20 de ago. de 2025

O Não Fazer Do Agir... (crônica)




O Não Fazer Do Agir...


"O ser é, e não pode não ser; o não-ser não é, e não pode ser." Parmênides¹


A razão das ideias é como o mofo, apenas cresce sobre si mesma na exigência dos fatos, já a poesia da consciência é como um sonho luminoso e a luz, como disse o poeta, é a sombra de Deus². As contradições nascem das ideias, pois este é o seu condicionamento, preso ao conhecido e por isso passado, é só memória, porém, o poema não se contradiz porque é a expressão de sua própria complexidade, do desconhecido, a imaginação de tudo, atemporal. A grande maioria dos heróis são anônimos, graça de si mesmos, na sua negação de ser por todos e, talvez, o motivo de tanta reverência aos que se tornam celebridades, na sua exigência de ser só em si, é tentar compensar de que aos incógnitos nunca se conhecerá e que, de tanto que se é conhecida, a celebridade é, sendo o seu princípio manter a maioria desconhecida, vítima de si mesma. No fim, no silêncio de toda lembrança, sobra apenas e profundamente cada sacrifício mínimo que alguém dedicou a outrem. Seja ao estranho ou ao ilustre, é a única coisa que também vão carregar nas lágrimas da notoriedade ou do furtivo, pois a fama somente esconde o que todos são. A ideia racionalizada só alcança a dualidade, a dicotomia da refutação e nesta só existe o herói ou a vítima, é uma mentalidade modelar em que o heroísmo do célebre redime o anonimato da vítima e que nunca estariam, como afirma Parmênides, amalgamados. Porém, para a poesia imaginada, na sua mística alquímica, na irracionalidade complexa da consciência escalar, solvendo e coagulando as qualidades latentes,  enquanto o anônimo santifica a insignificância daquela sua imensa negação e o célebre apaga a grandiosidade de seus devaneios ínfimos, numa dialética entre a vocação da volição secreta e o fascínio da ostentação pública, onde um renuncia ao seu destino lascivo e o outro renega o seu sonho ingênuo, nasce o mártir que é ao mesmo tempo herói e vítima, num mistério simultâneo de sobriedade e compaixão.


Um psicólogo explicava o que ele chamou de senso de justiça e a raiva que esta pode provocar quando alguém, por exemplo, fura de outro uma fila propositalmente. Continua que esta raiva, embora inadequada e improdutiva, é de alguma forma justificável, porém, dizia o psicólogo, deve ser evitada, através da sublimação ou mitigação, para que não prejudique a saúde mental daquele que teve seu lugar sagrado vandalizado. O psicólogo acredita que é este senso de justiça que impulsiona a reatividade de alguém, como vítima, ao invasor. Como o sonho ou o devaneio, que estão entre dois mundos, o sono e a vigília, o pecado, esta queda na atitude reativa e conflitiva em detrimento a uma suspensão sóbria e compassiva, é uma defasagem, entre o destino e a decisão, resultado da fricção sofrida pela descida da consciência metafísica até a densidade da materialidade. É uma dialética que envolve o reato e o ato e que se manifesta na atitude, pois a consciência age onde a memória reage e a ação liberta onde a reação escraviza.


Pois bem, o que interessa aqui é que este é um exemplo de algo corriqueiro que é uma base para a compreensão do drama modelo/escala que pode ser a gênese de uma outra atitude. O psicólogo enxerga o fenômeno pela mentalidade de modelo, pois, antes de ser o tal senso de justiça, sentir-se irritado quando isso acontece é, na verdade, o resultado de um constante estado de superestimação da própria presença, de supostos direitos e defesa de espaço, de ser o herói e não a vítima. É a mesma energia de quem rouba o lugar na fila só que agora expressa naquele que se sentiu roubado, pois no fundo, ambos que têm raiva da fila, ambos estão presos numa mentalidade de modelo e o modelo sempre oprime e é esta opressão que provoca a raiva, é o conflito que em cada um que quer negar a vítima e afirmar o herói, e não propriamente uma noção de justiça. No entanto, ao contrário, quando se pratica constantemente para não ser pego de surpresa, na inconsciência da razão, não simplesmente reagindo com uma defesa modelar paranoica, mas praticando a emoção que a cena causa, através da imaginação consciente, pode-se estar preparado para dar espaço antecipadamente. Porque, na consciência de escala, em que o que importa mais é o equilíbrio de um ambiente mais amplo e mais complexo, acontece uma humildade que nunca se sente humilhada, que ao desapegar de seu privilégio antecipadamente, nunca é alcançada, porque o lugar na fila não está ligado a nenhuma justiça prevista, mas ao contrário, já está entregue. É o exercício espiritual da humildade do mártir que resolve o problema, não a impulsividade do herói da justiça ou a renúncia da raiva pela vítima. É quando é apenas por uma posição suspensa, irracional, como a representada no famoso arquétipo crístico³, no seu martírio, aquele que funde e forja o herói e a vítima, é que este não fazer é reversamente alinhado à razão e extingue o conflito espiritual antes mesmo que este surja. Pois é o que o filósofo do verso na epígrafe, na fundação de seu rigor lógico, um dos primeiros a tentar abandonar a imaginação, talvez confunda, pois aqui, o que pode ser é o que ainda não é, porque o não ser é exatamente o que o inventa.





