para que seja possível criar uma forma de agir e decidir diante das situações do cotidiano, que é justamente o cenário em que estas múltiplas influências se imbricam.


Por um lado, o projeto progressista da modernidade se gaba de ter herdado da ciência clássica, do iluminismo, a liberdade de certos dogmas e das explicações tidas como simplificadoras das religiões, mas, por outro, incorporou as suas assertivas lineares, cronológicas, redutoras, fragmentadoras e simplificadoras. Ao concordar com Morin, não acredito mais que haja um desenvolvimento em progressão geométrica, que melhore cada vez mais a situação das coisas. Talvez se consiga algo em uma área restrita, o que é muito interessante, mas isso é pouco para garantir que uma ação se justifique apenas pelos seus resultados limitados ao campo em que atua. Há uma necessidade de relacionar essa atuação com outras situações e reconhecer o quanto estas são afetadas e afetam também. Como exemplo se pode olhar para a relação doxa/episteme, ou seja, os métodos e a escala do conhecimento em que, da mesma forma que uma ação científica está intimamente ligada a uma concepção teórica do mundo e que esta concepção influencia a escolha dos objetos de estudo e dos resultados esperados, por mais que se negue isto ao tentar demonstrar ideologicamente que a ciência é neutra, a produção tecnológica tende a seguir esta mesma orientação e pode, enquanto trabalha com a certeza de que faz o melhor para a humanidade, perpetuar pensamentos preconceituosos, aniquilar originalidades na sua dimensão artesanal e ainda, como hoje em dia está evidente, ameaçar a própria vida no planeta.


A ação científica a que me refiro aqui e que tento caracterizar é aquela que aceita as formas de vida desumanizantes dessa sociedade industrial e de consumo a que todos nós estamos sujeitos pela coerção institucional e burocrática, como se isto fosse natural. É um movimento formalizante que organiza a manutenção do domínio da mentalidade do modelo sobre a escala ao banalizar a dinâmica complexa da consciência humana. Aquela mentalidade que não se auto-critica, ou que faz isto com hipocrisia funcionalista. É aquela que julga sempre estar em condições de prover aquilo que acredita faltar à sociedade mesmo estando ela própria cheia de falhas. É a da maioria, não artesanal, a que homogeneíza e simplifica sem entender o que a influencia. É aquela que não é conectada com a diversidade do real, mas que pode afirmar realidades arbitrárias. 


Não há como saber de tudo com uma só certeza modelar, que constantemente reduz a consciência de escala. Quando os acontecimentos e os encontros com a ciência ou a cultura contradizem a nossa intimidade, pela própria qualidade de reinvenção entre um momento da vida e as exigências de outro, novo, é na própria identificação aos modelos das visões de mundo que perderemos as referências da clareza, pois estas são plurais, complexas, escalares. Porque, ver o mundo é, também, em alguns desses momentos, não poder lhe conferir um sentido razoável. É ainda Edgar Morin que consegue explicar muito bem essa condição reducionista da mentalidade modelar:


"A redução unifica aquilo que é diverso ou múltiplo, quer aquilo que é elementar, quer aquilo que é quantificável. Assim, o pensamento redutor atribui a 'verdadeira' realidade não às totalidades, mas aos elementos; não às qualidades, mas às medidas; não aos seres e aos entes, mas aos enunciados formalizáveis e matematizaveis. " (MORIN, 2002:27)


É interessante notar que quando se busca uma certeza unificadora acabamos por separar de forma irremediável os seus próprios elementos, como fez a ciência modelar positiva moderna, a partir de Descartes, mas, quando compreendemos a multiplicidade e a complexidade da escala da vida, parece que encontramos uma permeabilidade entre todas as coisas e conseguimos acreditar numa inter-relação que demonstre o quanto podemos pensar por uma noção de totalidade, porém, uma totalidade que deve ser ambiguamente diversa. Parece que é um impulso politicamente estético que se preocupa com as semelhanças entre os seres humanos, aquelas que os faz demonstráveis como um ser integrado e, independentemente de suas características mais superficiais, holístico. Este impulso, porém, corre o risco de se tornar uma indefesa ingenuidade neste panorama tão pseudorrealista do mundo contemporâneo em que tudo tem se tornado propaganda, entendida aqui como uma proposta de modelo. E o risco é deste impulso se tornar também propaganda ao procurar forjar e vender uma visão de mundo realista, ou seja, é na própria ação da propaganda que está a essência de um modelo de fabricação das suas imagens, desta visão falseada que é sempre feita de si mesma e sobre si mesma. Quando este esquema escapa dos processos artesanais da consciência, torna-se produto e se "desmancha no ar"³, perde sua potência de escala e reduz a qualidade da ciência e da cultura enquanto um fenômeno complexo.


Bem, esse movimento parece fabricar uma especificidade de estranhamento em nós: recebemos, num processo de inculcação modelar, uma ciência e uma cultura que poderia ser qualquer uma, mas que é essencialmente sempre externa, estranha, outra, porque isola, embora não completamente, a participação da originalidade de cada pessoa. Esta, acaba por ser assimilada numa troca entre seus próximos, mas que constantemente se estrutura num processo dolorido, por incorporar-se sem mesmo respeitar o que se passa com cada pessoa, pois, nesta civilização que exige um consumo tecnologicamente feroz, não temos mais tempo para refletir sobre as coisas, para que ninguém possa pensar, porque pensar é escolher e quem escolhe não compra por impulso. O modelo que instrumentaliza este impulso irrefletido numa produção de consumo não pode parar, e essa troca pede, de nossa parte, mostrar que somos apenas uma possibilidade a mais dentro das linhas de reprodução dessa mesma sociedade de consumo. Pois, com o fenômeno digital, somos produto também. Somos servos da propagação digital e nosso corpo e nossos dados, nós mesmos, a sua matéria prima. É aqui que esse estranhamento vem, nessa conceituação, da nossa impossibilidade em entender como nos tornamos tão artificiais, tão coisificados, tão vendáveis e tão compradores a ponto de por em risco a nossa própria existência no mundo, enquanto civilização. Este aspecto perigoso é bem explicação aqui:


"O progresso é acompanhado pelo seu contrário. Isso significa que o progresso não representa a dimensão total da sua realidade, sendo um aspecto devir, mas não o único. O progresso unilateral, como o de especialização, pode traduzir insuficiências que sabemos mortais". (MORIN, 2000:97)


As análises pontuais das sociedades, principalmente as realizadas a partir do desenvolvimento da Antropologia, podem demonstrar duas nuances interessantes quando se pensa na relação mentalidade conaciência: um reducionismo ilusório e um condicionamento amedrontado. A primeira, serve muito bem, para reafirmar a formação que tende sempre a aquela homogeneização, isto é, uma ilusão a formar mentalidades modelares, o que demonstra que as sociedades têm, muito em comum, e que as diferenças culturais podem ser apenas manifestações diversas da mesma substância humana que só uma consciência de escala poderia entender e reorientar. Em períodos da história em que se percebe variações profundas entre as sociedades, até mesmo ao analisar as sociedades mais distantes como as chamadas primitivas, o que até poderia demonstrar alguma especificidade muito diferente, aparentemente os objetivos conservam caracteristicas que sugerem ser similares: preparar o individuo para a vida em sua sociedade, para as exigências dessa sociedade, propondo extinguir qualquer manifestação de sua originalidade, pois seria justamente esta, quando deixada livre para agir, que poderia mudar o rumo do processo específico de cada sociedade, pelo menos ao negar-se participar dele quando não se sentisse bem com isso. Este reducionismo parece então ser uma característica constante.


