17 de set. de 2025

A Verdade Duvida Onde a Certeza Mentiu (crônica)

 



A Verdade Duvida Onde a Certeza Mentiu 


Num sonho delirante, quem deu a base psicológica para a censura do bem e a cultura do cancelamento, foi Adorno, quando o filósofo, subliminarmente, descreveu, num caminho oposto ao de Arendt, que o fascismo não seria um perigo inerente a todo ser humano, mas, seria uma qualidade apenas de um outro específico. Mais um grande mestre, inadvertidamente, contribuiu para a polarização das identidades, foi Eco, quando definiu como imbecis irrelevantes (outrora excluídos do debate erudito e que encontraram um espaço público para expressão com o nascimento da internet) aqueles que dão a sua opinião simplória do fundo dos bares insalúbres.


Desde a invenção do maior legado de Goebbels, a propaganda de massa, passando pelo fenômeno do desenvolvimento dos conglomerados de imprensa (que se apropriaram dessa herança nazista de que a mentira deve ser repetida inúmeras vezes até que se torne verdade), chegou-se aos poderosos organismos da venda de notícias para a publicidade consumista e à manipulação ideológica barata, todavia, em troca de muito dinheiro. Atualmente, nesta nova realidade, existe um contexto interessante (muito parecido com o momento em que os reinados da nobreza medieval começam a perder a hegemonia do poder para os novos comerciantes plebeus) que envolve a saga destas grandes corporações midiáticas atuais perdendo audiência para a ascensão anárquica de novos produtores independentes, e de certo modo libertários, numa revolta multicelular na internet. Por consequência se esvazia o interesse dos grandes patrocinadores no espaço da velha mídia que, contraditoriamente, ainda não alcançam os novos espaços porque estes não os recebem bem na sua imposição de conteúdos.


Os verdadeiros fascistas perderam a guerra e a voz, já os imbecis, que nunca tiveram voz, lutaram e morreram nos dois lados. Os velhos socialistas, que falharam e agora mancam pelo mundo, hoje se apegam ao identitarismo fuleiro. Os velhos fascistas, que ficaram escondidos nas feiras de relíquias de batalha e nas arquibancadas do futebol, hoje instrumentalizam a liberdade de expressão grotesca. As novas elites de progressistas oportunistas abusam daquele outro, na pele de quem não concorda com eles, condenado antecipadamente como imbecil ou fascista, e relativizam a censura política. As novas elites de conservadores oportunistas se alinharam com os imbecis excluídos, os pobres enganados pelo bem estar que nunca chegou e racionalizam a injustiça social. Hoje em dia o golpismo é um regime de estado e ambos os polos o cultivam intermitentemente.


Na história deplorável da televisão brasileira, fora toda essa manipulação de um jornalismo corrupto, alguns canalhas fizeram carreira e destruíram a mentalidade do brasileiro nas décadas de idiotices, grosserias, putarias e extremo mau gosto sem nenhum controle ou regulação de princípios, mas que têm uma coisa em comum: ficaram ricos explorando uma publicidade passional. Dentre muitos, estes são notáveis: Chacrinha (um pinguço cafetão escroto que vendia mulheres, ridicularizava pobres coitados e cagava no trabalho dos artistas); Silvio Santos (um imbecil agressor, abusador e humilhador profissional que extorquia donas de casa mal amadas com um carnê estelionatário); Xuxa (uma biscate de esquina que sexualizava e explorava a inocência das crianças com a única habilidade de ficar metendo a buceta na cara do público); Faustão (um calhorda estúpido que apodreceu a cultura nacional graças ao proxenetismo descarado e ao escárnio das suas vídeo cacetadas do caralho); Ratinho (um troglodita fedorento e estúpido que inventou o formato mais nojento, despresível e imbecil da história da comunicação); Datena (um incapaz mental que fez sucesso espremendo sangue, racismo e ódio numa das mais asquerosas estéticas já defecadas diante de uma câmara).


Esses programas nunca foram atacados ou denunciados tão veementemente quanto têm sofrido alguns realizadores da mídia independente e até hoje nunca foram moralmente revistos e, pelo contrário, são ovacionados constantemente. O controle e a regulação que hoje alguns canalhas tanto exigem não é realmente sobre o conteúdo, mas sim sobre o espaço para a propaganda, ou seja, o que querem é defender o monopólio do espaço vendável para a publicidade, coisa que a internet e os aplicativos estão pondo em risco pela sua pluraridade de conexões, ainda em expansão incontrolável. Assim, ironicamente, o grande risco hoje não é e nunca foi o conteúdo abjeto que todos esses desgraçados enfiaram e ainda entulham na cabeça do povo, mas sim, é algum influenciador treslocado e independente que possa vender a si mesmo com ideias livres e questionamentos ingênuos, ou alguém saído do "exército de imbecis" que possa ousar publicar a sua opinião, mesmo que equivocada e ridícula, e atrair a atenção e enfraquecer os orçamentos que por muito tempo estiveram centralizados maciçamente apenas nas grandes empresas de mídia. O que o poder quer cassar é a concessão do direito de publicar independentemente, da mesma maneira que perseguiam as rádios independentes. Precisam forçar a escassez de espaço publicitário para concentrá-lo nos monopólios de mídia.


Como aludiu Deleuze, se surgir um novo fascismo histórico este fará o seu ancestral parecer um conto de fadas, talvez, não pela aplicação do horror, mas pela sua indiferença diante deste. E isso já facilmente podemos observar assistindo aos noticiários com analistas sem vivência, os repórteres gaguejantes, os correspondentes favorecidos. O velho poder da imprensa não tem mais heróis e não vive mais de aventura há tempos, mas apenas de farsantes e fantoches, a serviço de um movimento aterrorizante de dominação implacável, que se vendem por conveniências das mais infames enquanto o mundo queima.


Já alertou Morin que a sociedade sempre foi anárquica na sua estrututura, pois, cria a si mesma constantemente, porém, é o tal poder que se esforça para dominá-la. Diante do fenômeno tecnológico, veloz e fascinante, absurdamente inclusivo e interativo, que consegue conclamar bilhões simultaneamente, de um público disposto a horas de conversas, diversão inovadora, discussão de ideias e cheio de dúvidas, os recursos diversificados de uma nova mídia ainda independente e livre, coloca a velha mídia em crise e desesperadamente tentando se agarrar a alguma coisa que possa lhe salvar, mas talvez, esta tenha apenas um de dois destinos possíveis (como foi também com as monarquias daquele tempo), tentar acordos macabros para se manter uma mentira e continuar sua sobrevida indecente e inútil ou morrer decapitada no fogo da nova revolução.





4 de set. de 2025

A Máquina do Mundo (ensaio)

 

“Vês aqui a grande máquina do Mundo,

Etérea e elemental, que fabricada

Assi foi do Saber, alto e profundo,

Que é sem princípio e meta limitada.

Quem cerca em derredor este rotundo

Globo e sua superfícia tão limada,

É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,

Que a tanto o engenho humano não se estende.”


Luiz de Camões¹        

 


A Máquina do Mundo

Uma Reflexão Sobre uma Trilogia de Pinturas





A Máquina do Mundo- F.H.Catani (primeiro da trilogia) - 2024/25 - 100cm x 150cm - acrílica s/ tela



E como eu palmilhasse vagamente uma estrada de Minas, pedregosa, e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos que era pausado e seco; e aves pairassem no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo na escuridão maior, vinda dos montes e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu para quem de a romper já se esquivava e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta, sem emitir um som que fosse impuro nem um clarão maior que o tolerável...

Carlos Drumond de Andrade

 

O Oróboros e o Carbono


Tudo é imaginação. Explicar o mundo é imaginação. Tudo o que o ser humano faz tem um traço poético/estético. Percebe-se isso até mesmo nas teorias científicas, que se carregam de racionalidade e exatidão, mas são tão mitológicas e metafóricas quanto aquele poema delirante perdido. A mesma fé que é necessária ao imaginador na sua aproximação à mitologia, à metáfora poética é necessária para sustentar, por exemplo, a explicação da criação do universo numa grande explosão que ainda se expande a partir de um único átomo num espaço completamente indefinível. Ora, o trabalho atribuído ao que chamamos ciência é também um artifício de nomeação tão metafórico quanto qualquer outra ideia humana. Os fatos e as evidências tanto para ciência quanto para a poesia são os mesmos, ou seja, aquilo que podemos encontrar do mundo através dos sentidos humanos.



Uma história² conta um incidente que pode ilustrar esta noção, é sobre o químico alemão Kekulé que estudava a estrutura do benzeno e certa noite sonha com o oróboros³ e o associa ao círculo fechado do carbono. O que é importante dizer é que os dois desenhos são metáfóricos e por isso é possível associá-los. O que importa aqui é descobrir e entender o vetor que criou as duas imagens, cada uma ligada a uma estética diversa, porém, ambas imaginadas. É lá que estará a potência espiritual do instante, deste impulso primitivo que imaginou o oróboros é que é o mesmo que imaginou o círculo de carbono do benzeno.

