3 de nov. de 2022

humor negro (crônica)

 





Esqueçam os partidos. Vamos falar de humor. Não são as ideias que assemelham os palhaços, mas sim, a mesma comoção pelas anedotas. Usando de um direito o qual nunca concederam, outro dia uma senhora comemorava aqui, numa romaria de duas mil pessoas, o aniversário de um antigo humorista dessas terras. Vestindo uma camiseta com a escrita Auschwitzland. Interrogada, justificou: "É apenas humor negro". Comparava o campo de extermínio com um parque de diversões. Divertido. Como um outro palhaço noutro dia comparava a busca mórbida das famílias, por algum resto de alento de seus filhos desaparecidos, com cachorros farejando ossos enterrados. Engraçado. Hoje, passando por uma dessas feiras da cultura militar, vi isqueiros fabricados na China com o símbolo da SS sendo vendidos em praça pública. Humor refinado. Passeando por bancas amontoadas com souvenirs macabros, para quem tem senso de humor, foi que pensei que é também pelo mesmo direito de expressão que esses velhinhos sobreviventes derrotados carregavam as relíquias de guerra para lá e para cá por décadas. Relíquias de colecionador, mas isso foi também uma poderosa reserva histórica deles, potência subliminar através da qual eles mantiveram a chama acesa. Recuaram resignados, sob a humilhação de gracejos sem graça, porém, deixaram nas mãos desses colecionadores a missão de carregar todas as lembranças até melhores dias. E a piada deu certo. Tudo o que tinham estava nesse relicário. Ninguém deles escrevia mais nada, ninguém deles se atrevia a mais nada. Seguraram décadas esse fumo em brasa miúda sem deixar apagar... quietos. As relíquias de colecionadores. Depois, foram acendendo nos jovens das torcidas, pouco a pouco, a fúria da união pelas suas velhas flâmulas. Enquanto alguns libertários queriam que as emoções seguissem as ideias foi, porém, nos gritos nas curvas dos estádios que as ideias colaram nas emoções a cada gol comemorado em braço hirto. Na própria seiva da liberdade que sempre perseguiram, fundaram grupos de estudos fechados, cultivaram novas teorias em silêncio e aprenderam a dissimulação do poeta bufão. Agora, já chegaram no ouvido das crianças; as velhas canções, os antigos ritos, a fascinação pela exclusão, pelo medo, pelo escárnio, pelo sarcasmo e pelo sadismo. Agora já saem pela rua outra vez na mesma marcha de outrora. São livres na expressão de seu humor coagulado. Enquanto isso, do lado seguro do mundo, os pensadores da liberdade desconstruíam tudo que fosse possível, na ilusão de que tudo que fosse sólido desmancharia no ar, na quimera da insustentável leveza dos seres. Aqueles, por outro lado, trabalharam duro e com afinco para reconstruir cada pedaço da paixão cega de seu passado, tijolo por tijolo, medalha por medalha, ferida por ferida. Tudo isso, enquanto a democracia, nas baladas da meia noite, gargalhava dançando em cima das mesas, achando que a comédia romântica duraria para sempre.