Outra nuance que se pode observar neste movimento é que, em momentos de choques entre culturas, são exatamente as portas fechadas das tais culturas específicas que causam as crises civilizatórias e não exclusivamente sua diversidade, ou seja, não é por serem diferentes que não se aceitam mutuamente, isso é só uma parte superficial da questão, a parte profunda talvez seja que, não se admitem pelo medo de perder a segurança que a mentalidade oferecida pela própria cultura, aquela que já se conhece e que facilita a aceitar em suas agressões e enquadramentos, por ser generalizada, por transmitir a propaganda de conhecer como viver, dissimula esse medo, através da ilusão que o condicionamento provoca. Assim, a cultura onde se está imerso pode garantir uma mentalidade de estar mais protegido do que em outras. Com esse processo nos afastamos cada vez mais de uma criação individual, de uma tentativa de influenciar a nossa cultura com uma idéia inédita, ao ser condicionados a apenas reproduzir seus legados.


No fundo se pode dizer que a mesma coisa acontece, também de uma maneira arquetípica, em todos os cantos do mundo em que seres humanos se reúnem em sociedade: aceitar essa dor da homogeneização em detrimento da originalidade individual, por medo de mesclar com algo alterado. As sociedades estão, de uma certa maneira, a atravessar o tempo e perpetuar sua propaganda mesquinha, porém, contraditoriamente sempre alardeada como a única original. Já houve e ainda há uma infinidade de culturas neste planeta, e todas procuram achar uma maneira de identificar a justiça ou a impropriedade das suas ações dentro de si mesmas, o que acaba por construir uma sedimentação de escolhas históricas, que muitas vezes passam a ser reforçadas em todas as próximas gerações somente por essa necessidade de segurança no que parece ser a única questão do processo socializador realmente importante, a tradição, que surge como a resposta para a atávica questão filosófica, da qual dizia Leon Tolstoi: o que devemos fazer e como devemos viver?4


E aqui começa um interessante caminhos pelas sugestões de Jiddu Krishnamurti⁵. Este pensador é uma presença alternativa no contexto atual que, embora pouco entendido, mal entendido ou mesmo desmerecido e visto como mais um guru de meditação no movimento da autoajuda, representa o ponto mais amplo e possivelmente mais inédito em reflexões sobre nossa condição humana. Mesmo que desvinculado das hierarquias acadêmicas, ele é capaz de resignificar toda uma tradição de reflexões principalmente no que inclui a sua retórica dedicada ao “momento a momento”, à percepção daquilo “o que é”. Não são também conceitos inéditos, porém, a abordagem e a maneira como JK os aplica é totalmente inovadora, principalmente na sua proposta do “pensamento negativo”, ou seja, que é através da negação do falso que já estamos diretamente imersos no verdadeiro. De que se não devemos buscar positivamente a verdade, mas que a consciência da realidade é já um estado existente que apenas é desvelado no não esforço por alcançá-lo, sendo esta negação a sua própria açao libertadora e consciência revolucionária. São princípios profundamente importantes para a reinteração da compreensão do drama modelo/escala, pois, apenas desapegando da mentalidade modelar já estamos automaticamente imersos na consciência escalar. Ou seja, o próprio ato de colocar o modelo no seu devido lugar já é uma ação na escala. Ou ainda, entender a proporção de doxa já é agir na dimensão da episteme. Então, na reflexão que a negação da tradição, como condicionamento pela ilusão e a redução pelo medo, seja fundamental para uma tomada de consciência, este movimento deve se dedicar a aprender da sua observação direta dos fatos e do conhecimento de si mesmo diante de seu contexto imediato.


"Você pode descobrir a verdade somente se estiver disposto a dar toda a sua mente e coração a ela, não alguns momentos do seu tempo facilmente poupado. Se formos sinceros, encontraremos a verdade; mas essa sinceridade não pode depender de estímulo de nenhum tipo. Devemos dar nossa atenção plena e profunda à descoberta da verdade do nosso problema, não por alguns momentos de relutância, mas constantemente. É a verdade sozinha que liberta o pensamento de seu próprio processo de fechamento." (KRISHNAMURTI,1946:5a).


Questionando assim um certo aspecto da erudição, pois, diante da imensa produção de conhecimento hoje em dia disponibilizada, é intrigante entender qual quantidade deste saber seria suficiente, ou mesmo possível, de ser internalizada. E esta é uma problematização fundamental: que os principais problemas humanos hoje não são de modelo, mas sim, de escala, porque o contexto tecnológico e industrial da sociedade atual é de tal maneira sobre-humano, que qualquer proposição de reequilíbrio deve estar na dimensão artesanal de um alinhamento da ação, sentimento e pensamento. Ao mesmo tempo também é muito importante entender que, tanto a produção de conhecimento objetivo ou qualquer criação imagética subjetiva, tem sua gênese diretamente relacionada à potência imediata dos fatos e à maneira como nos aproximamos destes fenômenos, ou seja, qualquer análise fenomenológica, principalmente no que se refere ao progresso, deve sempre partir desta realidade.


E aqui se pode começar, depois destas analogias conceituais, a refletir finalmente sobre a questão dramática, e mesmo trágica, que surge desde o desenvolvimento da mentalidade industrial e a exploração dos modelos tecnológicos sobre a escala artesanal. Assim, já que as teorias modelares da tradição exigem que se deva decorar tudo antes de olhar para aquilo que a própria teoria inventada olhou para ser elaborada, então, mesmo sem descartar todo o conhecimento criado pela ciência e a cultura, por que não seria melhor olhar diretamente para o fato que a teoria olhou ao fazer a teoria para realmente compreendermos o desenvolvimento do seu fenômeno? Para tanto é preciso começar pala compreensão, e aqui vem Gaston Bachelard a ajudar, da maior qualidade da consciência humana.


"O vocábulo fundamental que corresponde à imaginação não é imagem, mas o imaginário. O valor de uma imagem mede-se pela extensão de sua aureola imaginária. Graças ao imaginário, a imaginação é essencialmente aberta, a própria experiência da novidade. Mais que qualquer outro poder, ela especifica o psiquismo humano. Como proclama Blake: ‘A imaginação não é um estado, é a própria existência humana’”. (BACHELARD,2001:1)  


