6 de jan. de 2025

Melhores Poemas (coletânea)


1


A pátria derradeira

É a errante saudade

E desta não há exílio

Nem haverá anistia

Donde nunca se refugia

Nem se pode renegar

Carregado de riqueza

Não se parte nem se prende

Não espera ou se despede

Nem retorna ou a censuram

Nada passa e avança e continua

E a única lembrança nômade

Tal passaporte e aduana

Contrabando e sentimentos

Esperança dos olhares fixos

No horizonte e céu e território

Do vento que atravessa e corre

Da campina do cerrado e mar

Deste coração pendido e trêmulo

Na esquecida balada daquele hino

Surdo descompasso de um bumbo

Do silêncio rasgando tal bandeira

Deitado em solo morno decompõe

Já não almeja nenhuma liberdade

Que revolução finda da memória

Ancorada na madrugada e no poente

Tudo será história neste antigo poema

Enfim dum corpo e duma ausência

Serão agora ambos mesma substância



2


O sujeito

Sujo

Da submissão

É a sujeição

Do ser subjetivo


O objeto

Abjeto

Da objeção

É o óbito

Da abnegação



3


Só o perdão viaja no tempo...



4


O coração

Antes da mente

O fato

Antes do pensamento

A imaginação

Antes da ideia

A intuição

Antes do cálculo

O amor



5


Me disseram assim

Que teu nome é Vega

Foi o que me disseram

Eu não sei como te chamar

Não disseste coisa alguma ainda


Não conheço uma palavra tua

Para o que de ti daqui vejo

Me dizem outras coisas mais

Que és estrela e isso nem sei

Não dizes nada quando te olho


Sei que és o que sinto outra vez

Uma centelha não sei talvez

Fico triste da distância

Acho que é distância mesmo

Outra coisa que andam falando

É que vejo a tua luz antiga


Se te penso linda

Como estás agora

Onde és de teu hoje

No que és para mim

E que nunca sei nada


Sonho depois olho

Olho e depois sonho

Sempre daqui te vejo

E passas tímida

Em silêncio tênue


Do que me resta daqui

Não és nada pra saber

És só esta delicada visão

Pequena e maravilhosa graça



6


A maior aventura de um poeta

Nesta terra de ventanias de entulho

Nem é de escrever dessas estranhezas

Mas de manter esse toco de vela aceso

Sem apagar esses pobres devaneios

Durante estes dias de enxurradas

Porém porque é como é e tem é

Como foi desde que tinha bem

E ficar com essa matula de mendigo

Louco rosnando e alucinando

E fazendo casinha na chama assim

E escondendo a migalha das formigas

Até que um dia seja o dia dos pardais

Espantar, assoviar, bater as asas

Cruzar o mar e se outro voltar, voltar

Voltar de barco voando zoando

Sonhar e sonhar de rio e correntezas

Cantarolar até que o foguinho apagou



7


Por maior a perda

Mais injusto o roubo

Mais triste a traição

Nunca darei uma gota

De água ou uma faísca

De luz de sol ou mesmo

Uma pitada de adubo cru

Para cultivar o que promove

Nem uma ideia que insinue

Um botão de nefasta daninha


Para esperar e porque creio

Quando meu devaneio prostrar

Deitado no chão o desencanto

Saberei a origem da suave onda

Deste imenso alento e puro afago

Que livra dessa fumaça e sombra

Para nunca me afastar dessa graça

Chuva fina na sementeira de poemas



8


As nuvens estão sempre em peregrinação

Já sua cadência religiosa negam estandartes

Seres místicos de toda uma vida abnegada

Seu deslocamento ritual é uma expressão sagrada

São vigjantes e aventureiras que abandonaram tudo

Mas é de sua dança e vôo que todas as nossas idéias nascem

Quando passam em romaria para lugares secretos

Podemos ver as coisas do mundo em seus movimentos

Todas em algum lugar se encontrarão em silêncio

Porém sua fé explodirá seu pranto surpreendentemente

Algumas somente caminharão proféticas em deslizamento

Qutras serão telíricas pregadoras de um apocalipse estrondoso

Tantas maneiras têm para andar em sua jornada santa

Com seus mistérios e dogmas de paixão e sacrificio

Saíram sem nada desejar e se desprenderam ainda mais

Só carregam agora o peso da alma

Em busca de seu templo em alturas infinitas

Sua brusca ascensão cede seu corpo em glória elétrica

No milagre simples de sua úmida beatificação

Nos abarcam monstruosas em nosso tempo de terror

Ou são a providência da revelação de uma paz inexprimível



9


Às vezes, na beira da pista, no acostamento... Teu silêncio outros poucos segundos impera. Isso não é nada do que imaginamos. Já não conseguimos mais viver sem o que imaginamos. Ontem, na margem do sonho, no devaneio... Tua desgraça me lembrou um poema. Bruto. E duma solidão imensa, sem vozes, o som do teu coração me calou. Outra vez. Agora, na ribanceira, a poeira se cruza com a dor da luz do sol. Seca. Sofrida. Surda. Vocês têm lá suas desculpas, mas ele não existe. Nada existe. Mudo. Profundo. Os passarinhos sumiram? Não se pode escutá-los cantando. Os bem-te-vis? Qualquer outro? E isso não é nada. simplesmente nada. Os heróis que morrem são somente mais outras vítimas. O tempo... É quem sobrevive. E a grama ainda falta preencher aquelas falhas...