 


Seria uma grade ilusão pensar, por exemplo, que as fotos produzidas pelo telescópio como o Hubble, pode se aproximar melhor do mistério do universo, mais do que a imagem do oróboros. Para um estado mental apenas racionalizante esta afirmação é um contra-senso, porém, as imagens do telescópio são tão verídicas quanto a imagem milenar do oróboros, porque surgiram do mesmo olhar. O que se quer dizer é que, em termos do reconhecimento e do espanto diante da qualidade assombrosa da vida, ambas as imagens podem causar o mesmo impacto, ou não. Pelo contrário, aquilo que antes sensibiliza para perceber melhor esse assombro é, primitivamente, o oróboros, pois, sua especificidade em alçar a alma artística, por ser uma estupenda metáfora, é proporcionalmente maior do que as imagens do telescópio. Isto é, sem a potência poética desencadeada pelo oróboros, as fotografias do universo encerram, pela perspectiva da imaginação, muito pouco desse impacto. Essas máquinas são maravilhosas, mas, alijado da consciência espiritual, cujo guardião aqui é o oróboros, não se vislumbraria a compreensão assombrosa da imensidão da vida.

É necessário estar atento para não ver o oróboros, ou qualquer outra imagem arquetípica, apenas como uma coisa ultrapassada e ingênua cujo poder de gerar conhecimento foi superada pelo progresso científico. Esta imagem atávica concentra toda a força do movimento da imaginação que construiu o próprio telescópio.   Desde o oróboros até as imagens reconstruídas do universo, encontra-se momentos de mesmo peso que, muito mais além, nunca seriam possíveis em separado.


O Matema e o Poema


Have you felt so proud to get at the meaning of poems?

Stop this day and night with me and you shall possess the origin of all poems,

You shall possess the good of the earth and sun, (there are millions of suns left,)

You shall no longer take things at second or third hand, nor look through the eyes of the dead, nor feed on the spectres in books,

You shall not look through my eyes either, nor take things from me, You shall listen to all sides and filter them from your self.

Walt Whitman


O matema é a simulação duma possível divindade na exatidão, tanto quanto o poema o faria na sua imperfeição e, se é o número quem a reconhece apenas nas evidências daquilo que consegue supor, a culpa nunca seria da palavra, que a pode ver em todo lugar. Para o poeta, a contradição e a dicotomia do fenômeno, o dia e a noite, são a gênese de sua cosmogonia. Para o matemático, a raiz da dualidade está na equação, no positivo e no negativo, baseada na identificação e na razão do númeno. Enquanto o poema brota de uma reflexão filosófica, é negação criadora, o matema se funde na racionalização ideológica, é afirmação determinante. Sem a imbricação destas potências o ser humano é latente, o poeta se perde no seu medo e o matemático, na sua ilusão.

A elaboração pelo matema, da estrutura mecanizada, raciocinada, projetada de uma forma ideal, não amplia nem diminui por si só o potencial espiritual do ser humano. Não o amplia além do que amplia o poema. A idéia de que foi superada a condição do arquétipo, enquanto imagem em potencial, pela construção mecânica que daria a visão do universo em profundidade, seja qual for o argumento utilizado para justificar essa superação, não afeta o trabalho da mitologia em alçar a consciência desse estado, dessa compreensão poética humana acerca da vida. O que oferece o poema não é menor do que o que pode oferecer o matema. Ao contrário disso, essas imagens são a própria ampliação causada pela potência que o poema desencadeia e de que falou ao olhar para aquilo que origina deste impulso.




Essa reflexão sobre o termo matema relacionado ao poema, embora já cunhado antes por estudos da psicanálise, surge através da leitura de um pequeno capítulo de um livro, em que o seu autor aponta essa possibilidade de uma condição dual:


 “...duas vias, duas orientações, comandam aqui todo pensamento do Ocidente. Uma apoiada na natureza em seu sentido originalmente grego, acolhe em poesia o aparecer como presença ad-venante do ser. A outra, apoiada na Idéia em seu sentido platônico, submete ao matema a falta, a subtração de toda presença, e separa assim o ser do aparecer, a essência da existência...”  (BADIOU,1996:107)


Embora se entenda que, como continua o autor, “sem dúvida, o poema, ainda que interrompido pelo evento grego, jamais cessou...” (BADIOU,1996:107), é possível que esse brotar do matema, com essa caracteristica específica que aparenta o abandono da explicação delirante do mundo, ocorre muitos anos depois do evento grego. Acontece cruamente na sua retomada racionalista, no Renascimento. Porém, o interesse aqui não é especular sobre essas reflexões, mas, mais uma vez, inspirar a encontrar justamente um ponto de visão que testemunhe, qualquer que sejam as inúmeras elaborações da imaginação, a observação de um movimento arquetípico, comum à todo ser humano, ligado aos temas primitivos da alma. Um ponto em que possa ser vislumbrado a alma da experiência humana, como a potência que instigou tanto o poema quanto o matema. Por isso, o que importa aqui não é saber quando ou como o matema interfere no poema, ou se o poema resiste ao matema, mas uma fenonenologia da alma, através da imaginação poético/estética, que origina a paixão por expressá-los.


Uma Qualidade Espiritual


Jesus disse: 'Venham, para que eu lhes ensine segredos que ninguém jamais viu. Pois existe um reino grande e sem limites, cuja extensão nenhuma geração de anjos jamais viu, no qual há um grande Espírito invisível, que nenhum olho de anjo jamais viu, nenhum pensamento do coração jamais compreendeu, e nunca foi chamado por nenhum nome'. Judas


As citações aqui representam uma maneira de demonstrar aquilo que caracteriza o espectro arquetípico onde estas pinturas são executadas. Evidenciam, antes de tudo, o universo imagético onde este trabalho artístico está vagando. Neste sentido, é uma evocação de um estado anterior e primevo àquilo que é o campo místico onde se estabelece a posição do artista, onde nada ainda se conhece, nada foi visto e nada pode ser lembrado. Assim, é o trabalho artístico um estado de transformação que exige um contágio interior do ser humano pelos apelos de seu meio exterior. Uma dialética mitológica entre alma e espírito. Neste instante, que ele se sente impregnado na realização de uma construção que busca alinhar o sentido material, emocional e mental de uma obra qualquer para que, no impulso intencional de concretização de sua existência, possa ser/estar consciente neste mundo de uma dinâmica insuportavelmente criadora e, ao identificar-se como parte desse mundo que o cerca e que ao mesmo tempo ele é, saber-se nesse estado e produzir uma relação espiritual com a vida. Espiritual porque supera a mera movimentação, exigindo a emersão de um ser total, atento, na presença inédita de seu espírito pela realização de seu eterno presente, para que esse mundo e ele mesmo, na revelação de sua alma, enfim, exista.


“Ora, é necessário que aquilo que foi gerado seja corpóreo, isto é, visível e tangível; porém, nada pode tornar-se visível separado do fogo, nem tangível sem algo sólido, nem sólido sem terra. Foi por isso que, quando começou a constituir o corpo do universo, o deus o fez a partir do fogo e da terra. Mas não é possível que apenas duas coisas sejam constituídas de forma bela, sem uma terceira; porque é necessário introduzir entre ambas um elo que as ligue; e o mais belo dos elos é aquele que produz a maior unidade em si próprio e nos termos que une; e é a proporção matemática que por natureza leva a cabo este efeito da forma mais bela. De facto, sempre que, de três números, sejam inteiros ou em potência, o do meio é de tal modo que está para o último como o primeiro está para ele, e, da mesma maneira, como o último está para o do meio, o do meio está para o primeiro, de tal modo que o do meio se torna primeiro e último e, por sua vez, o último e o primeiro se torna ambos os meios, torna-se então necessário que sejam idênticos e que, tendo-se tornado idênticos uns aos outros, formem todos uma unidade.” (PLATÃO, 2003:69)


É o processo, não o resultado, que está subjacente ao trabalho superior da atividade humana criadora. É mais importante compreender a vontade que leva o ser a construir algo forte, significativo do que ficar impressionado com a obra em si mesma, ou pelo impacto causado pela sua presença, ou seja, apesar de a obra ser importante ela é apenas o álibi de um acontecimento que ocorre no interior da escolha, da decisão e, principalmente, da imaginação do ser criador, através das relações que ele estabelece com este seu mundo nas fronteiras do sonho e da vigília, no redemoinho entrelaçando onirismo e devaneio. Assim, cada ação artística, desde o instinto até a intuição, é apenas um subterfúgio para estabelecer um encontro com a profundidade infinita de si mesmo e a imensidão inalcansável de tudo mais. O grande acontecimento, aquela transformação interior, se subjetiva na consciência durante o processo de execução das manifestações que se objetivam exteriormente. Porém, esses dois movimentos são simultâneos, coetâneos e indissociáveis. É apenas uma desilusão que busca separá-los, mas o imenso trabalho do artista é o reencontro consigo mesmo atuando e navegando no universo ao recriar, reconstituir a cada obra a sua manifestação.




Há quatro conceitos fundamentais para a realização destas pinturas, sendo os dois primeiros ligados à execução pictórica. Um inicial é a tensão constante, na ação do processo de criação da obra, do drama vivenciado entre a dualidade da luz total e da escuridão absoluta. O segundo, é esta própria experiência da dinâmica daquele movimento, do fenômeno psicológico causado pela inversão entre fundo e figura, num estranhamento forçado entre paisagem e grafismo, diante do processo de aparição da obra pictórica em si mesma.