Tudo é imaginação. O que faço para explicar o mundo é imaginação. Tudo o que faço tem um traço poético/estético. Percebe-se isso até mesmo as teorias científicas, que se carregam de racionalidade e pretensa exatidão, mas são tão mitológicas e metafóricas quanto aquele poema delirante perdido numa estante empoeirada. A mesma fé que é necessária ao imaginador na sua aproximação à mitologia, à metáfora poética é necessária para sustentar, por exemplo, a explicação da criação do universo numa grande explosão que ainda se expande a partir de um único átomo num espaço completamente indefinível. Ora, o trabalho atribuído ao que chamamos ciência é também um artifício de nomeação tão metafórico quanto qualquer outra idéia humana. Carl Jung aponta um incidente que pode esclarecer essa afirmação quando conta que o químico alemão Kekulé estudava a estrutura do benzeno e certa noite sonha com o Oróboros o associando ao círculo fechado do carbono (JUNG,1964:38). O que quero dizer é que os dois desenhos são metáfóricos e exatamente por este motivo é possível associá-los. O que importa é entender o impulso que criou as duas imagens, cada uma ligada a uma estética diversa, porém, imaginadas. É lá que estará a escala espiritual do instante. O impulso primitivo que imaginou o Oróboros pode ser o mesmo que imaginou o círculo de carbono. Acredito que seria uma grade ilusão pensar, por exemplo, que as fotos produzidas pelo telescópio Hubble⁸, podem desvendar os segredos do universo mais do que a imagem do próprio Oróboros. Para um estado mental racionalizante esta minha afirmação é um contrassenso, porém, as imagens do Hubble são tão verídicas quanto a imagem milenar do Oróboros. O que eu quero dizer é que, em termos do reconhecimento e do espanto diante da qualidade assombrosa da vida, ambas as imagens podem causar o mesmo e o Oróboros não é menos nesta relação. Pelo contrário, aquilo que antes sensibiliza para perceber melhor esse assombro é, primitivamente, o Oróboros, pois, sua especificidade em alçar a consciência de escala, por ser uma estupenda metáfora, é proporcionalmente maior do que as imagens do Hubble, que estão aprisionadas num modelo tecnológico de tradução. Isto é, sem a potência poética desencadeada pelo Oróboros, estas imagens do Hubble encerram, pela perspectiva da imaginação e se existissem sem aquela, pouco impacto. Essas máquinas são maravilhosas, mas, alijado da consciência na escala imagética, cujo guardião aqui é o Oróboros, não se vislumbraria a compreensão assombrosa da imensidão da vida fundada nessa imaginação. É necessário estar atento para não ver o Oróboros, ou qualquer outra imagem arquetípica, apenas como uma coisa primitiva e ingênua cujo poder de gerar conhecimento foi superada pelo progresso científico. Esta imagem atávica concentra toda a força do movimento da imaginação que construiu o próprio telescópio Hubble. Desde o Oróboros até as imagens do Hubble que são atribuídas ao universo, encontra-se momentos de mesmo peso e, muito mais além, talvez nunca seriam possíveis em separado.  


Do mesmo modo, as religiões também são sistemas imaginativos de explicações, que apenas de tão elaborados, assim como a ciência que criou o Hubble, tornaram-se extremamente complexos e complicados. São o movimento da poética e da estética dos séculos sobre séculos. Quando vou a um desses lugares fantásticos de determinada religião, ligo-me à poesia específica que foi elaborada ao longo de muitos anos em um mesmo ritmo. Tudo o que as idéias falam existe de uma forma abstrata que só um impulso poético pode literalizar, estetizar, em suas metáforas, em seus arquétipos ou em seus objetos. É uma maneira artística de realizar a imaginação. Como todo ser humano, um buscador de explicações, um imaginador, o resultado de seu ímpeto é sempre uma fermentação poética que se materializa de alguma maneira numa arrumação estética, através dos inúmeros artifícios da habilidade humana que podem ser chamados de científicos ou artísticos. Sem essas modelos de compreensão haveria apenas um total silêncio. A distorção imaginativa da realidade imediata não sofre nenhum limite sobre como e o que pode atingir, contudo, está restrita entre as fronteiras de uma escala humana. 


A elaboração da máquina, pelo matema, da estrutura mecanizada, raciocinada, projetada de uma forma ideal, não amplia nem diminui por si só o potencial espiritual do ser humano. Não amplia além do que amplia o Oróboros, o poema. A idéia de que foi superada a condição do Oróboros enquanto imagem em potencial, pela construção mecânica que daria a visão do universo em profundidade, seja qual for o argumento utilizado para justificar essa superação, não afeta o trabalho do Oróboros em alçar a consciência desse estado, dessa compreensão poética humana acerca da vida. O que oferece o Oróboros não é menor do que o que pode oferecer as imagens do universo criadas a partir do Hubble. Ao contrário disso, essas imagens são a própria ampliação causada pela potência que o Oróboros desencadeia e de que falou em primeira mão. Essa reflexão sobre o matema, relacionado ao poema, surge através da leitura de um pequeno capítulo de um livro de Alain Badiou, em que esse autor aponta essa possibilidade de uma condição dual:


“...duas vias, duas orientações, comandam aqui todo pensamento do Ocidente. Uma apoiada na natureza em seu sentido originalmente grego, acolhe em poesia o aparecer como presença advenante do ser. A outra, apoiada na Idéia em seu sentido platônico, submete ao matema a falta, a subtração de toda presença, e separa assim o ser do aparecer, a essência da existência... sem dúvida, o poema, ainda que interrompido pelo evento grego, jamais cessou...”(BADIOU,1996:107).


Esse brotar do matema, com essa caracteristica específica que aparenta o abandono da explicação delirante do mundo, ocorre muitos anos depois do evento grego. Acontece cruamente na sua retomada racionalista, no Renascimento. Porém, o interesse aqui não é trabalhar outras especulações sobre essas reflexões, mas, mais uma vez, inspirar a encontrar justamente um ponto de visão que testemunhe qualquer que seja das inúmeras elaborações modelares da imaginação pela observação de um movimento arquetípico ligado a uma consciência escalar primitiva. Um ponto em que se possa vislumbrar a alma da experiência humana, como a potência que imaginou tanto o poema quanto o matema. Por isso, o que importa aqui não é saber quando ou como o matema interfere no poema, ou vice-versa, mas entender o impulso da imaginação que origina o interesse profundo por expressá-los.


É então que alguns fenômenos, tanto de processos científicos quanto artísticos, podem ser interessantes para demonstrar essa condição, para constatar que habilidades antiquíssimas ainda são extremamente importantes, ou melhor, insubstituíveis mesmo situações extremamente tecnológicas. A modelagem em argila, por exemplo, uma das mais antigas habilidades da humanidade, é uma peça fundamental na elaboração do design de automóveis ultra tecnológicos da atualidade. Outro exemplo é a linguagem de sinais gestuais que em certas situações representa a única possibilidade de comunicação. Como acontece, por exemplo, no meio extremamente tecnologizado da aeronáutica ou das corridas automobilísticas como a fórmula 1.¹⁰


É na gênese desses processos artísticos que, por sua vez, desdobra-se esta possibilidade de resistência quando demonstra que a sua qualidade não está diretamente relacionada com o avanço tecnológico. A qualidade da imaginação aconteceu plenamente mesmo em épocas em que não existia o paroxismo tecnológico, este mesmo que ainda é proposto, pela herança do projeto da modernidade, como fundamental para o desenvolvimento da civilização. A influência da imaginação é a mais pura negação do cronológico-progressista-positivista porque não se pode descrever sua história simplesmente pela idéia do avanço, da evolução e do progresso. A criação imagética não é passível de análise mediante a lógica da superação, principalmente quando entendemos que as coisas podem ser encadeamentos, intra-significações e intersignificações, teias e redes, e que o movimento da imaginação nem de longe se identifica com as proposições que dizem que vamos sempre do menos para o mais, do pior para o melhor, do velho para o novo, do incivilizado para o civilizado, do não saber para o saber, do nada para o tudo ou até mesmo do pecado para Deus. Um bom exemplo, é a qualidade poética do filme "O Garoto", de Charles Chaplin. Embora a tecnologia atual seja outra e, talvez, melhor, esta obra cinematográfica não pode ser mensurada sobre a qualidade poética de qualquer outra obra da atualidade, pois isto seria realizar uma redução do potencial daquela. O que foi criado com o filme "O Garoto", pertence a esta obra, é insuperável, intransferível e intraduzível.