10


Se choro essa gota de lágrima

É pela minha fraqueza solitária

Que de leve é tocada numa faísca

Nesta infinita vida em destruição

Não há como compreender nada

Desta tão rude e imensa presença

Que de modo e lugar nenhum dirá

Além do mesmo silêncio de sempre

Sempre secreto de um modo tão ínfimo

Me arrebenta e enamora e abandona

Uma dentro da outra é seca e deserto

E que é a visão desse viver e dessa solidão


Se sorrio esse lapso de alegria

É pela morte de minha pequenina noção

Que numa inquieta brisa de perfume

Desta incrível aparição de firmamentos

Tudo se explica num segundo apenas

Nesta delicada e minúscula ausência

Que alardeia seus rumos aos gritos

Pelos quatro cantos e ventos do mundo

Sempre embriagada e dançando agarrada

Me agrada e beija e abençoa

Uma fora da outra que é montanha e tempestade

Que é o espanto desse morrer e dessa união



11


Já fugiste das serpentes

Naufrágios, vendavais e canalhas

Já cantaste boêmia na tristeza

Na ingênua despedida

Na descabida homenagem

Canhões e cavalaria

Pobreza, ninharia

Cantaste a natureza

Venceste a desonra

Vandalismo, a moral e a justiça

A casa chovia mais dentro do que fora

Fora tua vida tão rápida

Quase um delírio

Enquanto um segundo de devaneio

Perda, quase é teu nome do meio

Cicatriz, lembrança e sacrifício

Nos resta aquilo que murmuraste

Meias palavras

Intenções e tentativas

Arrependimento e uma música esquecida

Torto, tosco orgulho

Esperanças e teus pequenos sonhos

Esperando o ônibus

Com aquela sandália velha

A sola era de cortiça

Na chuva de verão

Rabiscando teu caminho

Aquele teu poema inacabado



12


Pó de tempestade


No início era o Verbo

O Verbo era o Caos

Como diziam, o Paraíso


No dia daquela última noite

Que ninguém soube quando

Ele expulsou também os poetas

E assim separou o Caos do Verbo


Feitos dos elementos da natureza

Uns trovões de furacão

Outros nascentes escondidas nas florestas

Alguns apenas rastro de lesmas

Outros estrondosa foz de cachoeira

Noutros nada mais que gota de orvalho

Ou então luz de nuvens carregadas

E vão como rios desembestados

Alguém mais que é pouca pedra seca

Ondas gigantes ou um só cristal de neve

Ou cinza, poeira, vapor ou névoa


No início era o Caos

O Caos era o Verbo

E ali Ele disse


Cada Palavra Será

Explicação Em Si Que Carrega!


Jogou-os de tal modo

Por todos os cantos

E lhes disse mais ainda

No mesmo instante


De Uns Fiz Grandes

E De Outros Segredos

Muitos Serão Conhecidos Por Todos

E Tantos Nunca Serão Ouvidos!


Condenados então foram

Sem mais avisos

A amar o que faziam

E não o que poderiam fazer

Portadores de uma alma eterna

Sem nada saber

Por único destino

Manter a abnegada amizade

Entre a Água, a Terra, o Fogo e o Ar


E num último berro Ele estarreceu a todos


Um Só será Pelo Outro

Nunca Morrerão Meus Poetas!

Senão Cada Um Por Autodestruição

No Vício Solitário Ou Na Guerra Entre Milhões

Se Sucumbirem A Cobiça, A Inveja, Ganância ou Ambição...

De Ser Um Outro Que Não

Aquele Que São Naquele Que É!



13


Ó grande árvore

De flores amarelas

Tombaste hoje

Lentamente e cuidadosa

Sozinha


Mutilada e humilhada

Os apressados

Atarefados desatentos

Nunca honraram

A tua sombra

E o teu amor silencioso

O teu sacrifício


Por fim

Num último gesto

Ainda deixaste

Essa tua madeira rústica

Lenha de esquentar...

Cepo

Incenso


Agradecemos por tudo

Ó digníssima!

Acácia...

Teu frescor

Teu encanto

Pólen, rumores, perfumes

Sonhos e esperanças


Agora será tua nostalgia,

Tua lembrança e teu vazio

Esta é a vida, tu disseste...


Todos os teus

Agora prestam reverência reunidos

Musgo, caracol, lesma e gavião

Bem-te-vi, andorinha, gambá e ratazana

Cambacita, pardal, maritacas e lagartixas

Crianças, terra, lodo, formigas, abelhas...

E o poeta vagabundo que dormia

Sobre a relva que nutriste...



14


Amar só é possível onde impossível é só amar...



15


O silêncio é denso

O barulho um solvente

Andar nele é forçoso

Não suspende se mentem

Os medrosos das lembranças

Viciaram nesta substância

Fugindo da saudade


O feminino obriga a poesia

Pra nela somente pensar

Quando de perto passear

Só se escreve o que é dela


Algumas cidades são poemas

Outras apenas um áspero dilema

Na distância viviam apaixonados

E do que era raiva longe evapora


Os novos amam as mulheres

Os velhos as cidades e a fé

Quando ela é cheia de correria

Corta a intuição dos versos lentos


Se é andando que está seu ritmo

Em cada palmo das suas curvas

Floreada toda a vida das rimas

Se pode apertar entre desejos

Se pode até cansar os pés


A força do poeta é o mote

Mas há quem não se toque

Andando de passadas na noite

Floreiras, ruelas e segredos


É sonhada que seria delicada

Talvez um dia se encontrem sim

O velho que quase foi seu trovador

E a mulher que era uma linda cidade


A cidade que ama, beija e abraça

A poesia... velha e cansada

Onde nada... o nada... onde nada...


De caminhadas e o seu amor

Se esqueceu da estrada no fim

Chegou... e lá estava a sua amada



16


Aquela poesia infantil

Florida e pueril

Do ainda intento inconsequente

Simplesmente

Quase imperceptivelmente

Na mesma sombra e reflexão

De um encontro tão delicado

De um tênue suspiro sobrenatural

Que numa saudade

Sem mágoa, sem agonia

Não espera mais nada

Sem nenhuma outra atenção

Pequeníssimo arrepio de sorriso

Ou um curto lapso de emoção

Entre almas de crianças

Ao se encontrar numa ínfima

Instantânea e mútua vibração

Como nos antigos pedidos

Das provas de amor ingênuo



17


Amante das plantas

Que podem ser esquecidas

Dos cachorros com coragem

Que andam sozinhos pela vida

Dos gatos que pulam da escuridão

E caçam a própria comida

Das jararacas e das onças

E andorinhas que voam só de ida

Samambaias, daninhas, cactus e um gavião

Entre as pedras flores de campo com pólen

Pedras pontiagudas entre margens floridas

Tristezas, sorrisos, saudades e um coração

Daqueles dias e da solidão da paisagem

Ermitão dessas lembranças rupestres

Na velha ventania ondulando as margaridas

Em nada do que seja de estimação

Nada além dum olhar de silêncio selvagem



18


A alma dorme nas esquinas

Nos cantos dos olhos

Em vultos de lembranças

Tudo num instante silencia

Ao longe alguns piadozinhos

Ilude e divaga e acalenta

E o mundo perde as fronteiras

E no entre do sonho e um susto

Ouvi alguns daqueles gritinhos

Meninas... meninas?