Na definição hipotética de uma personalidade saudável a psicologia arquetípica, elaborada por James Hillman, descreve uma qualidade que é a que mais se aproxima da expressão de humildade proposta aqui e que pode se antecipar, desmistificando aquele modelo de senso de justiça em luta, em reação constante para provar os seus direitos racionalizados. Dentre mais algumas características fica explícito nesta definição, de que é através da ironia, humor e compaixão⁴ que esta atitude poderia ser desenvolvida. Porém, a partir daqui esta crônica apresenta uma elaboração de um arranjo que talvez venha a ser mais profundo e mais significativo na definição desta prioridade, amplificando a sua ação espiritual. A ironia e o humor são vistos aqui, na verdade, como subprodutos da compaixão, que figura assim no primeiro plano, pois é um fundamento anímico, sendo a fonte donde fluem outros elementos que constituem esta saúde. Ao lado da compaixão viria a sobriedade, não citada na definição da personalidade da psicologia arquetípica, sendo também esta capaz de se desdobrar em inúmeras manifestações e que deveria estar como outro dos fundamentos anímicos imprescindíveis e únicos nesta existência de uma personalidade de atitude saudável e que equilibra a sua ação. Todavia, é preciso esclarecer, compaixão não é a simples bondade ou a comiseração, mas uma alma que está à disposição, é a capacidade da consciência em se dedicar e se absorver, amparada por uma visão de escala, tanto pelo sofrimento ou o pesar como pela fragilidade e a ingenuidade da condição dos outros. Sobriedade é a abstinência e a castidade vivenciada, seja em qualquer um de todos os seus níveis possíveis, não como a moralidade ou a penitência, mas é a abnegação de um desapego, a atenção e a prontidão desta alma diante da necessidade e responsabilidade em relação ao contexto dos outros. O herói nunca será uma vítima, pois entregou sua alma e escolheu reagir. A vítima nunca será um herói, pois sua alma a alcançou, não teve escolha e se prostrou. É o mártir que, no seu sacrifício em oferta e renúncia à sua estranha paixão ambígua, é o amálgama de ambas, da sua tragédia e da sua glória, quem ao não fazer age e inaugura uma sublime personificação da profundidade da alma na vastidão do espírito onde ela habita.






1- Fragmentos do poema Sobre a Natureza (ou Da Natureza), do filósofo pré-socrático Parmênides de Eleia (século V a.C.). Ela aparece especificamente no Fragmento 2 de seu poema, conforme preservado por fontes antigas como Simplicius e Clemente de Alexandria. A frase está nos fragmentos do poema de Parmênides, que sobreviveram em citações de outros autores antigos. Em grego, o trecho correspondente é aproximadamente: τὸ γὰρ εἶναι ἔστιν, μὴ εἶναι δ’ οὐκ ἔστιν (em tradução literal: "O ser é, e não pode não ser; o não-ser não é, e não pode ser").


2- A frase, Lux Umbra Dei, aparece num contexto atribuído a uma declaração de Albert Einstein. Conta a lenda que durante uma entrevista, questionado sobre o que seria a luz ele respondeu “A Luz é a Sombra de Deus”. Einstein, se falou mesmo isso, talvez houvesse citado o poeta John Addington Symonds que usa a frase em latim num título de um poema seu. Sua origem ou autoria parece ser desconhecida, porém, aparece ainda anterior ao poeta, inscrita num relógio de sol de 1770 da Dymock Church, Gloucestershire.


3- “Todo aquele que a si mesmo se exalta será humilhado, e todo aquele que a si mesmo se humilha será exaltado.” Mateus 23:12. "Ouvistes que foi dito: 'Olho por olho, dente por dente'. Eu, porém, vos digo: não resistais ao mau. Antes, àquele que te ferir a face direita, oferece-lhe também a outra; e àquele que quer te chamar a juízo para tomar-te a túnica, deixa-lhe também o manto; e se alguém te obrigar a carregar um fardo por uma milha, vai com ele duas." Mateus 5:38-41


4- "A personalidade saudável, madura ou ideal irá, então, mostrar que conhece a sua situação ambígua e dramaticamente mascarada. Ironia, humor e compaixão será a sua marca, uma vez que estes traços indicam uma consciência da multiplicidade de significados e destinos e a multiplicidade de intenções incorporadas por qualquer sujeito a qualquer momento. A 'personalidade saudável' é imaginada menos sobre um modelo de homem natural, primitivo ou antigo com sua nostalgia, ou sobre um homem sócio-político com sua missão, ou o racional burguês com seu moralismo; mas é imaginada em contraste com o background do homem-artista para o qual imaginar é um estilo de vida e cujas reações são reflexivas, animais e imediatas. Este modelo não pretende, obviamente, ser literal ou isolado. Ele serve para enfatizar certos valores da personalidade aos quais a psicologia arquetípica dá importância: sofisticação, complexidade, e profundidade impessoal; um fluxo de vida animal que desconsidera conceitos de vontade, escolha e decisão; ética como dedicação ao artesanato da alma; sensibilidade à continuidade da tradição; a significação do patologizar e do viver nos 'limites'; reações estéticas." James Hillman in Psicologia Arquetípica.São Paulo: Cultrix (1983:p89)