23 de mai. de 2014
Queime depois de ler... (crônica)
Um grande professor que conheci exigia que lêssemos todos os jornais e revistas possíveis. Primeiro mandava que os lêssemos e depois discutíamos algumas das notícias, textos, crônicas, artigos que a cada um havia interessado mais ou menos. Ficava claro então que, para conhecer bem a sociedade, deveríamos investigar todas as suas manifestações. Hoje está disseminada uma coisa muito estranha, um tipo de ataque ideológico que algumas pessoas fazem (que muitas vezes se acreditam super conscientes politicamente) sobre algumas revistas, jornais e programas de TV. Acreditam que tais mídias devam ser, talvez, proibidas de circular? Ou acusam de estupidez o simples fato de que alguém as leia ou os assista. Como se fosse possível, e justo, fazer uma limpeza prévia dos conteúdos, como se fosse possível que houvesse alguém, alguém tão puro, que pudesse realmente fazer isso sem prejudicar, aí sim, a consciência da sociedade. Mas é extremamente falso que a sociedade se desenvolva política ou culturalmente assim, na proibição da censura ideológica. Fazem campanhas do tipo: “quero tal revista fora da escola!”. Como se as pessoas fossem incapazes de, depois de ler, tomar as próprias conclusões... ou, a partir da leitura, iniciar um debate e reflexões sobre os conteúdos e chegar a mais conclusões. Publicações, opiniões, visões de mundo devem ser publicadas, lidas, analisadas, denunciadas e, se for o caso de serem inverídicas ou ilegais, acionadas judicialmente. O único perigo real aqui é a parcialidade, tão comum entre o partidarismo político e o patrulhamento ideológico, quando este tenta selecionar previamente, tenta limpar o mundo e moldá-lo à sua imagem e semelhança, para... “conscientizar as pessoas da verdade”. Seja de qual “lado” for. Pessoas que aprendem a pensar são aquelas que entram em contato com as coisas do mundo e começam a ver, por si mesmas, aquilo que está na sua frente e aprendem, então, a julgar essas coisas... Quando lembro de tudo o que vi e aprendi e conheci por aí nos lugares mais inusitados... desde menino tive essa sorte, pois meu pai também me mostrou isso. Porque pra ele catar as coisas onde dava era a estratégia; porque ele não tinha nada e viveu assim num país que não tinha nada em nenhum lugar durante muitos anos... Meus olhos, depois que ele me mostrou isso, tentavam encontrar o melhor em qualquer lugar. Porque outra, como já disse bem o grande poeta, “até no lixão nasce flor...”
8 de mai. de 2014
LUX UMBRA DEI (ensaio)
Rectificando
Invenies
Occultum Lapidem”[1]
A primeira vez que
encontrei esta frase acima foi num contexto atribuído a uma declaração de
Albert Einstein. Conta a lenda que, durante uma entrevista, questionado sobre o
que seria a luz, ele respondeu: “A Luz é a Sombra de Deus”. Ao pesquisar
descobri que Einstein, se falou mesmo isso, talvez houvesse citado um poeta
místico do século XIX, que usa a frase em latim num título de um poema seu.
"Lux Est
Umbra Dei...
Não, Morte,
tu és uma sombra! Mesmo tão leve
É nada
mais que a sombra do invisível Deus,
E
deste espectro a sombra é escassa Noite,
Velando
a terra onde os nossos pés pisaram;
Então
tu és a sombra dessa vida,
Em si
mesma o pálido e insubstancial espectro
É Deus
vivo, pleno de amor e luta
Que em
todo o universo a Si mesmo tem criado:
E a
noite tão frágil, seguindo o vôo da terra,
Obscurece
o mundo que inspiramos, por um tempo,
Então,
Tu, o reflexo do nosso nascimento mortal,
Vela a
vida na qual estamos a chorar e sorrir:
Mas
quando ambos, a Terra e a vida, são jogados para longe,
Que lugar sombrio pode nos ocultar do dia imortal de Deus?"[3]
Anterior ao poeta,
esta frase está inscrita num relógio de sol de 1770. Sua origem ou autoria
parece ser desconhecida. Contudo, o que me interessa aqui é a sua carga poética
e também o potencial que esta frase tem em afirmar o imenso paradoxo do qual
gostaria de indicar que a imaginação é cria. O lugar em que sou jogado ao
refletir sobre esta demanda é aquele que não carrega mais imagens, somente
alimenta uma consciência silenciosa do instante.