Os outros dois conceitos são fundamentais para a apreensão da obra e estão ligados à sua expressão temática. No terceiro, há uma intenção filosófica, assumidamente insana, pagã e de uma teogonia atávica, uma cosmologia rupestre, por colher em cada obra todo o universo imagético possível numa criação de um arquétipo total do ato criador da divindade, principalmente em sua qualidade ligada à gênese do universo e aos aspectos mitológicos associados à unidade e a interdependência entre vida e morte, que se expressa na metáfora de uma sacralidade que pode ser chamada de morte viventeO último deles, é a evocação da intuição do instante, ou seja, em cada realização se busca uma experiência mística e sacrificial do presente, onde o aparecimento desses arquétipos que, ao mesmo tempo em que abstraem os seres, os astros e os fenômenos da natureza, literalizam uma figuração dos eventos cósmicos onde sua mitologia  será o ritual de um encontro com a presença desta divindade no momento imediato, como a única possibilidade de compreensão da realidade mítica da existência e de sua eterna ruptura e reorganização, o caos e a gênese.

Na relação entre estes elementos se força um exercício espiritual, ritualístico e religioso, para alcançar a expressão simbólica de um ícone máximo que se repete a cada pintura, inerente a uma reverência ao fenômeno da criação das coisas do mundo. É sempre uma dialética imanente entre uma intenção poética para uma materialização estética e, reversamente, uma afetação desta literalização sobre aquela imaginação. Uma teleologia de poemas visuais rústicos, não eruditos, em reverência a uma teologia da pintura ingênua. É uma tentativa por manter o aparecimento das combinações de formas e movimentos de uma maneira intuitiva, espontânea e até mesmo aleatória em sua execução, mas finalizada numa estruturação convicta, ordenada e autosuficiente. É uma emulação arquetípica que rabisca um grafismo que começa a ser esboçado grotescamente como apenas um mote da composição. Uma ação expressionista segue separando as formas e a partir de certo ponto o que era grafismo começa a aparecer como fundo e o que era o fundo surge como a própria definição das figuras, resultando numa imagem em que formas flutuam e se interagem num fundo que hora é total escuridão hora é total luminosidade, demonstrando um diágolo vigoroso, numa vontade de apresentar uma linguagem com referências à símbolos de um marcante teor épico, mitológicamente essencialista e fundamentalmente cosmogônico.


O Demiurgo e a Criança


Quando Jesus apareceu na Terra, realizou milagres e grandes prodígios para a salvação da humanidade. E, como alguns andavam no caminho da justiça, enquanto outros andavam em transgressões, os doze discípulos foram chamados. Ele começou a falar com eles sobre os mistérios além do mundo e o que aconteceria no fim. Muitas vezes, ele não aparecia aos seus discípulos como ele mesmo, mas era encontrado entre eles como uma criança.” Judas


Como quando um demiurgo recolhe a matéria inerte e a carrega do espírito do movimento, os trabalhos desta trilogia são uma tentativa de recriar imagens místicas a partir da uma mitologia própria, de uma intrínseca iconografia, ambiguamente fundada num espanto infantil e uma saga anciã, que encherga o inusitado no que já conhece como se o visse pela primeira vez, que na energia desta derradeira primeira novidade, recomeça, redimensiona e revive toda criação eternamente, renascendo de si mesma, reverenciando os elementos espirituais que cada ícone evoca, que cada forma inspira e provoca para existir. Então, a partir própria vontade do fazer artístico, cria-se um firmamento arquetípico, profano e sagrado, simultaneamente, transfigurado na presença de cada uma das pinturas da trilogia. Enquanto almeja um iconoclastia em suas decodificações externalizadas, desequilibradas como um dialeto irreconhecível, ao mesmo tempo, são também orações internas cadenciadas, expressas como mantras silenciosos para uma meditação religiosa. Dessa forma, são anárquicos em sua estética, mas ritualísticos em sua poética. Cada uma destas pinturas é uma invocação e uma materialização ao mesmo tempo. É um testemunho atávico de uma engenharia rupestre, observada reversamente, no desencadeamento das explosões e implosões de um delírio de anunciação assombrosa, apocalípse e salvação, pela revelação dessa máquina do mundo. Esta é uma visão do instante eternamente inédito, que é a origem de todos os poemas, o anseio daquilo que nunca foi visto, anterior a qualquer coisa imaginada ou fabricada, porque é a matriz misteriosa do espírito que constrói a si mesmo e que estampa sua existência, sendo em seu não ser, pela alma rústica da humanidade.


“... ele formou este todo único e perfeito, que não pode envelhecer nem adoecer. E deu-lhe a forma que lhe é mais conveniente e mais afim; efetivamente, a forma conveniente ao ser vivo que deve envolver dentro de si mesma todas os seres vivos é aquela que compreende em si mesma todas as formas possíveis; foi por isso que, fazendo-a girar, lhe conferiu a forma redonda, a forma esférica, na qual a distância do centro a todos os pontos da periferia é sempre a mesma, a mais perfeita de todas as formas e a mais semelhante a si mesma, pois considerava que o semelhante é mil vezes mais belo do que o dissemelhante. E tornou liso e redondo todo o exterior, por vários motivos. Efetivamente, não precisava de olhos, uma vez que não restava no exterior nada para se ver, nem de ouvidos, porque também não restava nada que se ouvisse; e também não havia ar à sua volta, que fosse necessário respirar; nem precisava ter um órgão por meio do qual, ora recebesse os alimentos que nele entrassem, ora eliminasse aqueles que tivessem previamente absorvido. Pois nada saía dele e nada entrava nele, donde quer que viesse – já que nada mais havia. De fato, foi gerado pela técnica de modo a fornecer a si mesmo os seus alimentos, que são aquilo que nele perece, e de modo a que tudo aquilo que realiza ou pelo qual é afetado esteja em si mesmo ou seja por si mesmo; pois aquele que o constituiu considerou que seria melhor se fosse auto-suficiente do que tivesse necessidade de outros... e constituiu um céu circular, único, exclusivo e solitário, girando em círculos, capaz pela sua própria excelência, de viver consigo mesmo, sem precisar de nenhuma outra coisa, uma vez que se conhece e se ama a si mesmo de forma suficiente. E foi por meio de tudo isto que o gerou, como deus bem-aventurado.” (PLATÃO,2003:71-72)





ANDRADE, C. D. de. (1996). Claro

Enigma. Rio de Janeiro: Nova Fronteira

BADIOU,A.(1996). O Ser e o Evento. Rio de Janeiro:Jorge Zahar-UFRJ

(1) Camões é a primeira referência poética à Máquina do Mundo e à qual Drumond retoma em seu poema e eu como tema desta trilogia de pinturas: CAMÕES, L. de. (1572). Os Lusíadas. Lisboa: Imprensa Nacional

CATANI, F.H.(2004). Arte Banida Arte Bandida:Aspectos do Fracasso Escolar e da Medida Sócio Educativa.TCC.FE Unicamp

CATANI, F.H.(2011). Uma Visão da Alma Artística. Dissertação de Mestrado. Campinas:FE-Unicamp

(2) JUNG, C.G. Psicologia e Alquimia (OC 12, § 328).

(3) O oroboros (também conhecido como ouroboros, do grego “devorador de cauda”) aparece pela primeira vez citado é o Livro Enigmático do Mundo Inferior (em inglês, Enigmatic Book of the Netherworld), um texto funerário egípcio antigo encontrado na tumba do faraó Tutancâmon (KV62), no Vale dos Reis, datado do século XIV a.C. (aproximadamente 1323 a.C.).

KASSER, R., MEYER, M., WURST, G., & GAUDARD, F. (2007). The Gospel of Judas. National Geographic Society

WITHMAN, W.(2000). Canção de Mim Mesmo-Songs of Myself. São Paulo:Imago

PLATÃO.(2003). Timeu. Lisboa:Instituto Piaget

(4) O termo “matema” foi introduzido por Jacques Lacan pela primeira vez em 4 de novembro de 1971, durante uma palestra no âmbito do seu seminário “O Saber do Psicanalista” (Le savoir du psychanalyste).





 



26 de ago. de 2025

Uma Visão da Alma Artística (ensaio)

 



“O que queremos empreender aqui, com efeito, é apenas uma tarefa de libertação pela intuição. Como a intuição do contínuo nos oprime com frequência, é indubitavelmente útil interpretar as coisas com a intuição inversa.” Gaston Bachelard (2007:59)



Uma Visão da Alma Artística: A Rosa de Seis Pétalas

 

As Doze Disposições Poético/Estéticas e Os Seis Temas Primitivos da Alma Artística

 

 





O Argumento

Esta é uma reflexão epistemológica que  foi inspirada por uma exigência didática pela elaboração de um conjunto de aulas sobre os períodos da história da arte em um curso de capacitação de professores. Parti da organização mais difundida e aceita da divisão dos períodos para realizar uma aproximação a alguns elementos conceituais e filosóficos, primitivos e fundamentais, que acredito estão envolvidos na vivência, criação, e realização artística e que podem ser relacionados a qualquer ser humano como uma qualidade inerente à sua existência na civilização contemporânea. Apaixonado principalmente por reflexões contidas nos livros Intuição do Instante, de Gaston Bachelard, Psicologia Arquetípica, de James Hillman, e Esculpir o Tempo, de Andrei Tarkovski, proponho uma iniciação ao estudo da importância de aspectos específicos de uma possível imaginação intuitiva e do que acredito sejam alguns de seus desdobramentos na ação artística. Esboço neste trabalho uma perspectiva alternativa para o estudo de algumas qualidades arquetípicas vislumbradas em imagens produzidas a partir de mídias artísticas e sugiro uma proposição de reflexão, sobre um diálogo entre elementos poéticos e estéticos, que identifica uma importância essencial destas qualidades para o desenvolvimento de processos de criação artística de um ser humano imaginador.