Antes de concluir um argumento sobre a crise entre modelo e escala, mentalidade e consciência, é preciso retomar agora um pouco dos conceitos de doxa e episteme. Principalmente naquilo que Platão organizou como uma limitação de doxa diante da qualidade de episteme, que é uma outra analogia que gostaria de fazer entre doxa e fantasia, num contraponto entre episteme e imaginação. Ou seja, a mentalidade de modelo tecnológico pode ser um fenômeno importante, porém, não alcança a precisão da consciência na escala da imaginação. A fantasia é uma expressão que tem o seu lugar, no entanto, nunca poderá superar a dimensão criadora da imaginação.


"Tanto no 'Górgias' como na 'República', surge o problema da doxa verdadeira como possibilidade de se manter a ação devida sem a precisão conceitual que a suporta. Isso implica que, em alguma instância da relação entre epistemologia e ética, é possível considerar a ação sob o ponto de vista de uma doxa verdadeira, mas isso não significa que esse tipo de saber poderá tornar-se fundamento ético em Platão". (FRANKLIN, 2004:resumo)


O trabalho artístico que apenas elabora uma fachada de equilíbrio é o da fantasia e este se afasta da imaginação porque esta busca ao contrário, o desequilíbrio. Assim como o trabalho da personalidade é diferente do trabalho da alma, pois, a personalidade é inventada e busca o convincente, o técnico, já o verdadeiro quando aparece é refletido, poético e injustificável pela sua própria condição anímica. É preciso diferenciar sempre uma situação fantasiosa que a personalidade comumente fabrica, de uma outra condição anímica típica da imaginação. A reflexão poética nunca foi e nunca será dedicada apenas à formatação de uma moralidade técnica como a fantasia. Como lembra Gaston Bachelard:


“Não é raro reconhecer nessas imagens poéticas uma consistência particular que não pertence a imagens reunidas pela fantasia. Elas são dotadas da maior das realidades poéticas: a realidade onírica." (BACHELARD, 2001:30) 


Para finalizar, farei uma apresentação de duas manifestações de contradição entre os modelos tecnológicos e a escala artesanal. A primeira é a mais intrigante das novidades da massificação tecnológica, a chamada Inteligência Arrificial e suas invenções imagéticas. A IA só é capaz de produzir através de arquivos datados, mas nunca a partir de uma imaginação dinâmica. Ou seja, somente é capaz de inventar pela fantasia e nunca pela imaginação. Imaginar é algo que vai além da memória. Muito embora a incorpore, existem outros elementos que serão colhidos diretamente do presente, da realidade imediata e, por isso, inacessível à IA. As criações de IA se utilizam apenas do passado, que tecnicamente, são coisas mortas. E isto é bem evidente nas invenções desse modelo em que uma estranha morbidez pode ser constatada facilmente. A vida é beleza no sofrimento. Além das coisas produzidas por um modelo de IA serem mórbidas e fantasmagóricas, o IA parece só conseguir progredir o que é ruim. Na concepção que alerta que doxa pode até expressar uma ação devida, porém nunca poderá alcançar a qualidade conceitual de uma episteme, é esta mesma concepção que adverte que as invenções de IA constantemente renegam em princípio a própria consciência ética do processo criativo e a essência de seu fundamento. Uma IA nunca será capaz de refletir neste campo complexo porque é reduzida ao que é datado, de um passado inanimado que não é mais capaz de sofrer, pesar em compaixão, pois esta condição humana dinâmica só existe na intuição do instante, aquele único e absoluto lugar da imaginação, o presente.


O segundo e último impressionante exemplo para provocar a reflexão final sobre esta qualidade dual, este drama dilacerante entre a velocidade da tecnologia e a meditação artesanal, pode ser visto no documentário "Hayao Miyazaki e a Garça", sobre o processo criativo do artista e realizador do filme de animação "O Menino e a Garça". Entre todas as divagações filosóficas, que somente o próprio filme é capaz de desenvolver e que aqui não seriam ampliadas, há um importante detalhe, uma nuance que trata da dimensão desta fatalidade. Enquanto este seu último trabalho está na linha de frente dos mais avançados recursos tecnológicos para a criação de uma animação, ampliando todas as fronteiras dos modelos reprodutivos possíveis, tendo sido até mesmo premiado com um Oscar em 2024, toda a carga do trabalho criativo da sua imaginação está apoiada na escala dos seus esboços e que ainda são elaborados quadro a quadro e a lápis.


O homem imaginador em sua piedade política que surge em Hayao Miyazaki, que espera na dialética entre a sua tragédia irracional e sua redenção espiritual, na sua corporalidade mesma, romper com a estultícia da racionalidade que sugere que a humanidade progride e evolui linearmente e de que somos melhores do que outros seres humanos do passado somente porque fabricamos mais rapidamente as coisas. Que desvenda que a dimensão poética está fora desse jogo, ou melhor, o engole, como um de seus monstros, porque estes são de uma densidade atemporal e imensurável. Nega aquela fantasia do modelo tecnológico que confunde propositalmente quantidade com qualidade, que tenta dissimular seu projeto exclusivamente consumista, para reafirmar e reinventar uma imaginação absoluta em que a escala absorve e expande o real e o irreal sem nenhuma barreira. Neste seu último aspecto é, portanto, ponto de excelência contra a barbárie da desumanização de nossa escala, pois, se não podemos esperar que o imaginar lhe seja em si mesmo um antídoto, é improvável que este se ausente de qualquer processo com aquele desejo. É esta qualidade que é preciso desenvolver para criar espaço para a liberdade em decodificar as linguagens, o comportamento estético. Está também intrinsecamente ligado a esses processos humanos que, ao refletir sobre a realidade construída, permitem a manifestação e o desdobramento daquele fundamento ético e estético numa situação espiritual na sua vida e nas suas realizações. Onde a potência de sua obra evoca a totalidade de nossa própria existência, a sua doxa, a fantasia são as flores da imensa árvore milenar da imaginação, a sua episteme. Hayao Miyazaki é simultaneamente um deus, o herói e uma das pragas na sua própria obra, um genial e desapercebido demiurgo que amalgama toda a nossa tragédia e toda a nossa graça na ponta dos seus dedos. Como um guardião da escala artesanal da consciência humana, ao nos mergulhar na sua expansão onírica, no poder e na glória da unidade de nossa própria essência, ele nos explode a tampa da cabeça através da inevitável onipresença de sua imaginação total.





1- Franklin, K. 2004. "Os conceitos de Doxa e Episteme como Determinação Ética em Platão". Doutorado em Filosofia: PUCRGS.

2- Morin, E. 2002. "Ciência com Consciência". Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

3- "O sólido se desmancha no ar". Frase que aparece na peça Macbeth, de Shakespeare e é citado por Marx e Engels em seu Manifesto Comunista.

4- Citado em: "A Ciência Como Vocação". In: GERTH,H.H. e WRIGHT MILLS (1971)

5- http://www.jkrishnamurti.org/

5ª- Transcript of Talk 1, Ojai, 7 April 1946

6- Bachelard, G, 2001. "O Ar e os Sonhos".São Paulo: Martins Fontes 

7- Jung, C. 1964. "O Homem e Seus Símbolos". Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

8- “Hubble – A Última Fronteira” (Hubble´s Final Frontier – SkyWorks Digital,Inc.)  

9- Badiou, A. 1996. "O Ser e o Evento". Rio de Janeiro: Jorge Zahar-UFRJ 

10- “Os Segredos da Fórmula 1: Domínio e Controle”, exibido pelo Canal Discovery Channel/Discovery Turbo. 







11 de dez. de 2024

O Rei Pelé, o Adestramento, a Mentalidade de Modelo e a Consciência de Escala. (crônica)

 



O Rei Pelé, o Adestramento, a Mentalidade de Modelo e a Consciência de Escala.