Neste vácuo de
elaboração de imagens, que sugere esta evocação atávica, encontro a pureza da
imaginação em um estado latente, antes que esta realize seu movimento. Esta
frase é uma antimusa para o imaginador[4],
que é justamente o que suscita o elemento que permeia todos os temas primitivos
de uma alma artística, pois estes são substâncias desencadeadoras. Este
silêncio total que fomenta a criação em seu instante ínfimo e eterno é um impulso
constante que nega a necessidade de imagens, paradoxalmente, para criá-las.
Esta frase me deixa diante do som do universo, do AUM, aquele que:
“é o som primordial
inaudível, o som criador a partir do qual se desenvolve a manifestação, a
imagem do Verbo. É o Imperecível, o Inesgotável (akshara)”[5].
A sombra é um álibi
da manifestação da luz. De que é o oculto que revela o aparecimento do exposto.
Tanto do movimento do que é poético sombrio, e que induz o estético, como no
caminho inverso, o da estética luminosa que afeta e envenena a compreensão
poética do mundo. Se o V.I.T.R.I.O.L. me lança nessa aventura, esta frase é o
portal onde eu devo chegar, pois, ainda não há como produzir uma imagem aqui.
Refletir sobre esta frase é evocar a intuição do instante. A minha única
possibilidade aqui é refletir sobre isso e, ou encontro um conhecimento
negativo, ou seja, que até agora não produz uma imagem, ou a frase fica sem
importância nenhuma. Chego ao centro da Triquetra, a luz pura incolor, sem
substância reconhecível.
A frase “Lux Umbra
Dei” é também o que podemos chamar de um mantra, consegue me colocar no estado
em que não sei exatamente se há a necessidade de elaborar uma imagem, posso, ao
meditar nisso, manter-me o máximo possível em um silenciamento, anterior e
primitivo, atávico, uma fonte oca ou uma taça vazia, onde o meu poema arcaico
ainda não está, embora seja este o único lugar em que tal poema se criaria,
mas, por acréscimo, ou seja, mesmo que nos encante assustadoramente a
literalização do poema, este é e será sempre apenas um subproduto desse
encontro.
Paradoxalmente,
reafirmando, as melhores imagens, quando entendemos as suas propostas
espirituais, são as que têm esse dom de proibir um avanço especulativo em
direção à própria criação de imagens. Acredito que esta é a grande missão de
toda imagem honestamente poética, ser a última, interromper o seu próprio
processo e restaurar a sacralidade, a eternidade do silêncio. É o caso
também do efeito que nos causa o Oróboros. Coloca-nos no ponto original dessa
consciência, dessa sombra em que não há nenhuma autoridade possível além do
olhar direto. A imagem do Oróboros exige isso do observador e, como nos precaveu o
poeta:
“…Você
já se sentiu muito orgulhoso por chegar ao significado de poemas? Fique comigo
neste dia e nesta noite e você possuirá a origem de todos os poemas...” Walt Whitman[6]
Coloca-o também, e
principalmente, no ponto da origem de todos os poemas, que é
indeterminavelmente mais importante para o imaginador do que
qualquer imagem que este possa inventar. Entre o medo e a ilusão que a imagem
sempre provoca, e que sempre anseia explicar o mundo, surgiria então a essência
da consciência arquetípica daquele afeto silencioso pela vida, “...fogo que
arde sem se ver...”, o único arquétipo à altura da grandiosidade do
instante.
Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;
É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?[7]
O instante em que
escolhe conhecer sempre, mas sem poder registrar nada. É um estado de
imaginação incondicional. E isso acontece não porque este é um produto do medo
e da ilusão, mas porque os envolve também. É a própria imagem que mantém a
confusão de que ela explicaria o mundo, quando na verdade, esta apenas foi
produzida por esse entendimento como mais um elemento do processo, entre muitos
outros irreconhecíveis. Esta afeição é um movimento de disponibilidade. Estar
disponível o máximo possível em qualquer situação, diante de qualquer condição,
sem eleger um modelo para quantificar ou qualificar essa disponibilidade. Nessa
situação arquetípica de disponibilidade absoluta, por princípio, tem-se o único
momento possível para negar a especulação do que está condicionado ou é
preconceito. A Luz incolor consegue alcançar todos os lugares, porém, sua
revelação é sempre refletida numa inversão que manifesta a cor.
Esse especial
arquétipo conceitual para o instante, o Amor, reserva uma grande potencialidade
de mistério porque sua principal qualidade intrínseca é buscar se expressar sem
palavras e sem imagens, como diz o poema de Camões, para ser sempre anterior a
si mesmo. Porque este é o lugar desse instante, na suspensão sempre anterior,
antecipada, da imagem criada, e essa a sua principal característica, por isso,
a intuição do instante é o grande movimento da espiritualidade do poema, o
grande momento da ternura da alma artística. Somente podemos nos aproximar amorosamente
do que não tem nome, do irreconhecível, daquilo ainda não criado, da imagem
latente, pela intuição, pois, a intuição é a característica primordial desse
arquétipo total.
Assim, relacionamos
o conceito de fé ao reconhecimento espiritual da vida, viver vem antes de
pensar, de criar imagens. E por isso podemos apenas intuir esse instante. A
proposição primordial do arquétipo Amor é o cultivo do instante. E por isso não
se pode esperar garantias, porque o instante não é garantido, mas perdido
eternamente. Essa é a doação do Amor. Apaixonamo-nos pela imagem, apegamo-nos a
ela como se esta fosse o próprio instante, quando esta é simplesmente seu
álibi. Porém, esse álibi é aqui apontado apenas como uma atitude de reverência,
ritualizada no processo artístico de todo imaginador, para sempre
visitar e cultivar o âmago das coisas. “Devemos louvá-lo como a um dos
mais velhos deuses...”[8].
Seu mistério está na
sua própria gênese, porque este é o arquétipo para nossa própria gênese. É um
mistério que não deve ser desvendado, mas sim, ser cultivado exatamente como
mistério em si mesmo. Enquanto esse Amor, essa intuição a que se dedica cada um
dos temas primitivos à sua própria maneira, for misterioso, será possível uma
vida espiritual humana, na existência do imaginador, uma vida
artística. Precisamos entender que o mistério poético nunca será esgotado por
qualquer descoberta, pois essa é precisamente a sua essência mais profunda. O
mistério desse Amor intuído é a substância arquetípica da noção de eternidade
da luz. O que se revela pela imagem é ainda, e tão somente, a sombra daquilo
que a cria. A imagem é, então, a sombra do instante.
O importante é me
sustentar neste instante, equilibrar-me, como numa motocicleta, e não ficar a me
impressionar somente pelo que esse momento foi capaz de materializar. Porque
isso me distanciaria sempre deste instante. Esse é o problema com a imagem.
Embora seja a melhor maneira de vislumbrar a Divindade, por outro lado, é
também um elemento que mais nos afasta da Divindade, porque é um apego muito
forte que pode gerar grandes confusões, principalmente quando, seduzido e
possuído, passo a tentar impor a imagem que julgo ser melhor porque, usando-a,
consigo acumular um poder que mante´m aparentemente o contato com essa Divindade.