A Genealogia de um Mote


Este ensaio é uma revisão do que esbocei, numa dissertação de mestrado em educação (CATANI,F.H.2011), a partir de explanações didáticas sobre os períodos da história da arte num curso de formação de professores, um cenário imagético em que figuram uma espécie de alinhamentos poético/estéticos inerentes às imagens artísticas. Eram como motes, noções bem estáveis que poderiam ser relacionadas às obras mais identificadas aos períodos históricos da arte, não aos seus inúmeros movimentos, logo na sua apreensão mais banalizada e inclusive a mais conhecida dentre os participantes (arte primitiva, arte antiga, arte medieval, arte renascentista, arte moderna, arte contemporânea). Apropriei-me dessa descrição para que a maioria dos participantes tivesse acesso imediato a esse conhecimento, o que permitiria uma identificação instantânea com os significados, justamente por ser um senso comum, para que depois nos aproximássemos destes mais profundamente.


A hipótese expressa aqui ainda se embasa, antes mesmo da dissertação de mestrado que a esboça, diante da oportunidade de estágios de pesquisa na graduação em Pedagogia Unicamp, em que dediquei-me à organização de atividades artísticas, pelo projeto FEBEM-Arte, junto aos adolescentes internos numa proposta de estudo e produção de poemas e de laboratórios de pintura abstrata, nas então duas instituições da Febem em Campinas-SP, onde ocorriam a aplicação de medidas socioeducativas judiciárias. Os relatos e as reflexões sobre este envolvimento geraram o meu trabalho de conclusão de curso (CATANI,2004). Naquele contexto inicia meu interesse pela evidência do imaginador, pois impressionei-me com a necessidade que os internos demonstravam por realizar, paralelamente a qualquer atividade proposta pelas iniciativas externas, o que eu reconheci como um processo criativo real, resumido à execução obsessiva de uma dobradura em papel e construção de peças de artesanato que seriam depois presenteadas afetivamente aos visitantes. Percebi que era um movimento para que fosse mantido um fluxo da vitalidade e da dignidade da vida humana. Assim, vendo essa qualidade anímica naqueles adolescentes internos, enquanto criavam e realizavam uma atividade claramente artística e autônoma, mesmo que não erudita, entendi esse fenômeno como uma evocação, um rito, mesmo que inconsciente, para uma superação psicossociológica, uma suspensão daquele encarceramento brutal.  


Desenvolvi, a partir destes contextos, uma abordagem da obra artística e do seu processo de criação, focado na possibilidade de elaboração de ações educativas, que procura reconhecer uma qualidade interna e uma externa que cada imagem conserva, assim como dos processos que as criam, e que chamei de disposições poético/estéticas. “Assim, relacionei uma estética de ‘ritual’ ao um impulso poético de ‘ritmo’ principalmente nas imagens e no contexto atribuído ao período da chamada arte primitiva. Uma estética ‘mitológica’ a um impulso de ‘reflexão’ poética que estavam mais evidentes nas imagens e contexto da chamada arte antiga. Uma estética de ‘religiosidade’ com seu constante exercício poético de ‘devoção’ ocorriam de forma mais aparente no período dito arte medieval. Uma experiência estética intensa de ‘humanidade’ que sugere uma consciência de ‘identidade’ poética esteve sempre claramente evidente nas realizações amplamente divulgadas da chamada arte renascentista. Uma estética focada na construção da ‘sociedade’ que se esforça para a ‘dinamização’ de significados poéticos surgia com maior força nas criações da arte moderna. E, finalmente, uma estética de ‘panculturalidade’ amparada por uma determinação de ‘equanimidade’ poética era mais potente nas situações artísticas do que comumente se chama arte contemporânea.” CATANI,F.H.(2011:28). Influenciado inicialmente pela assertiva de James Hillman: “o espírito está nos picos, a alma está nos vales” (HILLMAN, J. 1983:15), percebi que ao observar as obras, e mesmo ao desconstruir seu processo de criação artístico, aparecem elementos de uma face interna, que revela um impulso poético subjacente e que julguei ligado a alma, e uma externa, numa manifestação estética, que associei estar ligada ao espírito. Estes dois fenômenos, juntos, têm o potencial de expor o tema psicológico envolvido no fazer artístico e, por consequência, na obra. Este tema relevante estaria entre essas fronteiras, no campo que vai desde a pátina de uma superfície estética materializada até a pulsação de uma profundidade poética. Do espírito do mundo, manifesto, destemido e iluminado, à alma rústica, densa, protegida e obscura.


A partir desse contexto inicial é que foi possível, então, definir os conceitos do arquétipo que apresento aqui, um arquétipo conceitual máximo, associado a uma minha intuição acerca do que entendo como os temas primitivos da alma artística, como uma base que está disponível a todo ser humano em seus processos imaginativos e reflexivos, que foi intuída e evocada através de uma leitura de Gaston Bachelard:

 

“Com efeito, as condições antigas do devaneio não são eliminadas pela formação científica contemporânea. O próprio cientista, quando abandona seu trabalho, retorna às valorizações primitivas. Seria inútil, portanto, descrever, na linha de uma história, um pensamento que não cessa de contradizer os ensinamentos da história científica. Ao contrário, dedicaremos uma parte de nossos esforços a mostrar que o devaneio não cessa de retomar os temas primitivos, não cessa de trabalhar como uma alma primitiva, a despeito do pensamento elaborado, contra a própria instrução das experiências científicas.” (BACHELARD,1999:5)

 

A partir da profunda provocação contida nessas sugestões dessa alquimia rústica, primeva, absurdamente simples, porém, aparentemente impenetrável, à invocação para uma espiritualidade incógnita, anônima, tão antiga que nem mesmo é possível datá-la, comecei a visitar o interior de meu imaginário. E ali foi possível encontrar, em sincronicidade, como já alertava Carl Jung, o que espantosamente era na verdade o próprio imaginário humano vivo, a memória de um mundo sem nenhuma divisão, tudo e todos estavam ali. Esta referência à Alquimia surge já nas minhas primeiras iniciativas de reflexão sobre o tema da alma, inspiradas numa obra imagética muito especial: o Mutus Líber, o livro mudo da alquimia (CARVALHO,1995), e principalmente em sua particular qualidade de indicar aspectos psicológicos do imaginário poético humano, que ao mesmo tempo mostra uma beleza artística incomum, materializados em placas para gravura em metal que descrevem os símbolos e os procedimentos dos fundamentos iniciáticos do trabalho alquímico filosófico. Estas ilustrações e o ensaio que acompanha a edição elencam os mais importantes termos, proposições metafóricas e arquetípicas da alquimia, e é peça fundamental para a elaboração em meu trabalho dos sentidos de uma concepção de alquimia psicológica. Este tema me interessa essencialmente por seu inusitado aspecto de singularidade, simplicidade e primitivismo psicológico em sugerir que o desenvolvimento espiritual é possível à todos os seres humanos irrestritamente como, por exemplo, está implícito no V.I.T.R.I.O.L. “Visita Interiora Terrae Rectificando Invenies Occultum Lapidem”. Explora o interior da terra. Retificando, descobrirás a pedra oculta. Esta é uma fórmula anônima célebre entre os alquimistas e que é a indicação do primeiro passo, uma ordem fundante da história insondável da Alquimia, mas, a tomo aqui me aproximando de seu aspecto filosófico, poético e metafórico de sugestão e chamamento a uma vivência de libertação, daquilo que acredito seja e que defini como o principal problema psicológico humano: a relação entre o medo e a ilusão (CATANI,2011:15), e ao trabalho de desenvolvimento e de crescimento pessoal. A realização alquímica que admito me sugere mais uma realização espiritual, de encontro espontâneo e intuitivo com a rusticidade da alma, do que um sistema de técnicas laboratoriais complicadas que são historicamente associadas ao desenvolvimento das ciências exatas. O momento da proposta da Alquimia que interessa aqui é, então, apenas o instante exato em que “Na noite escura o jovem buscador sonha. Os anjos o despertam para que dê início ao trabalho da Grande Obra” (CARVALHO,1995:38). Proponho que este é o grande instante ontológico humano, o resto vem depois.


Desta maneira, renomeado, retificando seus valores, descrevi as potências da cada uma das coisas que encontrava, para que o mundo fosse recriado por mim no mesmo ritual de séculos incontáveis dessa experiência humana mitológica. Neste momento incomparável, que nunca mais estanca depois da decisão fatídica a esse mergulho no desconhecido, encontrei minha pedra oculta e consegui vislumbrar sua face mitológica. Como ali tudo é sempre eterno, fora do tempo do conhecido, reescrevi seu nome para partilhar com o resto daquilo que sou, os outros humanos e também o mundo. Apresento a minha visão do que aprecio como um arquétipo, a rosa de seis pétalas, que pode ser considerado como muito significativo e importante para qualquer trabalho que se dedique ao enriquecimento psicossociológico do imaginador contemporâneo. Este imaginador foi uma nomeação ao caráter fundamental do ser humano atual, contemporâneo, na minha dissertação de mestrado (CATANI,F.H.2011). Esta perspectiva afirma aqui uma qualidade humana muito importante, a de que este ente humano é hoje, antes de tudo e fundamentalmente, um imaginador.