"Senti medo, um terrível medo quando vi aqueles olhos. Pareciam olhos de um animal selvagem, olhos que soltavam fogo". Overath, jogador alemão nas Copas de 1966 a 74, sobre Pelé em campo.¹


Um dos maiores exemplos que vislumbro para explicar sobre a diferença de proporção entre a mentalidade de modelo e a consciência de escala pode ser colhida através da compreensão de um dos mais conhecidos fenômenos na história da humanidade, o Rei do futebol, o Pelé. Edson Arantes do Nascimento, ele mesmo, deixa claro que ele e Pelé são dois níveis, de uma mesma escala. Edson vai até um certo ponto onde Pelé é agregado e aí continuam juntos embora a a personalidade, a mentalidade, Edson,seja incorporada na consciência, a imaginação, Pelé. "Nunca pensei que ia ser grande", disse Edson Arantes à CNN². Quem nunca pensou em ser grande? o Edson. E quem é o grande? o Pelé. "O Pelé eu acho que não morre mais"³, disse em outra entrevista o Edson Arantes do Nascimento. A personalidade, o Edson, é mortal, o Pelé, o fenômeno anímico, é imortal. Parecem coisas insignificantes, mas é um testemunho cabal. É interessante perceber que Edson não controlava Pelé, que surgia como uma entidade autônoma, pondo medo em todos, que realizava coisas que o próprio Edson não conseguia explicar. Ao estudar a relação Edson e Pelé, é possível provar a presença de uma qualidade mais ampla que a personalidade agindo, que recebe até mesmo um outro nome, uma qualidade superlativa, que se pode entender como anímica.


Entretanto, é preciso inverter nossa reflexão. É necessário adotar uma perspectiva de escala imaginativa, polissêmica, fractal e não apenas nos mantermos na mentalidade comparativa, de modelos pela superação da continuidade linear do pensamento, como bem alertou Gaston Bachelard: “O que queremos empreender aqui, com efeito, é apenas uma tarefa de libertação pela intuição. Como a intuição do contínuo nos oprime com frequência, é indubitavelmente útil interpretar as coisas com a intuição inversa"4. Neste sentido, para exemplificar esta possibilidade, como um aquecimento para provocar esta inversão, antes de discorrer um pouco mais conceitualmente sobre esta relação que eu chamo de drama modelo/escala, podemos usar uma outra situação, a do adestramento canino.


Muitos cachorros são treinados na excelência para respeitar e responder a comandos de ação dentro de atividades de trabalho ou esporte junto a humanos chamadas de função. A caça, o pastoreio, o resgate, o policiamento, a proteção pessoal, a guarda territorial e até mesmo a guerra. E há uma função, talvez menosprezada por muitos adestradores e mal entendida de um modo geral, que é a função de companhia. Geralmente os cães super treinados realizam tarefas incríveis, porém, numa único mesmo ambiente e sempre num mesmo contexto. São realmente grandes conquistas e façanhas, entretanto, não é necessário desmerecer o cachorro de companhia para valorizar os das outras. E aqui começa uma possível reflexão sobre uma nuance que pode inverter o olhar. Quando observamos não apenas os modelos separadamente, mas a escala dos contextos, podemos perceber que, proporcionalmente, o cachorro de companhia é muito mais difícil de controlar porque este, além de conviver diariamente com o dono, está inserido em muito mais exigências e ambientes mais complexos que o cão super treinado, que comumente é mantido em isolamento controlado enquanto não é levado para o ambiente onde deverá atuar. Neste confinamento, os cães de função exclusiva acabam entendendo o seu trabalho como a única oportunidade de uma experiência livre, pois, são treinados com o conceito de recompensa e punição que restringe sua liberdade, e muitas vezes até a alimentação, sempre que não colabore corretamente, fazendo com que a barganha tenha um peso considerável nas respostas ao adestramento. Já o contexto de companhia é muito mais complexo, pois exige do cão muito mais do que respostas condicionadas, desde que a convivência cotidiana é simultânea com a companhia do seu dono, ou tutor, onde acabam ocorrendo concessões obrigatórias em que o cão deve assimilar modos de ação que envolvem até um raciocínio inédito, e mesmo improvisado, como acontece muito com os cachorros "vira-latas" que acompanham alguns catadores de sucata em carrinhos de mão ou mesmo são companheiros de moradores de rua. De um certo modo, enquanto é desejável que o cão de companhia julgue e escolha baseado na sua percepção intuitiva da ação simultânea do dono, ou o que é melhor improvisar diante de situações inusitadas, os cachorros de trabalhos exclusivos decoram e repetem instintivamente e são condicionados que, se não forem absolutamente obedientes, sofrerão restrições e até mesmo perderão o direito de exercer a função que viciaram realizar.


Ao mesmo tempo que as realizações dos cães super adestrados impressionam muito mais pela sua precisão, são apenas movimentos repetitivos e sempre num lugar conhecido, por outro lado, embora as ações e reações dos cães de companhia pareçam simplórias, dependem de uma interpretação da realidade, uma qualidade aleatória muitas vezes julgadas como erros, que precisam de um tempo para se readaptar consciente e constantemente a cada nova situação e ambiente inesperado. Ou seja, seria como comparar um empregado, que pode dialogar com seu chefe e apresentar soluções próprias, com um servo, que deve agir repetitivamente sem questionar seu senhor e que será punido se o fizer. E aqui estamos diante do paradoxo que define o drama modelo/escala, o adestrador com capacidade técnica lida apenas com modelos estáticos que apenas precisam de repetição e fomentam o instinto do cão de trabalho, ao passo que ao dono do cão de companhia, geralmente não capacitado adequadamente, recai uma necessidade de um conhecimento e habilidade muito mais complexa para instigar a intuição de seu cão. Este é um cenário comum dessa relação paradoxal entre mentalidade de modelo e consciência de escala: o capacitado se gaba de seus feitos, mas dissimula que se utiliza apenas de modelos limitados que bastam ser repetitivos, já o leigo é condenado em seus fracassos diante de escalas complexas que exigiriam conhecimento que este não desenvolve. É exatamente neste desequilíbrio que é necessário intervir.


É imprescindível a partir daqui estabelecer o que é uma coisa muito importante: as diferenças entre pensamento e imaginação, personalidade e alma. Pensamento é atividade da personalidade, tributária da idéia de continuidade, da técnica, da memória, do que é conhecido⁵. A imaginação é trabalho da alma, da intuição, da imaginação que incide no instante poético misterioso, insondável. Ao sugerir a idéia de que a imaginação é uma obra exclusiva da personalidade, cai-se na malha da idéia da continuidade e se fecha a porta ao entendimento de como é a ampla a vida humana, pois é a personalidade é que é imaginada, que é criada pela imaginação. A força de uma criação humana não está na expressão de uma individualidade, de identidades, mas exatamente na diluição desta. Seu legado sugere mais a apreensão de uma alteridade espiritual, que busca tudo partilhar e agregar, do que a simplificadora noção de alguém genial que supera os demais numa corrida de supetação. Essa visão de individualismo, essa idéia de autor genial, é a atitude simplória e ridícula de uma personalidade que irá sempre negar o segredo que a fez participar do evento espiritual que permitiu uma criação artística e, principalmente, a invenção técnica. É uma redução racionalista para garantir a si mesma a glória do instante e negar a escala, a alma, a imaginação que agiu sobre ela. Genial é a alma humana da qual a personalidade deveria ser apenas uma expressão. Assim, essa ação artística, pelo contrário, é um álibi, a prova de um encontro que se envolve num movimento anímico, arquetípico e sagrado que é em si mesmo a própria desconstrução do conceito de individualidade puramente técnica. Mas, esse não é o encontro da personalidade com a imaginação, e sim um encontro desta com a uma alma artística, do qual a personalidade é testemunha e materializa nas suas ações. E por isso é tão perigoso valorizar quem faz, quem executa a obra sem entender que esta é muito mais do que uma realização do pensamento. A obra é da imaginação, da consciência, e esta é ligada a processos mais profundos e mais amplos do que os do pensamento, que pode ser entendido também como mentalidade, a principal atividade da personalidade.