Ao me prender nesta
teia da imagens criadas, perco a possibilidade da intuição do instante, que
precisa do vazio, e fico a cultivar sentimentalismos que, mesmo também fazendo
parte da imaginação, têm uma característica muito cumulativa que cria muito
barulho e especulação mental que, por sua vez, quebra o movimento da alma
artística e força o imaginador a perder a sua originalidade. Entender isso não
é importante para deixar de produzir esse barulho, que é também uma parte de
minha vida, mas, uma preocupação em nunca deixar que nada me impeça de fluir o
movimento dessa alma pela imaginação. Como na lenda do bezerro de ouro da
Bíblia, no livro do Êxodo, a admiração da imagem, sem o
conhecimento de sua condição, levaria ao desligamento da Divindade. Ou ainda, neste outro exemplo, como alerta este discurso atribuído a Jesus Cristo no evangelho de Tomé:
“Quando de dois fizerdes Um
e quando fizerdes o interior como o exterior,
o exterior como o interior
e o alto como o baixo,
quando tornardes o masculino e o feminino um Único ser,
a fim de que o masculino não seja macho
nem o feminino uma fêmea;
quando tiverdes olhos em vossos olhos,
a mão em vossa mão,
e o pé em vosso pé,
um ícone em vosso ícone,
então, entrareis no Reino!” [9]
O imaginador,
o apaixonado pela alma rústica, artística, é despertado e parte para retificar
a sacralidade de sua vida, ao retomar constantemente a reflexão filosófica
ingênua sobre os seus temas primitivos, anteriores à criação das imagens. Afirma neste ato que cada uma dessas
potências atávicas, que podem ser conquistadas intuitivamente simplesmente na
evocação desses temas, desencadeia neste ser imaginador os elementos
arquetípicos fundamentais para o processo de criação de imagens que,
simultaneamente, mantêm-no apto ao instante silencioso da presença mística do espírito
do mundo. Isso é o que mais nos marca no encontro com a alma artística: essa
evidente indicação de que é a consciência deste evento, que eu chamaria de
espiritual, o movimento mais importante para a iniciação de um ser humano nessa
imensa aventura que é a vida insondável e misteriosa.
A alma artística não
se apega aos seus projetos, mas sim à potência que pode e os mantêm sempre
latentes, sempre possíveis. Se ficarmos a nos deslumbrar com cada imagem criada
por essa potência, sem entender sua grandiosa condição espiritual, ficaremos a
pular de uma referência à outra, de uma emoção fugaz a outra, de uma técnica a
outra sem nunca encontrar sua fonte, a sua origem, a “Sarça Ardente”[10].
Assim, se é a imagem uma sombra necessária para viver pela alma artística, é
justamente esta a pedra oculta que o imaginador deve
sacrificar à Luz, numa persistente evocação do eterno instante, o Amor - a
sombra de Deus, num evento solene e ritualisticamente elaborado, ou seja,
artístico.
Eu me lembro da velha terra
Eu me lembro do velho rio
Não de imagens me lembro
Mas de sensações em meu corpo
Meu sangue é que treme na lembrança
Não das bandeiras me lembro
Mas dos aromas, brisas e dias
Não dos cantos de guerra
Mas do balanço dos pinheiros na tarde
Dos caminhos de silêncio e pouca luz
Eu me lembro que sou muito velho também
E aqui no exílio em meu assombro de saudade
Espero ouvir a pancada do seu coração profundo
Um alívio que me leve de volta ao seu leito
Fernando H. Catani
[1] Esta referência à
Alquimia surge já nas minhas primeiras iniciativas de reflexão sobre o tema da
alma, inspiradas numa obra imagética muito especial: o Mutus
Líber, o livro mudo da alquimia (CARVALHO,1995), e principalmente
em sua particular qualidade de indicar aspectos psicológicos do imaginário
poético humano, que ao mesmo tempo mostra uma beleza artística incomum,
materializados em placas para gravura em metal que descrevem os símbolos e os
procedimentos dos fundamentos iniciáticos do trabalho alquímico filosófico.