19


Quem do sonho delicado cuida

Nunca o mundo pouco espia

Vigia uma miséria sobre o real

É da própria alma um tesouro


Quem é de uma vigília atenta

Sonha na riqueza do espírito

E quando retorna desse alento

Foi ungido num ritual escasso


Num tanto de mendigo bêbado

Num quanto de peregrino casto

Numa sina de um trapo humano

Uma só senda de homem santo



20


Jurema ardente


Ainda que corres desnudo

Entre desgarrados, no anil

Pelos braseiros, dos paus

Cruzes santas, nos brasis


Triste berço, em teus braços

O tênue desmaiado, dopado

Desta tua sarça macunaíma

Tuas deidades, dum espanto


É assim na parca dignidade

De uma aldeia já calcinada

Então almejado, por nação

Solitário, nesta fé deflorada


Não tecerás mais teus sonhos

Nem esperanças, teus rumos

Serás deserdado, desalmado

Amaldiçoado... lugar nenhum



21


O poeta é um catador

Das sobras do mundo

Dos dias e das noites

Dos restos dos sonhos

Dos cacos da memória

Que já ficaram pra trás

Suas delirantes estórias

Como sempre dramáticas

Ou simplesmente sublimes

Da água, terra, o ar e o fogo

Rascunhos doutro apocalipse

Ranhuras do exílio desiludido

Nunca ninguém quis acreditar

Nestes seus ingênuos poemas

Até que a todos fizesse lembrar

Dos velhos brilhos das estrelas

Das flores que marcaram a rota

Nos caminhos perdidos da volta



22


Oração da noite adentro


Desiste desta Tua perfeição

Desacredita daquela redenção

Esquece esta absolvição épica

Dos trovões e nuvens se abrindo

Com os clarões e os mortos vivos


De Teu sagrado silenciamento

Não reclamamos nem um pouco

A justiça cega, surda e ausente

Não blasfemamos em nada

Da Tua paciência conivente

Não ousamos duvidar

Deste realejo da salvação

Do rocambole de futuro eterno

Fogo no vento, cavalos e cavaleiros

Deste desperdício na miséria

Desta míngua nesta fartura

Da Tua obra de beleza canibal


Porém que um mínimo então urge

Antes de toda a parafernália final

Que menos disto um clamor inocente

Ilumina agora um ínfimo instante

Que seja só uma lasca de chama

Senão um cisco de uma farpa

Da menor fagulha que Te sobrar



23


As crianças e os velhos

Vivem numa poesia de través

Um poema holograma

Um pedaço é o mesmo que o todo

Elas pela esperança

Eles, a saudade

Naqueles quatro metros de grama

Uma floresta...

Aquelas são antropólogas

Estes, arqueólogos

Naquele pequeno monte de areia

As crianças

Escavavam a encontrar diamantes

Que lhes enfeitariam os cabelos

Os velhos

Prendiam um punhado de ouro

Que lhes escorria entre os dedos...



24


A Maré do Mundo


Quando o teu espanto desperta

Na imensidão que a ti rodeia

Sobre esta tua solidão sem medida

Só o coração é que navega sem medo

Vai com a vela estufada da imaginação

O remo levado bem firme pela vocação

Que nunca trai, amotina ou acovarda

Quem jamais abandona o seu posto


E neste pequenino bote que te foi dado

Que atravessa nesta névoa profunda

Depois das revoltadas águas do nadir

Das tormentas da noite indomável

Chega então a mansidão do dia celeste

Da delicada e morna nova aurora

Neste sol eterno que te acalenta



25


O coração

É um marinheiro

Nos infinitos

Do peito adentro



26


Reverbo


Antes era a solidão

Porque nada sendo

Sumisse na névoa

Vivesse das brisas

Cantasse no trovão

Voasse pelos mares

Sempre à deriva

Nenhuma pegada

Vontade alguma

É tudo agora porque

Dizia o que fosse

Foi... naquilo que via



27


O bushido de Tyke


A vi uma única vez, numa primeira imagem, desfocada e brutalmente triste. Soube depois que seu nome quer dizer criancinha, mas também alguém que não se comporta de uma maneira geralmente aceitável. E eu sei, ela estava certa. Continuei a ver só até não suportar mais, bem logo depois do seu primeiro e único olhar. Na sua bravura e desespero, alucinadamente livre, em seu desassombro derradeiro. E ela me disse ali de toda a minha miséria humana. Com sua morte heroica e em seu urro de glória ancestral eu entendi toda a sua majestade e, num lapso de espanto, quem eu sou, o que eu nunca fui e quem eu jamais serei...



28


O mundo a que pertence

As suas sombras úmidas

A memória nítida de um dia

Quando o fogo era sagrado


Dos tempos destes sinais

De tribos de guerreiros puros

São tristes pátinas fósseis

Lugares duma infância perdida


Dança pagã das iniciações

Moradas do espanto atávico

Glória das ávores guardiãs

Dias absortamente vividos


Falsas estruturas românticas

Sedimentos de vidas distantes

Reescritas momento a momento

Ruínas dum quilombo de anjos



29


Alétheia de Hipátia


Quando este seu único e verdadeiro amor acaricia com essa maiêutica pública e constante a que não consegue se negar. Por fim a obriga minuto a minuto a morrer, comо morreu o seu como de muitos único herói, o veneno que deve tomar é o conhecer do desprezo ingênuo de seus amigos, é porque também escolheu a ignorância como a sua sabedoria. Serenamente aceitar a inútil ilusão de que alguns correriam para alertar, que poderiam reverter uma sentença milenar que é imposta àquele que não vai se esconder, que não vai deter o sacrificio a que seu espírito. O obriga e, muito mais além, não vai deixar de desvelar sua própria insignificância aos quatro ventos que voam sem parar da boca de sua mãe pagā.