Muitas vezes a espantosa profusão de momentos extraordinários criados nesses instantes de profundidade de alma é completamente desencontrado da narração da personalidade, como se evidencia na dificuldade de Edson explicar o Pelé, pela insistência medíocre dessa narrativa do pensamento que tenta sempre explicar e racionalizar além do necessário, deixando de reverenciar o instante da consciência. Neste ponto posso visualizar perfeitamente a contradição que surge entre ver o mundo com o pensamento e, por uma outra perspectiva, entender a expressão da imaginação das criações da alma. Afinal, o que é essa coisa que permite a uma pessoa criar uma poesia tão estarrecedora mesmo sem se dar conta disso? É a alma e a imaginação. E por que atribuir tal façanha apenas a uma capacidade individual? É a personalidade e o pensamento. Quando saber que não é só isso, e que é a alma humana que se liga à imaginação artística? Quando a mentalidade modelar se alinha, reconhece e submete o pensamento à imaginação, a personalidade à alma e à consciência escalar. 






Um dos grandes momentos em que testemunhei este fenômeno pode ser contado pela imagem acima. Esta foi criada por uma criança de oito anos em uma das atividades que realizava na Associação Beneficente Direito de Ser, em Campinas SP, onde eu trabalhava com atividades de arte-educação em 2004. Havia a proposta de pintar com as crianças e o autor da imagem, o Samuel, mostrava sempre muita energia durante as atividades. Como um pequenino herói que nunca se resigna, subvertia quase todas as indicações pedagógicas. Era frequentemente assunto das pautas nas reuniões de coordenação e sempre prestes de ser excluído do grupo pelo seu comportamento. Num espaço pequeno e totalmente inadequado para as atividades comumente atribuídas à criação artística, sempre em locais desequilibrados e com um número de crianças inadequadamente grande, eu organizava atividades em que não propunha temas, mas procurava apoiar as tentativas líricas e reconhecer trabalhos interessantes neste sentido, justamente pra proporcionar a aparição do instante poético e, aí sim, seus temas primitivos. A maioria das obras que Samuel criou se perdeu, porém, esta foi registrada a tempo. Nesta pequena pintura guache, é possível encontrar um exemplo desta força anímica que cria independentemente da personalidade. Como explicar a grandiosidade dos elementos que aparecem nela? Não foi uma elaboração racional que a construiu. Foi um ímpeto explosivo e momentâneo quase incontrolável. A imagem do Samuel se mostra a mim como aquele álibi porque me mostra a mesma visão que teve o índio sioux Black Elk, citado por Joseph Campbell: “Eu vi a mim mesmo na montanha do centro do mundo, o lugar mais alto, e tive uma visão, porque estava vendo o modo sagrado de ver o mundo... mas a montanha do centro do mundo está em toda parte”⁶. A montanha de Samuel é essa, a do centro do mundo. É possível ver o movimento úmido da terra, o fogo do céu, da água em sua volúpia e do vento indomável. É possível ver tudo. É uma imagem mítica quando mostra a descida de uma trindade ao centro da montanha dum mundo em chamas. A noite, o dia. A pintura de Samuel impressiona desde a primeira vez que a vemos e nos obriga a aprofundar a consciência. Por que eu vejo tantas coisas nela? Como o Samuel conseguiu alçar a perspectiva arquetípica de uma alma rústica? a mesma de que fala James Hillman: “O logos da alma, isto é, seu verdadeiro discurso, será num estilo imagético, um relato que é totalmente metafórico.”⁷.






Acima temos “Lunar”, uma obra de Mário da Silva, feita com caneta esferográfica sobre papel. É uma outra imagem artística que recria essa situação arquetípica que, da mesma maneira que a pintura do Samuel, eu encontrei nas obras de Mário da Silva. Ele frenquentava o ateliê aberto do projeto Mundo Artista em 2004, que eu criei e coordenava. Mario da Silva aparecia sempre com seus desenhos debaixo do braço e me dizia: “cuidado com esses desenhos... essa é minha devoção...”. Ele tinha 80 anos, diabete aguda e alguns anos de internação em hospitais psiquiátricos. Vivia amparado por uma casa de apoio do Serviço de Saúde Candido Ferreira, mas tinha muita autonomia e convicção de suas escolhas. Mário da Silva às vezes contava algumas passagens dramáticas de sua vida. Ao ver um dos trabalhos de Mário da Silva, um desses seus desenhos feitos sempre com canetas esferográficas, entendo essa qualidade vertiginosa, simultaneamente vertical e horizontal, que é somente possível nas imagens que me remetem a um espaço onírico, no espírito do mundo, em sua dimensão gigantesca, em seu movimento titânico. No desejo de compreensão de seus incríveis desenhos, de uma maneira abrupta, somos obrigados a ser mais do que racional, ampliar a consciência. Temos que esquecer antigos preconceitos de ordenação e aceitar uma complexidade sem precedentes que nos inverte. 


Não se trata, porém, de demonstrar o que eu vejo nas imagens apresentadas aqui, dissecá-las, apontar suas referências e conexões com outras coisas, mas inaugurar a relação com todos aqueles que também veem algo nelas. Nestas imagens estão presentes elementos primitivos que provocam o desdobramento da imaginação em si mesmas. A alma rústica que indico aqui é esta que toma de assalto a personalidade, nega a idéia da continuidade progressiva e instaura um evento que, todavia, pode ser preso numa armadilha estética da imagem e criar esse álibi dessa aventura. Essa potência humana, independente de quem a criou, afeta de uma maneira surpreendente. A criação estética desta qualidade permite rastrear o movimento da alma, porém, somente se pode gravar suas pegadas fugidias, assustar-se com seus vultos, viver no constante assombro de sua possível presença. A obra imagética é a testemunha mais fiel dos caminhos da alma.


É também uma consciência de escala que mostra a importancia de reafirmar que a rusticidade poética da alma, em seu atavismo, está em toda manifestação estética, porque acredito que a manifestação estética, que incorpora todas as coisas criadas pelo ser humano, é sempre o desdobramento de uma impulsividade que se expande em espiritualidade pelo mundo e arrasta a personalidade para a consciência. Esse é o movimento primordial do ser humano. Esta alma rústica cumpre uma saga, uma jornada eterna que tem como cenário as vastas terras do espírito do mundo que pode influenciar a mentalidade de modelo a não valorizar as visões fragmentadas da personalidade e a trabalhar para a unidade da alma humana, a alma que está em toda parte, inclusive e muito importante, na necessidade de uma ação política de uma qualidade inédita, como descreve James Hillman: "Político, segundo entendo, não implica em partidos políticos, mas em piedade política; sugere não deixarmos as implicações políticas das idéias tornarem-se grosseiramente inconscientes; que possamos admitir a parte política da psique e, assim, tomar partido político"⁸.