Estas ilustrações e o ensaio que acompanha a edição elencam os mais importantes
termos, proposições metafóricas e arquetípicas da alquimia, e é peça
fundamental para a elaboração em meu trabalho dos sentidos de uma concepção de alquimia
psicológica. Este
tema me interessa essencialmente por seu inusitado aspecto de singularidade,
simplicidade e primitivismo psicológico em sugerir que o desenvolvimento
espiritual é possível à todos os seres humanos irrestritamente como, por
exemplo, está implícito no V.I.T.R.I.O.L. “Visita Interiora
Terrae Rectificando Invenies Occultum Lapidem”. Explora
o interior da terra. Retificando, descobrirás a pedra oculta. Esta é uma
fórmula anônima célebre entre os alquimistas e que é a indicação do primeiro
passo, uma ordem fundante da história insondável da Alquimia, mas, a tomo aqui
me aproximando de seu aspecto filosófico, poético e metafórico de sugestão e
chamamento a uma vivência de libertação, daquilo que acredito seja e que defini
como o principal problema psicológico humano: a relação entre o medo e a ilusão
(CATANI,2011:15)
[2] LUX UMBRA DEI. A Luz é a Sombra de
Deus. Inscrição encontrada em relógio de sol, sundial, da Dymock Church,
Gloucestershire.
[3] John Addington Symonds (1840–93)
[4]Nomeação dada por mim
ao caráter fundamental do ser humano atual, contemporâneo
(CATANI,F.H.-2011. Uma Visão da Alma Artística. Dissertação
de Mestrado. Campinas:FE-Unicamp). Esta perspectiva afirma aqui uma qualidade
humana muito importante para este trabalho, a de que este ente humano é hoje,
antes de tudo, um imaginador. Aqui também o caminho para a compreensão desta
qualidade específica começa a partir das reflexões de James Hillman: “O
cultivo da alma é também descrito como imaginar, ou seja, ver e ouvir por meio
de uma imaginação que enxerga a sua imagem através de um evento. Imaginar
significa libertar os eventos de sua compreensão literal para uma apreciação
mítica. Cultivo da alma, neste sentido, equipara-se com des-literalização;
aquela atitude psicológica que suspeita do nível dado e ingênuo dos acontecimentos
e o rejeita para explorar seus significados sombrios e metafóricos para a
alma”. HILLMAN,J.(1983:55). Psicologia
Arquetípica. São Paulo:Cultrix
[5] CHEVALIER,J.&GHEERBRANT,A.(1992:657).Dicionário de Símbolos.RJ:José
Olympio
[6] Walt Whitman, no poema: “Canção
de Mim Mesmo”
[7] Luiz de Camões
[8] PLATÃO.(2004:103).Apologia
de Sócrates/Banquete. São Paulo:Martin Claret
[9] LELOUP, Jean-Yves.(trad.)(1997:85). O
Evangelho de Tomé.Petrópolis:Vozes
[10] ALMEIDA, J.F. de. (2001- Êxodo,3).A Bíblia Sagrada. Barueri:Sociedade
Bíblica do Brasil
1 de mai. de 2014
Alguma Outra Coisa (crítica/documentário)
Alguma outra coisa muito mais útil neste mundo…
Alguns dizem que aquilo que o artista faz aqui neste mundo é inútil. Ou que a fruição de suas obras é apenas um descanso do mundo real e prático, para depois voltarmos à realidade das necessidades concretas da vida. Nada mais falso. Como nos alertou Gaston Bachelard, é imprescindível escutar aos poetas para manter nossa alma viva, para resistir à extinção de nossa maior qualidade como criadores de nós mesmos. Um dia conheci um desses poetas, aos quais não podemos deixar de escutar, o Guilherme Guimarães. Depois de um tempo, num outro dia, reencontrei com esse artista, e falamos sobre um filme que ele fez sobre outros artistas, e ele me disse: “mas você assistiu o filme?”. Aí fiquei preocupado e pensei, será que perdi alguma coisa? E fui revê-lo mais uma vez. Não havia realmente perdido nada, mas certamente ganhei ao assistir mais uma vez. É um raro testemunho poético sobre algumas pessoas muito interessantes e os seus caminhos pela cidade, os melhores caminhos de uma cidade... e sobre um cuidado especial dessas pessoas pela manutenção do verdadeiro espírito desta grande cidade.