30


A janela é a capa do long play

A esfera é quando sai o gol

Os olhos o lago do azul do céu

O coração o cálice sagrado graal

A solidão uma cidade cheia

A saudade é a chuva fina

A felicidade um nó na tristeza

Aquilo tudo é o que se foi

Nada mais é o que ainda falta

A Terra gira quando a gente anda



31


Nada é mais popular no mundo do que o futebol, as eleições e alguém que canta. E o povo adora poesia; e o poema não é certo nem errado, moralmente, felizmente ou infelizmente, sabe-se lá. De um sucesso quem canta, escutem atentos, se canta bem ou mal, se difícil ou fácil, quem dirá? é por ser, geralmente, se os agrada ou não, da canção... o melhor refrão. Até num sufrágio desses, vejam bem, bom ou mau... quem ganha, finalmente... ganha por ter, se os agride ou não... o mote mais forte. E olhem... o que são os gols,normalmente, por grande exemplo? nada mais que, perfeitos ou tropeços, se os alegra ou não, um encadeamento de versos...



32


O último desejo do poema moribundo

Que de anunciação seria agora epitáfio

Foi ser compreendido em seu instante

Intacto na anatomia dos seus versos

E que fosse inútil dissecar as rimas

Sendo a causa de um outro efeito

Que estivesse de um mote, apenas isso,

Como um velho rio é para seu leito

Como o céu turqueza é para as nuvens

Como a pedra na costa é para o mar

E que o leitor solitário ficasse ali quieto

Diante daquilo que viu na estrofe pura

Pois, que na sua esperança derradeira

Que de cada vez que lido se desvendasse

Que da sua poesia nada nunca se explica

Que fosse ele próprio a explicação de tudo



33


O Buddha de Todos os Tempos


Quando morresse o Messias

Não quereria respeito algum

Quererá só um circo montado

Esperara no meio do picadeiro

Enquanto comece uma festa

Com todos os Rhythm & Blues

Que atravessava-se toda noite

Quem por querer cantaria

Quem não queira que não

Como ninguém mesmo fora

Chamem quem quiser iria

De manhã que se acabe com tudo

E queimá-lo-íamos numa pira

No epitáfio escrevei sem medo:

"Subiras a montanha sem cordas."



34


Sendo um casto um justiceiro

Por não sentir e pela negação

Distância do mal que atocaia

Na coragem de nunca o fazer


Não seria nisso o que é assim

Daqueles não for nesta honra

Tão covarde quanto quem faz

A luxúria desta a dominação


Seu sacrifício duma não ação

A aventura da inofensividade

Dum resistir nesta abnegação

Do nada não poder ser menos



35


Dos arrepios ingênuos

Desde a platéia iluminada

Pelo bate bunda da sanca arejada

Até os festins da estréia treslocada

Todos se alvoroçam saltitantes


Já no escuro da coxia estreita

Na crudeza do cordame emaranhado

Carretilhas enferrujadas

E na solidão borrada

De um camarim de espelhos trincados

É quando o velho farsante

Se percebe estarrecido

De que nunca houve o grande ator

Mas somente uma triste personagem

Dos parangolés de si mesmo



36


Eu me lembro da velha terra

Eu me lembro do velho rio


Não de imagens me lembro

Mas de sensações em meu corpo

Meu sangue é que treme na lembrança

Não das bandeiras me lembro

Mas dos aromas, brisas e dias

Não dos cantos de guerra

Mas do balanço dos pinheiros na tarde

Dos caminhos de silêncio e pouca luz


Eu me lembro que sou velho também

E aqui no exílio em meu assombro de saudade

Espero ouvir a pancada do seu coração profundo

Um alívio que me leve de volta ao seu leito



37


As cinco juras do peregrino


O teu tempo o mais lento

O teu passo o mais delicado

A tua bagagem a mais leve

O teu argumento o mais silencioso

O teu nome o mais desconhecido



38


O poeta é nada além dum pobre coitado

Que deuses decidiram por despedaçar

E tem um pedaço jogado em cada lugar

Desde o coração e a alma esquartejado


É andarilho de lembrança em lembrança

De tantos destinos sem dó arrebatados

Sonho, maldição e penitência misturados

Exílio onipresente que nunca se alcança


De todas as guerras the exigem os cantos

De toda saudade que acalme seus prantos

Das cidades sempre a dançar apaixonado


Das odes e visões que ninguém acreditará

Do que passa planta para nascer o que virá

Só, num pacto de vida e morte aprisionado



39


A nostalgia é uma galáxia de saudades...



40


A inteligência Virtuosa

É a ponderação da certeza


A intolerância Viciosa

É a negação da incerteza


A verdade esclarece

Onde a mentira convence

Aquele vil é refém

Onde o casto se abstém



41


Nas distâncias daquela paisagem

Saudade e solidão são o teu abrigo

Nas lembranças o teu único dialeto

Os restos de fogueira ainda ardem


Desde que te viu ali no capim denso

A velha trilha andaluz arrependida

Incógnita naquela ventania pendida

Sempre te espera olhando o silêncio


Uma pedra branca rolou no caminho

Te deu alguns dias essa parca sorte

Nas vilas vazias o mudo semblante

No suspiro delirante desse teu exílio


Quando desta vida já te abandonou

Na praça depois de todas as festas

Deixando tua nata inocência apenas

Só a silhueta da tua alma amanheceu



42


É a ilha a alma gêmea do lago?