Na pintura de Samuel temos a mesma visão de Black Elk, a montanha é o centro do mundo, mas também está no seu lugar mais alto. É um movimento místico que busca criar uma imagem para uma coisa que não permite imagens sobre si. O modo sagrado de ver o mundo é vivenciar a gravidade do mundo que me envolve, mas que não me permite vê-lo diretamente. Com os trabalhos de Mario da Silva temos mais um testemunho de quem ouviu o barulho do mundo, como diz o poema “A Máquina do Mundo”, de Carlos Drumond de Andrade: "A máquina do mundo se entreabriu para quem de a romper já se esquivava e só de o ter pensado se carpia. Abriu-se majestosa e circunspecta, sem emitir um som que fosse impuro nem um clarão maior que o tolerável. Pelas pupilas gastas na inspeção contínua e dolorosa do deserto, e pela mente exausta de mentar. Toda uma realidade que transcende a própria imagem sua debuxada no rosto do mistério, nos abismos". Samuel, imerso no espírito do mundo, reapresenta uma visão da alma rústica. Mário da Silva, imerso na alma rústica, reapresenta uma visão do espírito do mundo. Com esses dois momentos, uma criança e um velho, que falam da mesma coisa em alteridade, podemos fortalecer nossa intuição de encontrar elementos que podem ser comuns a todo ser humano na relação entre esse impulso poético e essa criação estética, entre essa alma e esse espírito. Porque é só assim que poderemos encontrar a única perspectiva possível para a compreensão da potência do instante eterno. Como lembrava Platão: “Se tudo o que tem vida morresse e ficasse conservado, no momento da morte, não seria absolutamente necessário que todas as coisas, por fim, estivessem mortas e que nada existisse com vida?”⁹.


É incrível como o instante ínfimo é aquele o único capaz de se aproximar do impossível momento da visão do desmedido e que é justamente essa pequenez que pode proteger a alma da violência desta aproximação. É imprescindível compreender como o processo anímico da criação poética é diferente do mecanismo do pensamento para compreender que é o medo da descontinuidade e a ilusão da continuidade que faz com que a personalidade se apoie sobre si mesma e se afaste da reverência diante do evento da visão do espírito. O pensamento somente pode fantasiar sobre seus próprios escombros, embora esta fantasia, e estes escombros, sejam parte da imaginação. Não há nenhum problema no pensamento e suas funções, assim como não há na capacidade das mentalidades como instrumentos em si. O importante é entender que o grande problema do modelo não está em si mesmo, mas na dissimulação, no engano de seus limites diante da consciência da escala, pois, enquanto o mentalidade é instintiva, defendendo-se da ilusão e do medo, a imaginação é intuitiva, tende à liberdade e à equanimidade. Paradoxal e inversamente, quanto menos impulso da intuição, que é anterior ao pensamento, este fruto do instinto, menos grandiosa é aquela, que é a compreensão da experiência desse encontro e da necessidade de suspender o drama entre o vício de dominância do modelo na superação cronológica e linear e o viço da retomada constante por uma outra perspectiva, a da escala.


Pode parecer impossível provar a existência dessa parte expandida que se diz é a alma, da qual a personalidade tem dificuldade em entender e saber como a experiencia, mas é muito fácil demonstrar os limites e truques dessa mesma personalidade, na tentativa de se mostrar a protagonista dos movimentos que não consegue explicar. E isto se dá tanto na admissão, por aqueles que a ancoram pela qualidade da escala, de que tudo além do que conhecem de si mesmos pode acontecer, como pela dissimulação, por aqueles que a manipulam pela quantidade do modelo, de que não pode acontecer nada além do que já esperam. Se o modelo degenerou para uma metástase tecnológica e a escala atrofiou ao ser desprezada na sua potência artesanal, resta a inversão da afirmação dos modelos da personalidade, das mentalidades aprisionadas em identificações contínuas, para uma negação absoluta das certezas positivas pela consciência polissêmica no instante das suas nuances, na sua equanimidade, na panculturalidade da escala dessas almas rústicas navegando libertas pelo espírito dos mundos afora.





1-https://www.santosfc.com.br/o-rei-pelas-frases-dos-suditos/

2- https://youtu.be/wk4bh6B93tc?si=v8BKEs6IiJBMRS0V

3- https://youtu.be/6h0haPT7VeI?si=Zjs57mPxLtpaOpQE

4- Bachelard, G. 2007. A Intuição do Instante. Campinas: Verus. p59

5- Krishnamurti, J. 1982. A Rede do Pensamento. SãoPaulo: Cultrix 

6- Campbell, J. 1990. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena. p97

7- Hillman, J. 1983. Psicologia Arquetípica.São Paulo: Cultrix. p46

8- Hillman, J. 1993. Paranóia.Petrópolis,RJ: Vozes. p68

9- Platão. 2005. Fédon. São Paulo: Rideel. p38






7 de dez. de 2024

A Alteridade Absoluta e a Gênese do Instante (crônica)




A Alteridade Absoluta e a Gênese do Instante.




"Passa o dia e a noite comigo e possuirás a origem de todos os poemas,

Possuirás o bem da terra e do sol, (há milhões de sóis sobrando,)

Não mais tomarás coisas de segunda ou terceira mão,

Nem olharás pelos olhos dos mortos,

Nem te nutrirás de espectros em livros,

Também não olharás pelos meus olhos,

Nem tomarás coisas de mim,

Ouvirás todos os lados e os filtrarás em ti mesmo". 

Walt Whitman¹


A serpente que come a si mesma eternamente é quem emoldura o espaço vazio onde a imagem arquetípica cria o seu próprio destino. A ilusão da imagem é para lembrar que não seria preciso dela se não fosse o medo de viver pelo instante, na insustentabilidade paradoxal da sua condição, como diz Gaston Bachelard: "A morte que emana da vida e a vida que emana da morte... deste modo a instituição alquímica descobre uma espécie de intimidade no símbolo da eternidade que constitui a serpente recolhida em si. É na mesma questão, através da lenta destilação do veneno no corpo da cobra, que se prepara tanto a morte do que deve morrer quanto a vida do que deve sobreviver"². Este seria e é, sem nenhum subterfúgio, mais uma oportunidade que pode expressar o drama entre o modelo e a escala: as imagens são os modelos em sucessão tentando simular o imensurável, tentando provar a sua continuidade horizontal e a intuição do instante é a revelação da escala vertical da eternidade em seu silêncio insuportável. Não é necessário que se anulem ou se superem, pois, são simultâneos, e este é exatamente o depoimento metafórico do oróboros, mas, é importante perceber que a escala inclui e é consciente do modelo, porém, não é possível que este seja consciente daquela. O modelo é mental e a escala é anímica.


Toda explicação é mitológica e surge a partir da contemplação do mundo. Toda materialização estética é metafórica. A apreensão inicial da existência é silenciosa. Pode-se ficar com ela ou elaborar imagens para aludir à sabedoria que se encontra diretamente, mas essas criações não são mais a visão original do conhecimento direto, são apenas modelos deste. Cria-se a própria imagem para evocar o instante, único posto possível para o encontro com a divindade, a escala, e depois consigo mesmo. Como expressou Mikhail Bakhtin: "Fora de Deus, fora da confiança numa 'alteridade absoluta, são impossíveis a autoconsciência e o discurso sobre si mesmo, e isto não porque na prática estas sejam operações absurdas, mas porque a confiança em Deus é um elemento constitutivo, imanente à pura autoconsciência e ao discurso sobre si mesmo"³.