Este contexto desvenda, enfim, os seis temas primitivos que orbitam essa alma artística, nascidos daquelas duplas de disposições poético/estéticas que os desencadeiam, sendo, então, assim demonstrados: o ritmo e ritual geram o tema primitivo do Tempo; a reflexão e mitologia o tema do Divino; a devoção e religiosidade para o Sacrifício; a identidade e humanidade o da Verdade; a dinamização e sociedade para o tema primitivo do Ser; a equanimidade e panculturalidade geram o tema da União. Acredito que este arquétipo constitutivo, do que chamo de uma visão da alma artística, poderá amparar e ampliar meus próprios estudos, pesquisas e ações na área da educação estética e da reeducação psicológica, social e cultural, assim como produzir e disponibilizar saberes e conhecimentos para pesquisadores e profissionais também envolvidos nesta temática e nesta área de atuação.


O objetivo principal desta exposição é demonstrar a veracidade, a necessidade e a aplicação destes seis temas primitivos, como uma visão inédita e acessível da alma artística em seus processos de criação. Nomeei-os como a rosa de seis pétalas, numa associação livre entre a qualidade reveladora desses temas primitivos, a sincronicidade de serem também seis aqueles períodos da história da arte, e a própria simbologia de transmutação que acumula a rosa de seis pétalas como uma das principais e mais fundamentais imagens da tradição da alquimia.


O desenvolvimento de uma definição de processo de libertação espiritual, o que também representa uma introdução fundamental à metodologia constitutiva das proposições deste meu trabalho teórico/prático de ação educativa, tem sua gênese e é subsidiada aqui pelas descrições atribuídas a Sócrates (PLATÃO, 2010), em Platão na obra Teeteto, acerca do método socrático da maiêutica: o trabalho de trazer a alma humana à luz. Seu sentido psicológico é importante aqui porque é uma referência metafórica ao trabalho da busca do conhecimento simultaneamente superior e profundo de si mesmo, inerente ao seu processo de libertação espiritual, que acredito se dá através da vivência poético/estética do processo criador da imaginação, desde uma resistência intuitiva a se entregar às prisões da personalidade comprometida pelo sofrimento psicológico até o mais superior e espiritualizado anseio por uma vivência de excelência filosófica.


 




As Doze Disposições e Os Seis Temas Primitivos

 

O encontro do doze foi o primeiro passo na direção da renomeação dos períodos. Por ser, como já disse, o mais externo, a estética mais aparente, comecei por renomeá-lo com a minha visão de seus movimentos em relação a algumas imagens que já estivessem associadas aos períodos. Minha intenção é encontrar alguns elementos poético/estéticos mais constantes na temática superficial de cada período. Esse será o material primordial para o estudo que pretendo realizar, a Flos Coeli (CARVALHO,1995:42), o orvalho colhido pelos alquimistas como matéria prima fundamental e inicial para a obra alquímica. A presença do doze aqui intenta demonstrar de uma maneira não cronológica ou determinista (reversamente à própria cronologia e determinismo da idéia dos períodos da arte, peça tão fundamental do imaginário cultural), uma visão própria de disposições específicas da alma artística que testemunhei em minha própria imaginação.


Procurei, então, encontrar nessas imagens relacionadas inicialmente a cada período uma proporção imaginativa que pudesse me inspirar honestamente sobre uma origem do impulso poético que estaria manifesto na estética de ligadas a cada momento dessa saga ficcional e que poderia justificar cada recorte imposto. Para tanto escolhi algumas imagens de obras bidimensionais porque eu acredito que estas possibilitariam um estudo mais abrangente, visto que obras tridimensionais não poderiam ser observadas da mesma forma porque eu não conseguiria viajar para encontrá-las nessa sua tridimensionalidade e, embora também na bidimensionalidade haja uma perda considerável, acredito ser melhor contornável. Este caminho levará ao meu desejo de apontar a minha visão dos temas primitivos da alma artística, em suas disposições atávicas, seus impulsos primevos, rústicos e arcaicos. Para tanto, usei a descrição sumária dos períodos da história da arte apenas como lenha de atanor.

 

“O forno alquímico, onde a matéria prima é tratada até converter-se em pedra filosofal; o atanor é o útero onde se aquece o ovo filosófico, e também o microcosmo, símbolo central de todo imaginário alquímico”. (CARVALHO,1995:132)

 

Disso surgiu uma idéia de que cada período, reitero, pudesse conter um impulso poético característico e que essa sua qualidade literalizou uma materialidade estética também especifica e renitente a cada período. Acessar esses elementos originários e constitutivos dessas imagens, em sua relação com a idéia dos períodos, poderia me aproximar de um esboço artístico que revelasse alguma pista dos temas primitivos. A reflexão sobre os períodos, diante da proposta das fronteiras, foi um rastro seguido que me levou a um caminho insuspeito, acredito agora que o que tenho descoberto é a minha própria relação com o arquétipo dessa alma artística.


Nessa visão do espírito/alma interferiram também toda a imagética generalizante, as biografias de artistas e textos históricos que encontrei até agora sobre os períodos. Embora seja esta minha perspectiva francamente apoiada numa visão de mundo que eu diria ser socrático/cristã, desenvolvida principalmente, além de minha educação durante minha vida, pela releitura dos evangelhos e de alguns dos textos atribuídos a Sócrates, não mantenho relação direta com qualquer religião nem mesmo as que adotem as premissas cristãs. Esforçarei-me em demonstrar que o potencial de cada uma das disposições que encontrei é arquetípico e por isso não pode estar somente relacionado a uma tradição ocidental européia, mas, que pode ter ressonância em inúmeras outras imagens encontradas em diversas culturas específicas do mundo.


Acredito que estas doze disposições estão de alguma maneira incorporadas aos processos de ação, fabricação ou criação de que é capaz o ser humano e também expressas, sem nenhuma restrição, em todos os movimentos da imaginação, tendo sido sedimentadas através dos milhares de anos da experiência cultural humana, ou seja, não são inatas, mas, por outro lado, também não representam exclusivamente um cenário de evolução do primitivo ao contemporâneo. O que se considera arte primitiva, por exemplo, será aqui observado não como uma datação, mas como um complexo de qualidades arquetípicas da condição humana em si mesma que permanecem relevantes nessa idéia. Não posso estudá-las como julgo que eram em determinado período, mas sim, estudá-las no modo como estão incorporadas ao imaginário dos processos artísticos hodiernos. Destilei o que há de arquetípico, de primitivo na idéia de cada período, para entender como isso permaneceu, ou sempre esteve lá, e como se movimenta nos processos de criação artísticos de meu tempo. O importante é saber qual é a potência de cada disposição hoje, para saber quais são os temas primitivos que fundamentam minha imaginação, pelo que eu consigo visualizar destes.


A associação que faço entre as imagens, a idéia dos períodos e meus devaneios acerca dos conceitos que elaboro, visam demonstrar qualidades que podem ter sido manifestas num contexto específico que evidenciou uma disposição em relação a outra, mas, que sempre estiveram ligadas à alma rústica, ao espírito do mundo e, mais importante, aos temas primitivos que me fazem entender os processos da imaginação humana. Não é o estudo de uma questão evolutiva, nem a apreensão de uma questão criacionista, mas sim, apenas o desejo de desvendamento de alguns arquétipos que vislumbro na idéia dos períodos e que me fazem entender meus processos de imaginação. Porém, é importante afirmar que apresento as disposições como qualidades da elaboração poético/estéticas que podem sim ser fruto da dedicação da imaginação ligada a uma época e que, nas imagens que escolhi, eram para mim a sua melhor expressão.


O que quero dizer é que acredito que o período apontado como arte antiga, por exemplo, guarda realmente manifestações que podem demonstrar o impulso poético da reflexão e as literalizações da mitologia em suas imagens da melhor maneira possível para mim, mas, de modo algum são elementos apenas descritivos restritos a uma condição fixada numa linha de progressões e superações.


Mesmo que inicialmente estas doze disposições que destilei estejam claramente ligadas a certo determinismo histórico dos períodos, buscarei apresentar, através das imagens e da relação entre cada impulso poético e manifestação estética que as uniu, o desdobramento de uma potência arcaica da imaginação humana que depois desencadearam na intuição sobre os temas primitivos. Pela minha intuição, desejo conseguir desconstruir as premissas lineares em relação às imagens dos períodos no próprio desenrolar da sua observação, pois, como acredito que a proposição da linearidade não se sustenta por si mesma diante de uma exposição que aborde os temas primitivos como fenômenos arquetípicos, não me dedicarei a refletir diretamente sobre a negação da linearidade.


Deste modo, não aponto as disposições, nas imagens que tomo como exemplo, da maneira exata como aparecem nas explicações dos momentos históricos, mas, da maneira como acredito passaram a fazer parte daquela relação alma/espírito a que preciso me ligar para uma imaginação viva no instante. Essas disposições estão, simultaneamente, tanto nas peças de um possível jogo ideológico arbitrário como em qualquer outra possibilidade associativa que eu queira fazer, pois, se as aponto como arquétipos, essa polissemia e essa onipresença é sua principal qualidade.