Encontrei o Guilherme uma outra vez, quando ele ainda estava no processo de criação do documentário, e ele me disse algo sobre um achado, uma filmadora Super 8 em ótimas condições. Havia conseguido uma máquina dessas, os filmes desta e também uma moviola para editar as imagens daquilo. Quando conversamos ele estava preocupado em estabelecer uma relação conceitual para poder incluir as tomadas em Super 8 entre as outras tomadas, digitais talvez. Alguma reflexão que justificasse um sentido estético profundo, um valor filosófico para inserir um outro tipo de textura para que isso não estivesse inconsequente ali, ou mesmo gratuito. Naquele dia, depois dessa nossa conversa, fiquei a pensar nisso. Queria contribuir, refleti e disse depois pra o Guilherme que, para mim, o Super 8 poderia caber ali perfeitamente, pois, remeteria à noção de resistência, assim como também era a resistência, para mim, o tema poético/estético sobre o qual seu filme se sustenta o tempo todo.
O Super 8 foi abandonado pela indústria, como muitas outras coisas, porque uma certa mentalidade desvaloriza tudo aquilo do que não pode extrair um lucro absurdo e imediato. Nessa mentalidade, algumas dessas coisas, devem se tornar obsoletas e deveriam desaparecer. É a mesma mentalidade que está desvalorizando até mesmo a própria vida para garantir esse lucro voraz acima de tudo. Quase que o próprio viver se torna obsoleto para nós se ficarmos desatentos por alguns momentos que seja. Porém, ao assistir ao filme, entendemos imediata e diretamente o sentido dessa resistência. Vemos no seu documentário algumas dessas pessoas resistentes e importantes pela sua atitude e seu estilo, pelo seu cotidiano. Pessoas que vivem na cidade e que resistem à obsolescência da vida artesanal e artística ao mantê-la numa escala humana e muito, muito poética neste seu cotidiano. Retomam as ruas para os humanos na sua medida mais especial. Enquanto muitas vezes estamos acorrentados num sistema que valoriza demais a ajuda que nos prestam algumas máquinas, motores e automações excessivas, mas que ao mesmo tempo acabam por proibir a vivência das praças, as alamedas, os recantos, as muretas, os bancos e até a sombra das árvores em função de uma lógica opressiva, estúpida, que reversamente nos agride e torna tudo insuportável demais para esse mesmo ser humano que as inventou.
No filme entendemos sobre a importância dessa resistência de uma maneira intuitiva, sem que seja preciso uma única palavra de ordem sequer. Entendemos isso, no caso excepcional deste testemunho poético, vendo alguns artistas sobre o skate, criando movimentos e vivendo sua cidade numa experiência completamente encantadora e emocionante. Mantendo essa cidade e suas ruas pungentemente humanas. Aquela cidade que sempre se vê feia quando estamos dentro da aberração do trânsito caótico, congestionado pelas regras arbitrárias de um projeto de progresso e de uma proposta de qualidade de vida que, embora cada vez mais paguemos muito caro por esta, nunca chega... esta mesma cidade começa pouco a pouco a aparecer delicada, acolhedora e maravilhosa. Pequenos detalhes de suas paisagens saem do fundo da tristeza, da fumaça acinzentada, do entulho desumanizado e embrutecido, para se iluminarem em cores suaves e sublimes, em luminosidades afetuosas, em expressões humanas sensibilizadas pela convivência e pelo encontro direto, revelando que é preciso muito pouco para reencontrar o caminho da dignidade, da retomada de nossa poesia de viver, de nós mesmos afinal.