A ordem inicial é para que cada indivíduo crie seu imaginário a partir de onde e como quiser e puder. A indicação deste enigma é para que se busque por si mesmo a pedra oculta, que é alcançável e disponível para todos sem exeção absolutamente nenhuma. Na singularidade, simplicidade e primitivismo do V.I.T.R.I.O.L. - “Visita Interiora Terrae Rectificando Invenies Occultum Lapidem”4- Explora o interior da terra, retificando, descobrirás a pedra oculta. Esta é uma fórmula célebre entre os alquimistas e que, de certa maneira, condensa a doutrina. É também o mesmo nome dado à flos coeli (flor do céu) o orvalho colhido pelo alquimista para realizar a obra alquímica: O Vitríolo vegetal, gordura do orvalho, espuma da primavera, princípio da vida celeste, manteiga mágica. Esta proposição é uma ordem fundante da insondável história da Alquimia, mas, aqui a aproximação é pelo seu aspecto filosófico, poético e metafórico. A realização alquímica que sugere mais uma realização espiritual, de encontro espontâneo com a rusticidade da alma (a consciência da escala) do que um sistema de técnicas científicas complicadas e da sistematização especulativa que algum de seus supostos praticantes desenvolveram (a mentalidade modelar). O momento da proposta da Alquimia que interessa aqui é, então, apenas o instante exato em que “Na noite escura o jovem buscador sonha. Os anjos o despertam para que dê início ao trabalho da Grande Obra”4. 


Visitar o interior da terra é encontrar o mundo dentro de si. Renomear é dar a si mesmo o significado ao que se encontra, conhecer as coisas diretamente. A pedra oculta é o conhecimento direto e mudo do mundo que se dá, unicamente, pela intuição do instante. Para tanto, é preciso sempre recomeçar a nomeação do mundo de seu ponto mais antigo, e seu mais primitivo ponto, a origem de que fala o poema de Walt Whitman, é o de conseguir vivenciar as coisas sem o nome que lhes foi dado. Todavia, é impossível viver sem dar nomes às coisas, mas, é possível viver nos dois estados simultaneamente, retificando-os poeticamente. Retificar constantemente o nome das coisas é esta gênese do poema, que mantém a aptidão ao instante.  


O eterno não é o que dura para sempre (como acredita a mentalidade de modelo), mas a absoluta ausência da própria possibilidade da continuidade (a consciência de escala). Exterminado esta sua noção já se está no eterno que só a idéia da continuidade dissimulava em sua teia de imagens. Quando o senso de duração e continuidade, o modelo, deixa de interferir, revela-se o que sempre é, a presença, a escala, no instante. A imagem, através da marcação da idéia de duração, cria a ilusão de o manter e paradoxalmente provoca sua queda porque mostra o que não é o instante. Mas o paradoxo desta aproximação é perigoso, pois, sugere simultaneamente que não é preciso e que é preciso da imagem criada para aludir ao instante. O que a imagem emoldura é o vazio, é o nada do eterno, e isso é o que se pode chamar de espiritual. O imaterializavel, o indisível, o irracional é o espiritual. Por isso a poesia é, na intuição do instante, espiritual e a sua novidade sempre instantânea, outra vez diz Gaston Bachelard⁵. A grande potência desse instante eternamente vazio que sempre escapa é essa compreensão poética do mundo e da vida pela sua contemplação. Materializar ou literalizar imagens é opcional após isso. A imagem não potencializa a compreensão, mas a compreensão faz isso pela imagem. Uma imagem ou uma brisa perfumada no caminho afetam na medida em que não se é mais somente um ser separado, modelo de personalidade, mas se é também esse instante, esta escala da alma. É aí que se encontra, quando não se é, o espírito da desrazão e do não durável. Quando se está na presença do instante, a ilusão da idéia da continuidade morre. 

 

O poema somente é criado para retificar que o instante se instaura quando justamente se deixa de tentar demarcá-lo. O poema é uma isca para o silêncio e o colhe por inversão ao elaborar seu atavismo em imagens. Mas, neste sentido alquímico, quem suporta abandonar a idéia da continuidade não o faz porque isso é um mal, mas para redimensioná-la à sua importância no apoio à retomada da manifestação do instante. A origem de todos os poemas, de que fala Walt Whitman, está nessa possibilidade do instante que segrega essa sua permanência ilusória. É a pedra oculta, sempre o vazio, sempre escapa. O instante, na sua descontinuidade e desarticulação, é a negação da idéia da continuação cronológica e é isto o que gera a poesia. O importante é esse impulso eterno de que, toda vez que conseguir esquivar do aprisionamento do momento, já se encontra mergulhado na eternidade. Por isso a ambiguidade da imagem é perigosa. A sua maior virtude almeja o implacável vício de julgar-se imprescindível. Quando traz uma imagem dessa aventura momentânea é para a própria segurança; é porque tem medo de se perder num mundo sem continuidade. Nisso, constantemente está a emoldurar o vazio, que se é eternamente a criar imagens, porque assim tateando ingenuamente se consegue dar sentido à noção de continuidade ilusória que as próprias imagens fabricam uma após a outra. O grande trabalho então não é caçar o instante, o que somente o afastaria dele, mas domar a idéia de continuidade, pois é o que impede de ser o instante.

 

O paradoxo do oróboros nega a importância das imagens e afirma a importância das imagens. Afetam, são maravilhosas, mas não é preciso delas para se estar no instante eterno da existência, como sugere o "estar no mundo sem ser do mundo"⁶. Porém, é preciso delas para evocar ritualisticamente esse instante. Toda imagem é mística. No entanto, o místico não é o espiritual, mas apenas seu anseio. No âmbito espiritual somente há o silêncio, e este é o primordial sentido do oculto. É conhecimento instantâneo, não carece mais da tagarelice das imagens. As imagens que entornam o vazio que escapa só dizem do vestígio, dos rastros desse instante insondável de que a vida é. Embora atraentes, as imagens são, paradoxalmente, uma fuga daquilo mesmo de que mais tentam se aproximar. O que as imagens dizem sempre é da necessidade urgente de descartá-las. A imagem é sacrificial. Entrega-se para sua morte para deixar que o instante viva para sempre em seu não viver. Essa é a pedra oculta, o instante eterno, da presença do nada que esclarece diretamente e em silêncio. 


Quando se percebe a épica aventura de um cisco voando pelo chão no caminho pretencioso de explicar um vazio que se autodevora, o mítico trabalho do verdadeiro poema consistirá numa impossível missão que obrigará a realizar duas jornadas simultâneas e ambas, tragicamente, sem nenhuma esperança de regresso. Enquanto o poeta se arrisca, envenenado pelo paradoxo da vida e da morte, num assombroso mergulho letal para a alma rústica, ousa uma árdua e fatal escalada ao espírito do mundo. Deverá sacrificar desta maneira a sua mediocridade pela sua graça nesse ritual, simultaneamente brutal e sublime, que dura todas as vidas, todo o universo, num único ínfimo instante. 



1- Whitman, W. 2000.Canção de Mim Mesmo-Songs of Myself.São Paulo:Imago. p02

2- Bachelard, G. 2006. La Tierra e las Ensoñaciones del Reposo: Ensayo sobre de las imágenes de la intimidad.México:FCE. p313

3- Bakhtin,M. Aesthetics of Verbal Creation. New York: Routledge, 2000. p159

4- Carvalho, J.J. 1995. Mutus Líber, O Livro Mudo da Alquimia.São Paulo:Attar. p92 e p38

5- Bachelard, G. 2007.A Intuição do Instante.Campinas:Verus. p41

6- Evangelho segundo João,17:11,16








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