31 de jan. de 2023

O Buddha de Todos os Tempos (poema)

 


Quando morresse o Messias

Não quereria respeito algum

Quererá só um circo montado

Esperara no meio do picadeiro

Enquanto comece uma festa

Com todos os Rhythm & Blues

Que atravessava-se toda noite

Quem por querer cantaria

Quem não queira que não

Como ninguém mesmo fora

Chamem quem quiser iria

De manhã que se acabe com tudo

E queimá-lo-íamos numa pira

No epitáfio escrevei sem medo:

"Subiste a montanha sem cordas."






28 de jan. de 2023

O bushido de Tyke (crônica)




A vi uma única vez, numa primeira imagem, desfocada e brutalmente triste. Soube depois que seu nome quer dizer criancinha, mas também alguém que não se comporta de uma maneira geralmente aceitável. E eu sei, ela estava certa. Continuei a ver só até não suportar mais, bem logo depois do seu primeiro e único olhar. Na sua bravura e desespero, alucinadamente livre, em seu desassombro derradeiro. E ela me disse ali de toda a minha miséria humana. Com sua morte heroica e em seu urro de glória ancestral eu entendi toda a sua majestade e, num lapso de espanto, quem eu sou, o que eu nunca fui e quem eu jamais serei...





23 de jan. de 2023

A lesma e o cavalo (prosa poética)



O tempo é representado sempre na horizontal. Porém, isso é ilusório e só pode ser alegado pela invenção de alguma materialidade objetiva, que simula uma continuidade circularmente plana. Todavia, toda durabilidade revela uma melancolia, pois, se se pode encenar o espaço do passado e do futuro, por outro lado, essa pretensão se distancia da inspiração e da leveza vazia, duma metafísica subjetiva, do presente. Ou seja, na verdade o tempo somente age na vertical, através da reorganização de sua carga, de seu peso possível. Se o engano está na ilusão mórbida de uma lesma num rastro de limbo duma eternidade monótona que nunca acaba, o fato está, ao contrário, na crudeza de um tempo ativo como um cavalo que despeja sua carga de vitalidade, de momento a momento, em que uma outra eternidade, reversa, sem nenhuma relação com qualquer sequência, pois, porque nunca começou e porque nunca terminará, é uma descarga. Sem esse despejamento nunca existiria a cavalgada. O tempo não é uma linha contígua que se arrasta puxando o que já aconteceu e empurrando o que ainda acontecerá. O tempo não passou, não passa e nem passará. O tempo é sustentado, é escorado. Não se realiza no tédio ingênuo por esperá-lo, porém, na força bruta em o suportar.





21 de jan. de 2023

Ao bel-zebu (prosa poética)




O triste é quem mais se lembra da felicidade. Mas, seria belo se soubesse da importância filosófica da infelicidade, que é o bem, já que esta é a essência da alegria e da qual é impossível se ter consciência, pois, ser feliz é exatamente o estado de não saber que não se é... e, não passasse o infeliz a maior parte do tempo, e isso é o que torna sua sina a miséria espiritual, simulando não viver nesta, que é o mal... já que tanto mais entristecido mais espaço teria, se esquecesse disso, para abrigar a felicidade...






14 de jan. de 2023

O centauro sem cabeça (crônica)




Camus escreveu, em seu devaneio de um pós-guerra do bem triunfante (ou não), que numa comunidade de vítimas condenadas, como mais um dos fenômenos do absurdo, inclui-se também os seus próprios verdugos; o curioso porém, e apontava o filósofo, é que somente o carrasco nunca saberia claramente sobre essa mórbida qualidade mútua. Olhando bem atentamente para estes nossos dias, nesse pós-tudo de um grande mal finalmente apocalíptico, nem o algoz e nem o sacrificado conseguem mais saber de coisa nenhuma, numa ciranda de uma loucura surreal, e nem de nada mais; deliciam-se  na mesma fascinação pelo seu destino de besta anômica... e que se fodam (agora sim), simultaneamente e em tempo real conectados...






9 de jan. de 2023

desdelírio panutópico (prosa poética)



sabotaram a loucura, excomungaram a revolução; desalmaram a desobediência; sequestraram a rebeldia; o destino anárquico, numa inversão monstruosa, foi tomado do artístico, do porra louca, do bicho solto, do diabo... e agora é da baderna moralística, da selvageria pornográfica, duma razão em crise psicótica, duma ingenuidade estuporada; ou se afundam então num amontoado fragmentado e reverso de manutenção de sortes e imposição de azares, fechados na ilusão também fascista da tolerância litigiosa das identidades, na obrigatoriedade da aceitação mansa... ou negam um cetro a tal verdade e se elevam para uma coletividade, única e responsável, que partilha a sorte e mitiga o azar, aberta na equanimidade panculturalista comunitária; seja, enfim, a negação da moribunda utopia do controle total, porém, na afirmação, então, da realidade retro/libertária de uma antiutopia máxima...







7 de jan. de 2023

estrela cadente (poema)





o que passa daqui para adiante

tudo naquilo que se vê e sente

é tudo tão rápido e inconstante

só uma centelha incandescente

que num rastro de um instante

apaga como se estrela cadente





5 de jan. de 2023

pode ser... (poema)




pra quem perdeu nos dias

todos os primeiros da vez 

tem naqueles como diziam 

que quem morre ainda antes 

de cair profundo dum abismo 

antes de bater no chão da pedra 

que se morre mesmo do coração 

como se fosse a quase queda 

e sem saber nessa hora ainda

no saber de que se descobre vivo

tornar noutra chance de começar 

que poderia agarrar num galho 

daqueles dos desenhos animados 

que imitam a vida... pode ser...




o último desejo (poema)





o último desejo do poema moribundo

que de anunciação seria agora epitáfio

foi ser compreendido em seu instante

intacto na anatomia dos seus versos

e que fosse inútil dissecar as rimas

sendo a causa de um outro efeito

que estivesse de um mote, apenas isso,

como um velho rio é para seu leito

como o céu turqueza é para as nuvens

como a pedra na costa é para o mar

que o leitor solitário ficasse ali quieto

diante daquilo que viu na estrofe pura

pois, que na sua esperança derradeira

que de cada vez que lido se desvendasse

que da sua poesia nada nunca se explica

que fosse ele próprio a explicação de tudo