Aquelas manobras e acrobacias, acompanhadas pela escolha de uma trilha musical na medida certa e entusiasmaste, expostas ali em seus próprios processos, suas dificuldades, na superação de suas impossibilidades, na obstinação por fazer existir um modo libertário de viver... os saltos espantosos e a maneira misteriosa de correr pelas passagens e pelas praças, calçadas e ruas, nos aproximam daquele ser humano que somente artistas como estes ainda insistem e têm coragem de nos revelar, de denunciar com tanta audácia, independente das proibições e de todas as perseguições que a lógica do progresso estéril nos impõe impiedosamente dia após dia. O filme nos coloca diante daquela nossa dignidade original e da nossa capacidade de nos relacionar com o mundo com a mais ritual e pura força da imaginação. Ali, mantemos nossa vida primitiva, como nativos correndo pela natureza, como o selvagem de que nos encheu o coração Henry Thoreau, aqueles que viviam da coletividade, da disposição voluntária, da simplicidade e que sacralizavam todos seus pensamentos, sentimentos e ações em benefício de todos, do seu mundo, da vida. Ali, a cidade não parece em nada o lugar horrível que muitas vezes a ganância e a ambição a obrigam se tornar. É isso que somos de verdade! Gritam as imagens e a ação daqueles artistas.
No filme, que o Guilherme Guimarães organizou e concretizou tão profundamente, encontramos, sentimos uma outra explicação e uma outra vontade de viver para nossa cidade e para nós mesmos. Recomeçar a fazer da cidade, nos ingênuos caminhos de todos os dias, aquilo que a minúscula formigazinha que todo poeta da vida é e nunca vai desistir de fazer: uma cidade artesanal, arranjada inteira para o tamanho e a alegria da nossa alma. Alguma outra coisa que, para toda a gente nunca mais esquecer, é realmente a única coisa mais importante deste mundo.
Alguns dizem que aquilo que o artista faz aqui neste mundo é inútil. Ou que a fruição de suas obras é apenas um descanso do mundo real e prático, para depois voltarmos à realidade das necessidades concretas da vida. Nada mais falso. Como nos alertou Gaston Bachelard, é imprescindível escutar aos poetas para manter nossa alma viva, para resistir à extinção de nossa maior qualidade como criadores de nós mesmos. Um dia conheci um desses poetas, aos quais não podemos deixar de escutar, o Guilherme Guimarães. Depois de um tempo, num outro dia, reencontrei com esse artista, e falamos sobre um filme que ele fez sobre outros artistas, e ele me disse: “mas você assistiu o filme?”. Aí fiquei preocupado e pensei, será que perdi alguma coisa? E fui revê-lo mais uma vez. Não havia realmente perdido nada, mas certamente ganhei ao assistir mais uma vez. É um raro testemunho poético sobre algumas pessoas muito interessantes e os seus caminhos pela cidade, os melhores caminhos de uma cidade... e sobre um cuidado especial dessas pessoas pela manutenção do verdadeiro espírito desta grande cidade.
Encontrei o Guilherme uma outra vez, quando ele ainda estava no processo de criação do documentário, e ele me disse algo sobre um achado, uma filmadora Super 8 em ótimas condições. Havia conseguido uma máquina dessas, os filmes desta e também uma moviola para editar as imagens daquilo. Quando conversamos ele estava preocupado em estabelecer uma relação conceitual para poder incluir as tomadas em Super 8 entre as outras tomadas, digitais talvez. Alguma reflexão que justificasse um sentido estético profundo, um valor filosófico para inserir um outro tipo de textura para que isso não estivesse inconsequente ali, ou mesmo gratuito. Naquele dia, depois dessa nossa conversa, fiquei a pensar nisso. Queria contribuir, refleti e disse depois pra o Guilherme que, para mim, o Super 8 poderia caber ali perfeitamente, pois, remeteria à noção de resistência, assim como também era a resistência, para mim, o tema poético/estético sobre o qual seu filme se sustenta o tempo todo.
