Nem Tanto Ao Mar Nem Tanto À Terra
Sócrates foi condenado à morte e morreu assim porque provou, de um modo
ou de outro, que ser sábio em uma área não garantia automaticamente ser sábio
em qualquer outra e ele tinha razão. Ouvi um juiz, muito bem formado na sua
área e defensor da descriminalização das drogas, falando que o problema da
violência se espalhando das favelas está diretamente ligado à proibição das
drogas e que, se fossem liberadas, a violência acabaria do mesmo modo como não
há violência na frente das farmácias que vendem pacificamente drogas
legalizadas até mesmo mais fortes e viciantes do que os traficantes vendem.
Para o bem ou para o mal, a guerra às drogas nunca resolveu nada mesmo, porém,
nada nunca resolveu nada neste problema e aquelas tentativas que quase pareciam
resolver, ou mesmo que resolveram superficialmente, nunca mostraram que é
apenas não proibir que pode mitigar este imenso e complexo problema. A
violência tem muitas raízes e muitos galhos e um dos seus antídotos, como já
lembrava o filósofo e o julgador talvez esqueceu, é descobrir que a verdade é
que só se sabe que nada se sabe da verdade, porque saber esta verdade é o que
pode produzir uma ação verdadeiramente eficaz e não simplesmente comprar ou
vender uma ideia acerca da verdade, em geral suspeitamente ligada a esta ou
aquela disponibilidade de financiamento ou imposição de valores corrompidos e
lucros escusos. É que, no fundo no fundo, talvez, o que se trafica realmente é
o poder, sempre com os seus restos e migalhas caindo das mesas dos oligarcas da
contravenção e disputados pelos vassalos delinquentes. E, mais ou menos talvez,
o reino do poder seja esse mesmo, porque a sua matéria-prima é a miséria da
servidão e sua principal ferramenta é e sempre foi, de alto a baixo, a
violência. Porém, pelo sim pelo não, a proibição em si nunca é a causa direta
da violência, há lugares onde há proibição e há até mesmo repressão e não existe
violência deste tipo, na verdade, é a exploração desta proibição que a provoca,
como um subproduto dessa luta pelo poder, ou algum poder. Aqui, nesta terra de
ninguém, a verdade tem essa face inédita, insuspeita ao extremo, surreal. Nesta
proto-sociedade, a corrupção é a sua própria economia espiritual e a ontologia
de sua alma que, já penada nesta desgraça, é a de criaturas mutantes entre bestas
e homúnculos. Todos são bonitinhos nas suas subculturas, desde os moleques
loucos atrofiados e as minas diabas estilistas, passando pelos analistas de
rabo preso com biquinho indignados ou os patriotas psicóticos berrando
extasiados, os políticos bandidos paraguaçus, tanto os pau na mesa como dos
aquendados, os ex-artistas revolucionários da elegância com carteira de ativos
e casas pelo mundo, até uma polícia brincando de guerra e relógio de ponto,
mas, são tão ordinários e de tão rala humanidade, que nunca realmente
conseguiram entender nada além de sua própria ignorância. Nada é como é aqui e,
talvez, seja esta a sua grande verdade, esta violência na expressão de uma
existência espiritual degradada onde todos participam, consciente ou
inconscientemente, desde o cotidiano do com nota ou sem nota até uma imensa
corrupção corporativa e institucionalizada, que domina tudo e a todos, fazendo
do estado o seu cartório a legitimar a elite abastada, muitas vezes ovacionadas
pelos seus servos sem eira nem beira. Neste sistema de relações criminosas
todos são corruptos e, quando a corrupção é sistêmica e endêmica, onde tudo é
tomado de assalto e mantido pela extorsão, o controle é necessariamente
violento, pois é a violência em si mesma a base da fundação desta comunidade de
interações anômicas. No dia a dia, as relações são entre os empreendimentos
ilegais e esses chamados partidos ou comandos do crime são contratos
terceirizados pela oligarquia das fraudes para fazer seu serviço sujo, desde os
submundos mofados até os balneários luxuosos. O que é traficado e controlado
nesses lugares miseráveis onde eclode essa violência absurda, assim como a
venda das concessões de atuação criminosa em pontos que são alugados pela
cidade para a escória do crime, é apenas o resto da atuação total de uma
corporação da elite corrompida e corruptora, no topo da pirâmide criminal, que
é aqui e ali reivindicado e franqueado pelos tais partidos como forma de
pagamento pelos serviços prestados. O problema é que os cabeças desses comandos,
mais dia menos dia, começam a ser muito ambiciosos, querer ascender na
hierarquia, como conduzir juízes, polícia, deputados ou senadores e a exigir
mais e mais em seu próprio benefício arriscando a quebrar a ordem hierárquica.
Então, de tempos em tempos, a justiça, os políticos e a polícia são acionadas
pela corporação criminosa oligárquica, que as controla assim como controla o
próprio governo também, para entrar em ação abafando as rebeliões hierárquicas
para manter os bandos criminais dos miseráveis no seu devido lugar de atuação.
A violência surge mais aparente, vez por outra, como o único poder de coerção,
reafirmando aquele instrumento intrínseco na busca por acordos de poder,
subsistência e sobrevivência, seja para estes comandos e seus esquadrões de
pobres coitados bandidos, seja o dos ricaços corruptos criminosos, ambos sempre
criando o caos para vender a paz mais caro. Não há bem que sempre dure nem mal
que nunca se acabe nessa luta extremada entre classes de facínoras, de
perversos e de sanguinários, onde um povo, se é que ainda existe aqui, é a
tragédia de si mesmo.