43


Numa manhã serena

Um sentimento cala

A delicada ausência

Numa brisa carrega

Por suave mergulho

Num manso silêncio

Que saudade é afago

Um abraço do eterno



44


Se já corres em tanto desalento

Entre teus macunaímas zumbis

Cruzes santas, lasca de brasis

Braseiros, dos paus, do pranto


Em teu triste berço desterrado

Desalmado na demolição torpe

Perdes agora a própria qualidade

De teu último amor ainda exilado


Assim escasso, parco e arregaçado

Destino, maldição dum desesperado

Existes pelo teu desaforo somente


Banido de ti mesmo, de teus nomes

Condenado a esta tragédia ser teu lar

Serás lembrado apenas como... lugar



45


Lua cheia e Lua nova

São uma coisa somente

Que muda donde se vê

Um seu lado o extremo

Estandarte de exteriores

Menestrel desses trejeitos

Outro seu lado no oposto

Juiz daqueles interiores

Pregador de preconceitos

Louvava de quem chorou

Ostenta quem o cobrou

Revoltado era amassado

Amansado é arrebatado

O que antes se fazia

É agora o que não se é

A última possível liberdade

É na solidão a imaginação

Que não lembra donde veio

A inteligência é então escrava

Acorrentada na velha memória

Que para onde vai se esquece

Toda face de luz encantadora

Tem o que a sustenta no escuro

Quanto mais pelos dias gira

Está pelas noites suspensa

Dança entre a vigília e o sonho

No pêndulo da eterna presença



46


Naquela foto antiga em que te via

A inteligência ainda poesia ingênua

Daquela hora sem cor e desfocada

Apenas o fragmento quase desfeito

Tão puro e faltando tantos pedaços

Que hoje daqui te revejo apaixonado

Tua coragem é duma imensa alegria

Um apelo transbordava destemido

A dádiva estava naquele teu sorriso

Que a verdade não te imitaria jamais

Que o espírito vaza pelo incompleto

Que de tudo o que viveu e era oculto

Da tua aventura que ainda pulsa real

O coração nenhuma vez simula a vida

Que da alma só se sabe e nunca se vê



47


Era o messias daquilo que viria

Dos sonhos e da ingenuidade

Dos pequenos passarinhos

Do verão luminoso nos córregos

Nas trilhas coloridas da primavera

O longo inverno nas fogueiras

Nas manhãs cerradas do outono


Àquele evocavam todas as almas

Não por seus feitos e milagres

E cada um mantinha uma coisa

Que de tal lembrança singela

Algo que ele ainda não terminara

Que tantas vezes prometera

Traziam assim toda esperança

Que ele nos seus corações

Havia delicadamente colocado


Era o que nunca nada conquistara

Era o que da fonte mais funda da vida

A todos em segredo havia abençoado

Que em seu nome esquecido

Fossem os que nada sabem

Venham e vão por todo mundo

Que não sejam vistos ou louvados

Que esperem pela glória dos dias

Com a solidão das últimas noites

Que caminhem serenos até o fim

No abandono da celebração do espírito

Recomecem a jornada perdida dos tempos



48


Ninguém pode ser o dono

Das linhas das fronteiras

Naquele silêncio estreito

Istmo entre as bandeiras

Deserda um último sonho


Na anarquia de esperanças

Banidas daquele velho reino

Da ventura desde as lonjuras

No instante de um só passo

O destino de suas distâncias



49


A verdade é tudo aquilo que ela não é...



50


Onde um ideal corrompe

E a compaixão que perdoa


O que a identidade aprisiona

Só a inteligência absolve


Quando o autoritário sucumbe

Começa a nascer a autoria














5 de jan. de 2025

A Fronteira do Mal. (crônica)





A Fronteira do Mal.


O veneno foi servido a todos, o seu antídoto, porém, só a quem sobreviveu. E este último, do que pode falar melhor, do veneno, do seu antídoto ou daquilo que estes lhe deu?

 

Se as monstruosidades que alguns humanos cometem provocassem sentir algo realmente, a felicidade nunca poderia existir. Enquanto o instinto animal no humano é uma árvore milenar enraizada, a intuição humana é apenas uma semente ao vento. Talvez a partir dos gregos, tudo o que ainda remanece de agressividade do animal, que neste é considerado normal, no humano começa a ser considerado maldade. A proposta do bem, da justiça, começa nesse processo de diferenciação entre o animal que era e o humano que se torna. E esta relação entre o mal e a justiça já nos pertence desde a individuação desse mal, na figura de Satan como a serpente¹ e a expulsão dos amantes do paraíso do qual, aparentemente, a serpente já fazia parte e continuou fazendo. A reação ao mal era o bem, era justiça implacável e a aspiração e manutenção da beleza imposta na punição a qualquer custo.


Então, em relação à humanidade atual, embora haja um senso comum a este respeito, não é que a maldade está tomando conta do mundo, é uma outra qualidade que faltava e que ainda está crescendo, pois, se a maldade é instintivamente animal, uma felicidade profunda seria fruto dessa nova intuição humanizada. Nesse tempo de justiça não existia o perdão, uma expressão humana que ainda não aparecia. Essa nasce depois no imaginário humano, há aproximadamente dois mil anos, seja este um evento histórico ou um arquétipo mitológico. Agora, com o Cristo, não se está mais em luta contra o mal, mas apenas o ignora, o mitiga pelo desprezo deste diante de uma nova qualidade humana, a bondade. Esta nega o mal, embora o reconheça, a justiça o equilibra, aplica um mal para devolver a maldade quando o aceita e o instrumentaliza em suas punições. A bondade exclui a punição e inaugura esse perdão. A bondade funda uma espiritualidade unificada enquanto a justiça era secular e baseada nas forças da natureza. A bondade é um fenômeno experienciado pela transcendência libertadora e a justiça é um númeno impositivo pelo destino fatídico. Sem o desprezo do mal, pelo poder do perdão, como no evento da tentação sobre a montanha², não teríamos mais que a vingança da justiça. A novidade absoluta da bondade crística não é uma ideia, uma ponderação, mas a força da ação diante da necessidade dos fatos. Não se apedreja uma mulher, não importa quem ela seja. Não se nega água e comida, não importa quem peça. Não se nega a verdade, não importa o que aconteça. E não se expulsaria ninguém do paraíso, pois essa nova bondade é o perdão total e a negação de toda e qualquer punição. As fronteiras da bondade estão definidas sobre a existência do mal. Na bondade quem é expulso, ou melhor, se auto exila pela sua própria incapacidade e fraqueza, é a maldade e não o engano. Este último é perdoado. Porém, antes de tentar entender como o mal permite a inauguração da bondade fundando a sua própria fronteira, seu próprio exílio, é preciso entender, sumariamente, o território da imaginação onde esse fenômeno de dá, porque nada que a consciência humana toca está fora da imaginação.