O que mais me importa é a sensação causada pela imagem que, acredito, possa me aproximar da qualidade que está exposta nesta disposição. Quando consigo sentir o movimento de cada disposição, através do que a imagem causa em seu afetamento, aproximo-me da compreensão do que estas disposições são e de qual é o seu trabalho na imaginação. Se existem os temas primitivos da alma, de que fala Gaston Bachelard, gostaria que meu esforço aqui encontrasse ao menos seu feitio. São estes peças importantes porque acredito que sejam o primeiro movimento da imaginação para tentar prender, ou dar continuidade ao instante. A intenção aqui é revelar os meios mais arcaicos possíveis que vejo, pelo menos em mim, de criar uma ilusão que congela o instante que eternamente escapa. É uma ingenuidade, mas também é um honesto movimento da alma humana e um anseio ambíguo de ternura pela sua vida.


Para estar ligado a certos temas “basta ser um humano”(Milton de Almeida,FEUnicamp), assim, o que vejo é que estes temas poderiam estar em qualquer cultura ou civilização humana, estes desvelam um drama equânime do ser humano. Os proponho por acreditar que são conceitos arquétipos que impulsionam imaginações e criações poéticas e estéticas que são possíveis a todo ser humano.  Estes seis temas primitivos da alma é um testemunho meu sobre o que vejo e encontrei em mim mesmo, não anseiam por ser unanimidade ou obrigatoriamente devam ser aceitos como um modelo. Mas, se a minha alma pode se encontrar em campos arquétipos coetâneos a outras, pode ser que estes seis temas sejam também, e assim espero, partilhados por mais alguém.


Se, como diz Gaston Bachelard, todo ser humano retorna impreterivelmente aos temas primitivos da alma, proponho que, para além destes, de uma forma ou de outra, o que ocorre são apenas inúmeras especulações e desenvolvimento hipertrofiado. Isto é, seja qual for o caminho que o imaginador escolha seguir, este caminho será sempre um desdobramento relacionado aos temas primitivos. Qualquer elaboração, por mais antiga que seja, sempre me trará de volta. Por este motivo, o que mais importa neste trabalho não são as elaborações possíveis sobre os temas, suas miríades de detalhes, preciosismos e maneirismos, mas a potência que estes são capazes de acumular em sua gênese.


Desta maneira, todo imaginador pode desenvolver seu próprio conhecimento diretamente quando refletir sobre estes seis temas fundamentais. Acredito que qualquer organização e/ou sistematização a partir destes temas se sobrepõe à originalidade de sua proposição primal e apenas figura como uma possibilidade específica de cada experiência que assumiu essa organização.  A personalidade pode individualmente tentar silenciar a alma de que é reflexo e assumir um controle opressor e dissimulador das suas origens, pode ocorrer que um sistema complexo seja criado a partir dos temas primitivos e essa mesma personalidade, agora institucionalizada, tente silenciar a importância de sua fonte para garantir poder aos que controlam ou elaboram este sistema organizado. Como se, tendo recebido a guarda de um tesouro valioso, o seu guardião mentisse sobre sua missão e passasse a o controlar por conta própria sem reverenciar a fonte que o colocou nesta posição. Como hipócritas, que tem a chave, porém, não entram e não deixam ninguém entrar (Mateus, 23:13). Meu intento aqui, todavia, não é realizar a crítica a sistemas de poder organizados, mas apenas encontrar uma chave possível, entrar e deixar a porta aberta.


Para tanto, imaginei que poderia encontrar em algum momento insuspeito da criação artística mais abrangente hoje em dia, traços dos elementos que tentarei testemunhar como “temas primitivos”. Assim, poderia demonstrar como as disposições estariam presentes como potências latentes em obras recentes, apesar de tê-las vislumbrado mais evidentes nos determinados períodos da história da arte. Não tive outra escolha que não me aproximar do cinema para tentar encontrar as referências que ansiava. Foi uma imposição a que sucumbi sem nenhuma possibilidade de resistência, porque esta mídia, além de ser uma das mais influentes formas artísticas contemporâneas, é minha própria base psicológica, portanto, recorrer às suas imagens é inevitável. Assisti novamente a alguns dos filmes que me emocionaram profundamente sem que tivesse uma explicação racionalizada para o afetamento que senti, mas apenas porque por vários motivos sempre me chamavam muito a atenção. Revi também filmes insuspeitos que aparentemente não me revelavam nada.


Dentre os que revi, percebi que algumas pequenas sequências, que se desenvolvem aparentemente independentes, num contexto arquetípico e até mesmo inconscientemente criadas pelos diretores e roteiristas, carregavam uma nuance subjacente que, creio eu, pode ser relacionada aos meus temas primitivos. Encontrei, então, seis trechos de filmes. Claro, pois se acredito que os temas alimentam os processos imaginativos, estes estariam sempre em algum lugar, bastava que eu escolhesse os trechos que melhor me mostrassem isso. Percebi que estes trechos funcionavam como uma espécie de parábola que envolviam cada um dos temas primitivos. Usarei essas parábolas, então, para apontar uma sensação sobre cada um desses temas. Uma potência encravada na dança entre as disposições. Uma parábola instiga a intuição sobre um tema sem ser explícita, pois, com a imaginação nada é explícito, tudo é metafórico. A parábola tem essa característica de manter seu tema implícito e disfarçado, dissimulado, que força o observador a quebrar suas preferências antes de se aproximar do segredo que guardam. Assim, uma parábola é um dos melhores caminhos para encontrar uma pedra oculta.

 

 “É preciso que cada um se empenhe em destruir em si mesmo tais convicções não discutidas. É preciso que cada um aprenda a escapar da rigidez dos hábitos de espírito formados ao contato com experiências familiares. É preciso que cada um destrua, mais cuidadosamente ainda que suas fobias, suas ‘filias’, suas complacências com as intuições primeiras” (BACHELARD,1999ª:8).

 

Essas parábolas desapertariam no leitor/observador deste trabalho aquele estado de devaneio necessário para a aproximação específica aos temas primitivos. Achei isso interessante porque somente escrever sobre os temas me pareceu insuficiente. Assim, esses trechos de filme poderão, além de ampliar a apreensão do que eu desejo mostrar, ajudar para que eu mesmo tenha uma base em minha imaginação ao devanear sobre os temas primitivos.



Ritmo e Ritual – O Tempo

 

 



 

Pintura corporal entre os índios Kayapó-Xikrin, (In:VIDAL,1992:180)

 

A qualidade desta realização artística é a manutenção de uma consciência poética do mundo e necessita de um evento para ser reverenciada. Mesmo sendo uma obra associada ao que se chama “povo primitivo”, o importante é que através da compreensão da situação criada por essa imagem, e sua posição arquetípica em seu contexto sócio-cultural, revelam-se elementos desdisposição que podem estar nos processos de criação artística, do imaginador, em qualquer outra situação. Gostaria de sugerir que, nesses processos artísticos, o ritmo é uma posição interna que será sempre a base de uma materialização estética ritualizada, que aqui nesta imagem em especial pode ser observado mais claramente.


Como acontece numa execução musical, esse ritmo é subjacente. Isso porque este marca justamente essa qualidade anímica de um ciclo que se anuncia e é evocado, por um pacto implícito, sempre no mesmo modo. O ritual criado esteticamente está sempre ancorado numa necessidade de um ritmo e nisso vibra uma potência bem específica, o Tempo. No caso dos Kayapó-Xikrin, o ritual marca, através da apresentação de um pintura específica, a condição de um ritmo para um indivíduo. Embora seja um tanto idílica, encontrei foi uma afirmação de Nietzsche numa referência às sociedades primitivas, citada por Vygotsky, que reafirma essa minha reflexão:

 

“Ele (o ritmo) gera uma vontade irresistível de imitar, de colocar-se em uníssono não só com os passos que os pés lhe facultam como também com a alma que segue a medida... Aliás, terá havido para o homem antigo e supersticioso algo mais útil que o ritmo?”. (VYGOTISKY,1999:311).

 

É claro que o ritmo sugere um impulso, mas o ritual é a forma de literalizar esse impulso. É exatamente este aspecto que posso encontrar quando observo como se dão as relações entre as sociedades chamadas primitivas e as manifestações estéticas surgidas a partir das formas culturais que estas elaboram. Embora seja característica de toda criação humana, é principalmente nesse contexto que o ritual aparece como a elaboração estética pura de suas expressões artísticas. Neste lugar o ritual não está escondido, dissimulado em discursos. Seu principal movimento é se remeter ao ritmo que o impulsiona, é ser literal.


Esse ritmo anímico, esse impulso poético, que sempre influencia essa criação estética do ritual, parece ser também uma leitura das formas ritmadas e cíclicas da natureza, como uma rendição e reverência a esta condição. A estética do ritual é a metáfora materializada da poética do ritmo, numa estética específica que me envolve pela consciência poética desse ritmo que, por sua vez, é inspirado pela contemplação dos elementos cíclicos da vida.