O Super 8 foi abandonado pela indústria, como muitas outras coisas, porque uma certa mentalidade desvaloriza tudo aquilo do que não pode extrair um lucro absurdo e imediato. Nessa mentalidade, algumas dessas coisas, devem se tornar obsoletas e deveriam desaparecer. É a mesma mentalidade que está desvalorizando até mesmo a própria vida para garantir esse lucro voraz acima de tudo. Quase que o próprio viver se torna obsoleto para nós se ficarmos desatentos por alguns momentos que seja. Porém, ao assistir ao filme, entendemos imediata e diretamente o sentido dessa resistência. Vemos no seu documentário algumas dessas pessoas resistentes e importantes pela sua atitude e seu estilo, pelo seu cotidiano. Pessoas que vivem na cidade e que resistem à obsolescência da vida artesanal e artística ao mantê-la numa escala humana e muito, muito poética neste seu cotidiano. Retomam as ruas para os humanos na sua medida mais especial. Enquanto muitas vezes estamos acorrentados num sistema que valoriza demais a ajuda que nos prestam algumas máquinas, motores e automações excessivas, mas que ao mesmo tempo acabam por proibir a vivência das praças, as alamedas, os recantos, as muretas, os bancos e até a sombra das árvores em função de uma lógica opressiva, estúpida, que reversamente nos agride e torna tudo insuportável demais para esse mesmo ser humano que as inventou.
No filme entendemos sobre a importância dessa resistência de uma maneira intuitiva, sem que seja preciso uma única palavra de ordem sequer. Entendemos isso, no caso excepcional deste testemunho poético, vendo alguns artistas sobre o skate, criando movimentos e vivendo sua cidade numa experiência completamente encantadora e emocionante. Mantendo essa cidade e suas ruas pungentemente humanas. Aquela cidade que sempre se vê feia quando estamos dentro da aberração do trânsito caótico, congestionado pelas regras arbitrárias de um projeto de progresso e de uma proposta de qualidade de vida que, embora cada vez mais paguemos muito caro por esta, nunca chega... esta mesma cidade começa pouco a pouco a aparecer delicada, acolhedora e maravilhosa. Pequenos detalhes de suas paisagens saem do fundo da tristeza, da fumaça acinzentada, do entulho desumanizado e embrutecido, para se iluminarem em cores suaves e sublimes, em luminosidades afetuosas, em expressões humanas sensibilizadas pela convivência e pelo encontro direto, revelando que é preciso muito pouco para reencontrar o caminho da dignidade, da retomada de nossa poesia de viver, de nós mesmos afinal.
Aquelas manobras e acrobacias, acompanhadas pela escolha de uma trilha musical na medida certa e entusiasmaste, expostas ali em seus próprios processos, suas dificuldades, na superação de suas impossibilidades, na obstinação por fazer existir um modo libertário de viver... os saltos espantosos e a maneira misteriosa de correr pelas passagens e pelas praças, calçadas e ruas, nos aproximam daquele ser humano que somente artistas como estes ainda insistem e têm coragem de nos revelar, de denunciar com tanta audácia, independente das proibições e de todas as perseguições que a lógica do progresso estéril nos impõe impiedosamente dia após dia. O filme nos coloca diante daquela nossa dignidade original e da nossa capacidade de nos relacionar com o mundo com a mais ritual e pura força da imaginação. Ali, mantemos nossa vida primitiva, como nativos correndo pela natureza, como o selvagem de que nos encheu o coração Henry Thoreau, aqueles que viviam da coletividade, da disposição voluntária, da simplicidade e que sacralizavam todos seus pensamentos, sentimentos e ações em benefício de todos, do seu mundo, da vida. Ali, a cidade não parece em nada o lugar horrível que muitas vezes a ganância e a ambição a obrigam se tornar. É isso que somos de verdade! Gritam as imagens e a ação daqueles artistas.
No filme, que o Guilherme Guimarães organizou e concretizou tão profundamente, encontramos, sentimos uma outra explicação e uma outra vontade de viver para nossa cidade e para nós mesmos. Recomeçar a fazer da cidade, nos ingênuos caminhos de todos os dias, aquilo que a minúscula formigazinha que todo poeta da vida é e nunca vai desistir de fazer: uma cidade artesanal, arranjada inteira para o tamanho e a alegria da nossa alma. Alguma outra coisa que, para toda a gente nunca mais esquecer, é realmente a única coisa mais importante deste mundo.
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