As Fronteiras da Imaginação


“Pretende-se sempre que a imaginação seja a faculdade de formar imagens. Ora, ela é antes a faculdade de deformar as imagens fornecidas pela percepção, é sobretudo a faculdade de libertar-nos das imagens primeiras, de mudar as imagens... Imaginar é ausentar-se, é lançar-se a uma vida nova.” Gaston Bachelard³


A imaginação tem fronteiras porque essa distorção só pode acontecer com as imagens que se percebe e a percepção humana é contida no universo, mas nunca poderá o conter. Mesmo assim, o conceito de fronteira não expressa uma borda, mas um estado. Não um limite, mas uma condição. O entendimento dessas fronteiras da imaginação obrigatoriamente deve, por esta sua própria condição abstrata, ser buscado através da consciência surgida direta e exclusivamente a partir das imagens, de metáforas e de seus arquétipos. Não é possível apenas racionalizar a imaginação, pois sua própria essência incorpora a irracionalidade. E a linguagem mitológica é o único estado que pode abranger a dialética entre racionalidade e irracionalidade, unificando a qualidade misteriosa da consciência humana. A seguir uma apresentação de duas de suas mais interessantes manifestações imagéticas das quais talvez a imaginação nunca ultrapassou em sua potência expressiva e reveladora, o prumo e o zodíaco. E por fim, uma aproximação à fronteira do mal para tentar caracterizar a qualidade da manifestação da bondade e seu impulso revolucionário para a humanidade atual.


O Prumo: A Alma no Centro da Terra.4


O prumo marca um ínfimo inicial para garantir a aterrizagem da alma, uma fronteira metafórica nas imagens anímicas. Mas o prumo não é o símbolo representativo da alma, é apenas o movimento da alma por essa imagem. Este aparece, deste modo, como um rastro das metáforas para a interioridade e a solidão do ser. Exprime um movimento, uma condição poética, do fenômeno anímico, interior, incorporado, mudo e subjetivo. Aponta para o ponto mais profundo nos vales do centro da Terra, como queda e mergulho. Esta imagem não fala da alma, mas de uma visão anímica do mundo. Embora seja também um importante elemento em sistemas organizados, ligado de maneira imediata à significação de equilíbrio construtivo e/ou retidão do esforço espiritual, é também considerado um “flexível símbolo da verticalidade”⁵. É uma imagem perdida no tempo e independente, liberada de qualquer tradição específica, um arquétipo puro. Se retirada dessa significação de um equilíbrio estabilizado para enfatizar sua qualidade de adaptação a um desequilíbrio iminente, o prumo não indica mais um estado de perfeição, mas sim a necessidade de um estado de vigilância, atenção e contemplação para que a alma possa se manter sempre diante do instante e assim vivenviar o eterno pela intuição e a imaginação. É a indicação do único ponto onde é possível a imaginação, no momento em que a alma se revela na intuição do instante. Esta se dá apenas onde não há equilíbrio e não há continuidade. Onde não há perfeição e não há duração. Porém, não importa o que aconteça, mostra que o instante estará, de algum modo, ali onde o prumo apontar independentemente da situação de seu entorno. Seja quais forem as variantes que venham a interferir, o prumo marca o ponto exato onde a alma deve encontrar o instante. Porque o prumo marca sempre uma verticalidade e essa é a principal qualidade da alma. Por isso o prumo não é a representação da alma, mas sim da sua qualidade, da sua potência. A fronteira do prumo é a situação da alma que se esconde no fundo do vale das imagens, mas, que deixa no seu fio um mote poético de sua presença que viaja entre o ponto mais profundo da Terra e o arco do firmamento mais aberto, a outra fronteira dessa imaginação, onde o espírito aparece com mais intencionalidade. Deste modo, é o fio do prumo que marca a extensão onde aparecem as imagens. É também uma indicação do mergulho até onde a imaginação deve chegar para encontrar seu mais delicado momento que desabrocha e que possibilita essas imagens. Não importa o que aconteça, vive-se sempre através das imagens, porém é importante saber que nunca se desvendará, como ser humano, o mistério que pode estar além desse ponto profundo da alma, além do que se é.


O Zodíaco: O Espírito no Arco do Firmamento.


É interessante notar que embora o prumo enfatize esse movimento da alma em seu caminho, já esboça a fronteira do espírito em segundo plano, ao expor o arco de onde pende e que sustenta o prumo. É o arco, o firmamento, o espírito onde se situa o zodíaco, visto de onde está a alma. O zodíaco, por sua vez, é um esforço em apresentar todas as possibilidades da manifestação desse espírito humano⁶. Uma fronteira que está nas imagens dos fenômenos do mundo e da qual o zodíaco é a sua metáfora máxima. É estética, na sua condição espiritual, exterior, objetiva e manifesta. É o seu pico mais alto, o cume imagético. Pode-se ver o zodíaco, observando a tradição mitológica do conhecimento, como a fronteira do mundo imagético, como nas tradições ocultistas onde representa o ápice espacial concreto do mundo humano, que se pode entender como a escala humana. O zodíaco seria, na verdade, como uma fronteira metafórica do mundo estético. Porque, só é humano o que é imaginado e para além do zodíaco não são criadas mais explicações mitológicas acerca do universo metafórico humano. Talvez uma prova disso seja a nomeação das novas descobertas que não recebem mais nomes mitológicos, mas sim numéricos, pois, a maior distância dada pela tecnologia parece não provocar tanto a imaginação fora dessa escala humana misteriosa. Como na imagem do prumo, o zodíaco não é a representação do espírito, mas a expressão de uma condição deste. O zodíaco é a metáfora da visão espiritual do mundo onde a vida humana é possível. 


Assim, as fronteiras da imaginação estão neste espaço entre a Terra e o zodíaco, tanto materialmente quanto metaforicamente. E se a Terra não é o centro do universo é, certamente, o centro de onde parte a imaginação sobre este universo. É neste centro, a Terra, aqui visto do espírito, o zodíaco, que ao mergulhar se chega ao ponto que apontava o prumo. E é neste arco, o zodíaco, na visão da alma, que a Terra vislumbra o espírito. Assim, cada uma das duas imagens que se relacionam como fronteiras, mesmo ao enfatizar o seu aspecto específico, mantém a presença da outra para testemunhar a extensão que vigiam, a imaginação. As duas falam do campo em que a imaginação criou tudo que existe no mundo humano. Uma é a língua da alma, o prumo, a Terra, e a outra, o zodíaco, as constelações, é a língua do espírito. A imaginação vive cotidianamente sob esse enquadramento, dentro destas fronteiras, neste instante eterno, onde cria a sua essência e a sua experiência.