Neste sentido é que acredito que se criou um ritmo anímico arquétipo que sempre influencia a criação estética do ritual, isto é, para materializar um ritual tenho sempre um impulso poético de ritmo. Para o imaginador será imprescindível sempre lançar mão do movimento ritmo/ritual para definir a exata qualidade do drama do Tempo na sua relação com a alma artística. O ritual, assim, é uma metáfora literalizada da consciência do ritmo. Para melhor apontar como a qualidade dessa disposição ritmo/ritual permanece importante para os processos de criação da imaginação gostaria de mostrar uma afirmação explicita desta condição nesta reflexão de Andrei Tarkovski sobre a criação cinematográfica:

 

“...o ritmo do fluir do tempo ali está, dentro do quadro, como única força organizadora do extremamente complexo desenvolvimento dramático... o ritmo não é determinado pela extensão das peças montadas, mas, sim, pela pressão do tempo que passa através delas...” (TARKOVSKI,2002:135)

 

O que seria um “extremamente complexo desenvolvimento dramático” além do ritual? E como pensar o ritmo como outra coisa senão por uma pressão. Claro, o ritmo não é uma contabilidade, uma seqüência de batidinhas, ele é a pressão da vida, da Divindade, sobre minha consciência do instante. Esse evento que acredito explicitar ao propor a idéia dessa disposição está presente no processo da imaginação. A criação imaginativa precisa sempre levar em conta essa situação que a chamada arte primitiva revela de uma maneira insubstituível. Num trecho do filme “Zatoichi”, encontrei uma parábola para essa pressão do Tempo. Não vou descrevê-la, nem analisá-la, pois esse não é objetivo aqui, mas proponho essa seqüência como um meio alternativo para a apreensão do que entendo pelo tema primitivo do Tempo.


O Tempo pode aparecer tanto numa expressão horizontal como vertical. Sua horizontalidade é, porém, um elemento ilusório que só pode ser provado pela manutenção de alguma materialidade. Todavia, a durabilidade revela sempre uma melancolia, pois, é possível restaurar a materialidade, mas somente quando se age verticalmente através da reorganização de sua carga, de seu peso possível. O projeto de manutenção é aquele que sustenta a carga do Tempo na materialidade e reorganiza constantemente sua estabilidade.  Como na proposição do Wabi Sabi, a importância é manter a verticalidade poética da matéria, pois aí está manifesta uma estética a cada instante em que a olho.


O poema é vertical. O Tempo vivo lembra um cavalo que não apenas cavalga, mas que também despeja sua carga de vitalidade quando bate seus cascos constantemente no chão. Sem esse despejamento nunca existiria a cavalgada. O Tempo bufa e relincha sobre aquilo que já tenho sido há milhares de anos como um imaginador. O Tempo não é uma linha que perde e se desliga do que já aconteceu. O Tempo não passa, é carregado. O importante em relação ao Tempo é a carga que este me impõe. Isso nada se parece com uma seqüência em que coisas deixam de existir ponto a ponto. A função da sua horizontalidade é baseada no esforço que faço para carregar essa carga, o quanto agüentar.


Por este motivo é que espiritualmente não importa o acúmulo de conhecimento horizontal. É possível conhecer tudo verticalmente, e essa é a revelação relacionada ao tema primitivo do Tempo. Esta condição está também expressa na imagem do prumo que apresentei antes. O conhecimento que importa para o trabalho da alma artística é o vertical, aquele que é carregado de energia do arquétipo. Não se aprende com o passar das coisas, mas sim proporcionalmente à abertura que se suporta dar à verticalidade dessa entidade. Por este motivo é que apenas o passar dos anos em si mesmo pode não representar sabedoria nenhuma e, por este mesmo motivo, uma fração ínfima de segundo pode revelar todo o universo.


A disposição do ritmo/ritual é o movimento do Tempo quando mostra o trato da sua carga. O ritmo é a pancada do Tempo que o ritual reverencia. A duração do ritual, e por isso este carrega uma imensa carga mística, só pode ser medida na verticalidade do assombro que visa equalizar pelo ritmo que está subjacente. O Tempo é uma verticalidade que se arrasta, como um furacão. Por isso seu desenrolar tem uma noção de poder destrutivo, de desatino, destino e fatalidade.


A observação da potencialidade do Tempo nos processos da alma artística, na imaginação, implica em elaborar e realizar um ritual que reverencia, antes de qualquer coisa, a urgência de uma escolha de um ritmo possível de ser empregado diante de uma situação implacável, na imposição de uma atuação que não pode ser protelada. Neste sentido, o Tempo, enquanto proposição de um tema primitivo, não é um passeio que posso realizar e desfrutar, mas, uma estrondosa manifestação instantânea que despenca sem descanso sobre minha existência e que me obriga a reagir.


 

Reflexão e Mitologia – O Divino

 


 



Prato grego de Exekias representando Dionísio (530ac), que está no Museu de Coleções Estatais de Antiguidades, Munique-Alemanha.


Nas elaborações estéticas com situações mitológicas, na dupla de disposições reflexão/mitologia, percebo que existe um profundo senso de reflexão sobre o mundo e uma intensa vontade de explicar como este se organiza. Não é uma reflexão racional, mas sim poética. Ocorre um impulso interior, anímico, para entender o mundo e se relacionar com este através de uma criação de figuras e contextos metafóricos que explicam este mundo de uma maneira específica. Foi na introdução de uma concepção da alma que deveria tomar de consciência sobre si mesma, que é inaugurado, especialmente através da experiência dos mistérios órficos, um impulso poético profundamente reflexivo que cria explicações estéticas mitológicas acerca do mundo que são como desdobramentos metalingüísticos da própria interioridade psicológica.

 

“...uma religião que deixa de ser uma religião da exterioridade, isto é, do culto para ser uma religião da interioridade, isto é, da ascese moral e da catarse da alma”. (CHAUÍ,1994:56).

 

Em toda civilização há a relação entre reflexão e mitologia, mas escolhi uma imagem do evento da cultura grega, o prato pintado por Exekias em que retrata Dionísio, que penso pode dar respaldo a essa afirmação de um modo bem evidente e porque me mostra isso de uma maneira mais eloquente. São também interessantes para demonstrar essa disposição as explicações do mundo atribuídas aos pré-socráticos e também aquelas atribuídas ao próprio Sócrates. É seu principal indício o impulso poético/filosófico incontestavelmente associado a todos os pensadores deste período, mas que, de uma maneira peculiar, mantiveram a elaboração de imagens mitológicas nas suas criações estéticas. Neste sentido, parece-me que o esforço em refletir poeticamente sobre a origem das coisas, cria uma explicação mitológica do mundo. Para o imaginador, essa condição da disposição reflexão/mitologia que pode ser apreendida muito bem nesse contexto, dá a oportunidade de criar seus próprios elementos mitológicos para dialogar com a alma artística em seus melhores momentos. É aqui que o imaginador encontra a possibilidade de elaborar uma compreensão do tema do Divino e da sua importância na força de seus trabalhos artísticos.


As personagens mitológicas são sempre relacionadas aos fenômenos do mundo, e da especificidade humana, explicados por uma reflexão poética. Essa disposição pode ser observada também nas criações atuais, a relação reflexiva que inventa mitologias sempre foi uma peça importante para o processo da imaginação desde que aparecem imagens criadas pelo ser humano.


Para ilustrar ainda mais essa afirmação uso uma frase atribuída a um dos primeiros filósofos da humanidade, Heráclito, considerado como um fundador da filosofia, em que a reflexão sobre o universo desconhecido é expressa numa metáfora mitológica:

 

“Este mundo, o mesmo para todos, nenhum dos deuses, nenhum dos homens o fez; mas era, é e será um fogo sempre vivo, acendendo-se e apagando-se conforme a medida” (CHAUÍ,1994:68)

 

Como disse, esta disposição é encontrada em lugares contemporâneos também. Andrei Tarkovski outra vez ajuda ao refletir sobre a imagem cinematográfica metaforicamente, de uma maneira totalmente mitológica. “...a imagem não é certo significado expressado pelo diretor, mas um mundo inteiro refletido como que numa gota d´água” (TARKOVSKI,2002:130).


Na imagem do prato grego, vejo um barco à vela, sete golfinhos circundando o barco e nadando à sua volta, sete cachos de uva pendentes de uma videira com três troncos que se abrem em quatro galhos e que está no mesmo lugar do mastro do barco. Dionísio também leva algo nas mãos. Essa imagem mitológica do barco em rota vertiginosa aparece em muitas explicações sobre essa qualidade específica e intensa da vida, como, por exemplo, explica Foucault:

 

“Outro símbolo do saber, a árvore (a árvore proibida, a árvore da imortalidade prometida e do pecado), outrora plantada no coração do Paraíso terrestre, foi arrancada e constitui agora o mastro do navio dos loucos...”  (FOUCAULT,1976:26)

 

O importante, porém, é perceber aqui, independente dos significados e representações possíveis, como as escolhas do artista, do imaginador constroem uma imagem que revela exatamente como pode nos afetar a disposição reflexão/mitologia. É o estado a que a observação da imagem me transporta o que interessa. Todas as imagens que provocam uma reflexão poética em mim, através da elaboração de uma estética mitológica dependem desta disposição. Deste mesmo modo, a qualidade fundamental dessa disposição é a de ter o poder de alçar-me ao campo onírico mais abstrato diante dos processos da imaginação. A navegação não é estável e precipita-se numa odisséia sem garantia. Tudo de repente pode mudar e transformar o curso em queda, em afundamento. Embora o viço da vida esteja encravado ali e conduza sua rota.