O Quatro, a Décima Terceira Constelação e o Demônio 


"O doze é um número glorioso, é a manifestação da Trindade nos quatro cantos do horizonte”. François Chaboche⁷


O importante sobre o quatro, e a décima terceira constelação, é demonstrar também uma qualidade arquetípica comum a esses elementos imagéticos de sempre atuarem da obscuridade como possibilitadores da manifestação das coisas. Estas duas imagens reafirmam aquele conceito do exilado que proporciona a demarcação de uma fronteira imagética. Quando se olha a tetraktys pitagórica, por exemplo, visualiza-se um triângulo, uma trindade, mitologicamente relacionada ao mínimo, aqui em relação à alma, para a manifestação da vida na Terra. O quatro, nesta imagem, contém e protege a trindade e a conduz à manifestação daquela mesma qualidade anímica revelada no prumo. É o quatro que faz com que existam os três espaços da trindade na tetrákts quando os separa. É o quatro quem cria as fronteiras do três. Nesta qualidade de contenção é o quatro, também, como lembra Carl Jung, que “preferiu ficar por aí, em algum lugar, atrás ou embaixo”⁸. Sua condição é, em relação ao três, de contenção, de fechamento, delineamento do que é, não sendo. Se muitas vezes seu aparecimento indica essa totalidade é apenas em consequência dos espaços que permite e nunca de uma noção de infinitude. Para que a trindade se manifeste o quatro se exila na sua própria fronteira.


A décima terceira constelação, o Ophiuchus, ou Serpentário⁹, é outra situação imagética que ajuda a demonstrar a atuação destas fronteiras que permitem a manifestação de uma expressão imagética, porém, sendo consideradas exteriores numa espécie de banimento. Esta é também uma imagem que está excluída, neste caso se relacionando ao espírito, o zodíaco. Na época da constituição oficial do arco zodiacal, embora essa constelação já fosse conhecida, ficou de fora por estar longe da eclítica e, assim, não foi incluída. O que interessa aqui é que sua imagem revela sua própria situação. Esta imagem também decidiu “ficar por aí”, banida num exílio. E, assim como o quatro contém a trindade, para que existam doze constelações é necessário que existam treze bordas, pois o doze está dentro do treze. O treze cria as fronteiras do doze. Um ser humano segurando uma serpente que se enrola em seu corpo. Essa mesma situação da imagem do Serpentário é também expressa pelas imagens antiquíssimas do Bastão de Esculápio e do Caduceu. Aqui é a figura humana que contém a serpente, a controla, mesmo com o visível movimento dessa serpente dificultando essa atitude. É a única imagem dessas constelações zodiacais em que existe uma relação conflituosa e que, de certo modo, indica um perigo. Bem, o que é o quatro, quem é a serpente, aquele que se exclui, que delimita e provoca um fenômeno mesmo sem participar deste, que “preferiu ficar por aí, em algum lugar, atrás ou embaixo”, à espreita? 


Finalmente, para entender a força da bondade temos que encontrar as fronteiras do mal e, definindo os seus contornos, temos que entender o demônio que é desprezado pela bondade. Para tanto, pode ser interessante guardar duas outras qualidades dessas imagens da manifestação daquilo que atua nessa espécie de clandestinidade e que são também controladas nas suas fronteiras. O quatro preferiu ficar por aí, atrás ou embaixo. A décima terceira constelação é a figura de um humano controlando uma serpente. O quatro, é um renegado que ignora, a serpente, uma entidade fugidia que convence.


Estas atuações mostram duas faces que podem ser relacionadas com duas das mais influentes e conhecidas entidades demoníacas da modernidade, uma é Arimã e a outra é Lúcifer¹⁰. Ainda inspirado no conceito da fronteiras, da alma ao espírito, as descrições desses arquétipos da manifestação espiritual do mal se relacionam diretamente a dois conceitos anímicos ligados a esta mesma manifestação, do medo e da ilusão. Antes de revelar a qualidade espiritual daquelas duas entidades mitológicas é importante descobrir a essência destes dois estados anímicos, pois, a relação entre os dois extremos mostra o espaço entre as fronteiras do mal onde a atuação da bondade se manifestará. Estes últimos, o medo e a ilusão, falam das marcas do poema da vida que se perdem nas divagações do futuro e as tonalidades das imagens que somem na angústia do passado. Por isso, esse movimento é eternamente recriado a cada possibilidade, num esforço para ser compreendido. É um conflito, consciente ou não, entre essa racionalidade e a irracionalidade da imaginação, para negar a opressão dessa ilusão do futuro, desse medo do passado e não se afastarem da presença, do instante desconhecido ao criar imagens, ao imaginar. A imaginação fascina, e esse fascínio é sua própria essência. Ela é o exercício de viver e amar esse presente que não se pode prender porque escapa. Ela é o vestígio desse viver que se perde sempre, dessa morte vivente que cerca e da qual se é parte. E esta é uma condição pura da qualidade sacrificial da imagem. Porém, somente o desconhecido é vivo. Somente a situação imaginativa, nas fronteiras de seu movimento poético/estético, dá qualidade à experiência de ser humano. Quando o viver é equânime ao desconhecido, ao revelar não a impossível visão da sua face, mas ao partilhar o espanto em relação a ela através das imagens, surge a felicidade da eternidade insuperável, que é a proposição da bondade. Tudo aquilo que se cria é apenas e tão somente uma tentativa de elaborar uma explicação deste impacto, desse espanto. Tudo o que se cria é imaginação, que se desenvolve na irracionalidade de um delírio e de uma revelação.


“Todo delírio é revelador, e toda revelação, delirante”. James Hillman¹¹


Continuando, para alimentar a imaginação sobre aquelas duas entidades arquetípicas, não é necessário definir o lugar do mal, tampouco explicar porque a maldade existe. Mas, talvez seja importante sugerir uma percepção de como essas fronteiras específicas aparecem. O mais importante, porém, não é denunciar o aparecimento do mal em certos momentos ou impressionar a todos com essa aparição, mas apontar como esse arquétipo é dominado pelas disposições poéticos/estéticas fronteiriças que atuam em função da possibilidade da manifestação daquela novidade da bondade. É então possível literalizar essas condições do mal, através de duas manifestações expressas em performances musicais, em que muitas vezes manipulam a expressão dessas entidades malignas em benefício próprio, de dois dos maiores grupos da música, escolhidos aqui simplesmente por serem capazes de reunir um grande público em suas apresentações, mobilizar as maiores e mais custosas estruturas para espetáculos, o U2 e o Rolling Stones.


Da banda U2 na canção “I Believe in Father Cristimas” há a atitude imagética arquetípica que demonstra a energia arimânica sob controle, no momento exato em que poderia ser tomada  em função dessa criação artística para o entendimento do impulso da bondade. Essa energia é descrita por como uma potência de possessão. Porém, na obra, é possível associar essa afirmação com esse mesmo teor, mas, em uma noção que propõe um sentido inverso. É o imaginador que impõe uma possessão à energia arimânica ao dominar o medo e questioná-lo. A performance expressa a dominância sobre o medo e a frieza, apresentada numa iluminação como a de um gelo azul, associada a essa entidade que acaba sendo possuída pela expressão artística da apresentação porque é revelada.  


"Disseram que haveria paz na Terra

Mas ao invés disso, apenas continuou a chover

Um véu de lágrimas para o nascimento da Virgem...

...E eu acreditei no Pai do Natal

E eu olhei para o céu com olhos ansiosos

Até que eu acordasse com um bocejo na primeira luz do alvorecer

E eu vi ele e através de seu disfarce

Eu lhe desejo um Natal cheio de esperanças

Eu lhe desejo um corajoso ano novo

Que toda dor agoniante e tristeza

Deixem seus corações e limpem as suas estradas

Disseram que haveria neve no Natal Disseram que haveria paz na Terra

Aleluia, Noel, seja no Céu ou no Inferno

Cada um tem o Natal que merece." 


Na outra atuação, da banda Rolling Stones na canção “Sympathy for the Devil” está a situação arquetípica luciférica. Outra vez, este arquétipo discorre sobre esta energia demoníaca, porém, como uma potência de sedução. Aqui, da mesma maneira que na performance anterior, ocorre uma inversão e a dominação da ilusão e do calor pelo imaginador, expressa numa apresentação tomada por uma iluminação como o fogo amarelo, que a coloca também a seu serviço. A sedução é dominada quando se torna a própria apresentação da banda.


"Prazer em conhecê-lo

Espero que tenha adivinhado meu nome

Mas o que o está confundindo

É somente a natureza de meu jogo (Quem? Quem?)

Assim como todo policial é um criminoso

E todos os pecadores são santos

E cara é coroa

Simplesmente me chame de Lúcifer

Porque preciso de alguma amarra

( Quem? Quem?)

Então se encontrar-me

Seja cortêz,

Seja simpático e tenha bom gosto

(Quem? Quem?)

Use de toda etiqueta que conhece

Ou então tomarei sua alma

(Quem? Quem?)"


Nas duas aparições o ser humano controla a energia da serpente em função da imaginação, como na constelação do serpentário. Nestas situações imagéticas se pode vislumbrar uma condição psíquica mais aprofundada do como poderia ser a relação da bondade com o mal, com a esfera infernal, porque as entende, expõe, elucida e domina. Esse aprofundamento se dá através de uma potência poética de profanação muito comum às manifestações artísticas. Isso é muito importante aqui, pois pode mostrar o movimento que faz com que o mal seja dominado em função de uma necessidade humana e, assim, transforma-se em uma energia que será fundamental para todos os processos da imaginação humana, numa reflexão sobre os valores e a moral, na transgressão do próprio mal. Porque não é possível eliminar o mal da existência, mas é possível encontrar a sua posição, manter as suas fronteiras, colocando-o assim num lugar onde seja importante na compreensão da vida. Não é o crescimento do mal que domina o mundo, mas o abandono da ação da bondade. O lugar do mal é sempre o mesmo, porém, a ausência da manifestação da bondade faz com que, proporcionalmente, a maldade se torne mais evidente. Como na tentação do demônio no topo da montanha, é a aceitação ou não das propostas do mal que definem a sua exata dimensão. 


"Não faço o bem que quero, mas faço o mal que não quero”. Paulo de Tarso¹²


Para mitigar o mal, não é nada necessária uma infindável batalha contra a sua existência, pois, sendo esta mesma existência uma condição para a própria manifestação da bondade, isso o fortalece ainda mais, porém, bastaria apenas cultivar a bondade. Sem este cultivo consciente, o fundamento de toda a manifestação do arquétipo do Cristo, fica-se eternamente preso nessa fronteira entre esses dois momentos que, embora possam declarar seu antigo desejo da vingança pela justiça, nunca mergulharão na promessa apaixonada da bondade e de sua profunda felicidade no perdão.






1- Genesis, 3 

2- Mateus, 4

3- Bachelard, G. 2001. "O Ar e os Sonhos". São Paulo: Martins Fontes. p1

4- Trechos reconstruídos a partir de: Catani, F.H. 2011. "Uma Visão da Alma Artística". Dissertação de Mestrado. Campinas: FE-Unicamp. p15

5- CHEVALIER, J.& GHEERBRANT, A. 1992. Dicionário de Símbolos.Rio de Janeiro:José Olympio. p432

6- A partir de algumas palestras de Rodolf Steiner, que é também um dos maiores estudiosos da obra de Goethe: https://www.fourhares.com/anthroposophy/twelve_senses.html. The Notebooks of Rudolf Steiner, Watari & Kugler, eds, Watari Museum of Contemporary Art, Tokyo, 2000, pp84-86

7- CHABOCHE. 2005. "Vida e Mistério dos Números".São Paulo: Hemus  

8- Jung, C. 1994. "Interpretação Psicológica do Dogma da Trindade". Petrópolis: Vozes. p53

9- https://planetario.ufsc.br/a-polemica-do-13%C2%BA-signo/#:~:text=Ofi%C3%BAco%20%C3%A9%20uma%20constela%C3%A7%C3%A3o%20um,a%20Escul%C3%A1pio%2C%20deus%20da%20medicina.

10- Prokofieff, S. 2018. "O Encontro com o Mal". São Paulo: Antroposófica

11- Hillman, J. 1993. "Paranóia". Petrópolis, RJ: Vozes. p56

12- Romanos, 7:19