Através dos impulsos reflexivos que forçam a criação estética mitológica percebo a potência do tema primitivo do Divino. Este é o tema das alturas, da falta de ar, da vertigem, do pequeno, do ínfimo, do silêncio, do abandono, de um tipo de morte muito especial e, principalmente, da queda, do afundamento potencial. Nisso, esse tema tem uma propriedade próxima às crianças. Não é a criança uma constante desestabilidade navegante e sem rumo? Para encontrar esse tema primitivo é preciso se render ao processo da imaginação e da mentalidade infantil que está alojada em mim. Algumas das melhores criações sobre a divindade estão nas mãos das crianças. Num pequeno livro, “Vengo del Sol”, Flavio Cabobianco, então com 9 anos, elabora uma incrível descrição da Divindade que eu já encontrei.

 

“Sabes, mamá? Cuando me ponen en penitencia yo lo passo muy bien porque no pienso. Pensar es hablar para adentro y yo estoy callado por dentro. Entonces me voy a mi parte salida de Dios y estoy ahí. Pero no creas que queda um agujero cuando salgo, porque Dios, aunque esté separado en partes, siempre esta entero”. (CABOBIANCO,1991:34)

 

 

Essa indicação, da ligação direta das crianças com a divindade, é muito forte em várias tradições de religiosidade que promulgam essa relação. Pela condição de ter penetrado pouco no desenvolvimento da personalidade, aquela que me distancia da alma, a criança está diretamente em contato com a novidade divinal, em seus desejos, espiritualizado. Ela é o único real representante do mundo livre anterior à racionalidade.

 

“Quem é o maior no Reino dos Céus? Jesus chamou uma criança, colocou-a no meio deles e disse: “Em verdade vos digo, se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus. Quem se faz pequeno como esta criança, esse é o maior no Reino dos Céus. E quem acolher em meu nome uma criança como esta, estará acolhendo a mim mesmo. Não causar a queda dos pequenos “Quem provocar a queda de um só destes pequenos que crêem em mim, melhor seria que lhe amarrassem ao pescoço uma pedra de moinho e o lançassem no fundo do mar.”(MATEUS,18:3/4/5)

 

O tema primitivo do Divino é importante quando mostra a diferença entre as coisas tratadas pela personalidade ou elaboradas pela alma. Como a personalidade exige justamente uma vivência concreta, uma experiência para se coagular, a criança está desta maneira num ponto especial para encontrar os sonhos da alma, que está fora do tempo.


Esse tema primitivo é o movimento da negação da personalidade como única coordenadora da experiência de vida. Aparece quando a personalidade se solta, desiste e se entrega à queda vertical. Quando se entrega ao sonho e à queda infantil, a queda sem medo. A criança não foi dominada pela espécie de medo e ilusão da personalidade. Sugiro um trecho do filme “King Kong” como uma parábola para fomentar os aspectos arquetípicos deste evento. Ali podemos ver materializado o momento em que a alma se encontra com a personalidade durante a cerimônia iniciada pelo Divino. A queda e a separação são seu destino. O imaginador usa este tema primitivo em sua criação artística.


Assim, esse tema primitivo força o abandono desse medo e dessa ilusão justamente quando desisto e caio, morro para a imposição da continuidade da personalidade e abandono a própria concepção que me faz acreditar na dicotomia entre morte e vida. Quando perco essa crença estou no momento de maior força. Este tema aponta, então, a eternidade, porém, o eterno não é aquilo que vive para sempre, mas aquilo que em sua queda mística, está incompreensivelmente fora da esfera do viver e do morrer.


 

Devoção e Religiosidade – O Sacrifício

 

 



 

“Martírio de São Vicente”, datado de 1007 dc e de autor desconhecido, está na basílica de San Vicenzo em Galliano de 1007: (ARGAN,2003:333)

 

Vislumbrei a relação religiosidade/devoção a observando como introspecção anímica, principalmente, no profundo envolvimento entre o poema, as orações e textos proféticos em toda a manifestação de religiosidade que se estende pela experiência estética medieval, cuja uma das representações mais expressivas pode estar na concepção da poética do Cristo. Aqui é um impulso devocional que cristaliza as formas religiosas e a estética peculiar a esta consciência, e é aqui que o imaginador tem seus recursos disponibilizados ao seu processo criador.


A situação de sacrificial contida nas proposições devocionais/religiosas é uma disposição que está em qualquer situação de imaginação e dos processos artísticos, porém, escolhi o afresco “Martírio de São Vicente”, datado de 1007 dc e de autor desconhecido. A imagem mostra uma cena referente à lenda em que o santo teria sido martirizado horrivelmente inúmeras vezes e mesmo assim se mantinha vivo e não sentia dores. A coisa se estendeu por tantos dias que foi considerado um milagre de fé. Novamente, o que interessa não é a obra e a história em si, mas a sensação e o lugar a que esta imagem pode me levar. Esta qualidade é o potencial contido na disposição devoção/religiosidade de que todo imaginador lança mão em seu processo de criação e que o faz alçar o tema primitivo do Sacrifício.


A disposição da devoção é fundamental para a criação estética porque garante a profundidade da expressão de religiosidade. A obra estética é essencialmente espiritual e isso é nutrido pela relação devoção/religiosidade. O imaginador é um devoto e com isso cria movimentos de religiosidade para manter o trabalho voluntário de sua espiritualização, o Sacrifício, custe o que custar.

 

“Existe um tipo de crucifixo conhecido como ‘Cristo Triunfante’, onde ele não aparece com a cabeça pendida, nem vertendo sangue, mas com a cabeça ereta e os olhos abertos, como tendo se dirigido voluntariamente à crucificação”. (CAMPBELL,1990:147)

 

O que vejo sempre é um impulso devocional que cristaliza as formas religiosas e uma estética peculiar pertencente a esta consciência poética. Esta peculiaridade é o sentido religioso que nutre uma sacralidade para a atuação imaginadora. A disposição da devoção é fundamental para a criação estética porque garante a religiosidade do fazer artístico. Esta importância da devoção no processo artístico está claramente expressa por Andrei Tarkovski:

 

“O homem moderno, porém, não quer fazer nenhum sacrifício, muito embora a verdadeira afirmação do eu só possa se expressar no sacrifício... O artista, porém, não pode ficar surdo ao chamado da beleza; só ela pode definir e organizar sua vontade criadora, permitindo-lhe, então, transmitir aos outros sua fé. Um artista sem fé é como um pintor que houvesse nascido cego.” (TARKOVSKI:2002:41;48)

 

A obra estética é essencialmente espiritual e isso é alimentado justamente pela relação devoção/religiosidade. O imaginador é um devoto de seu universo imaginário e com isso cria movimentos de religiosidade para manter o trabalho de sua própria espiritualização e a do seu mundo.


O mote do tema primitivo do Sacrifício, que flutua entre a devoção poética e a religiosidade estética, é adaptação, esse é o seu principal movimento. Aqui nada pode ser condenado, pois tudo pode ser adaptado. Ou seja, o imaginador não desiste de seu projeto,mas encontra maneiras de adaptar-se a qualquer necessidade para continuar a glorificá-lo. A complexidade das experiências é completamente imprevisível. O Sacrifício é o movimento que abandona qualquer atenção a uma condenação, a um preconceito. Não é possível prever nada, porque tudo pode ser imediatamente transformado de um segundo para outro. Esse prenúncio de transformação é uma obra constante do Sacrifício. Tudo pode acontecer quando eu incorporo a possibilidade desse tema primitivo. Devoção/religiosidade é o eixo que elabora o Sacrifício. O Sacrifício se dá através do movimento dessa disposição porque se entrega e se adapta e porque não acredita em sua condenação.


A proximidade entre uma certa loucura e a precipitação ao Sacrifício é dirigido por uma convicção interna, uma devoção que espera provar sua fé pelo desencadeamento de seu ato no mundo. O Sacrifício visa sempre afetar e transformar o outro ao impor uma situação e um caminho. No filme “Fogo Sagrado” há um trecho que é também uma parábola dessa condição e pode expor o teor delirante desse tema incrementando a compreensão do que eu quero dizer. Quando me lanço em qualquer direção sabendo que é justamente essa irracionalidade que fará com que eu encontre um caminho sagrado novamente pratico o Sacrifício.


Quanto menos os motivos dessa entrega são explicitados mais força este pode acumular. Sua principal potência é garantir a entrega total ao objetivo do imaginador em seu processo de criação, do ato que fará materializar sua intenção poética. Não há como explicar esse processo, pois a imperiosidade da adaptação devocional precisa urgentemente fisgar aquilo que será sua transmutação. E, assim, pelo principal apelo deste tema, transmutando a si mesmo em Sacrifício seria possível transmutar o mundo todo.


 

Identidade e Humanidade – A Verdade

 

 



 

“Sagrada Família” de El Greco, realizada e meados de 1580 dc, é realizada em óleo sobre lienzo, mede 178 x 105cm e está no Museu de Santa Cruz em Toledo.In: (SCHOLZ-HÄNSEL,2004:2)

 

Encontrei a idéia acerca da identidade/humanidade na inauguração do ser humano individual dominando a natureza, coisa que é bem elaborada no contexto do Renascimento, e tomando das mãos de Deus a sua responsabilidade com o mundo, expressa numa constante criação de imagens em que o ser humano é extremamente valorizado e figura sempre como o tema mais importante:

 

“A idéia do homem, que finalmente conquistou sua própria personalidade, em carne e osso, que descobriu o mundo e Deus em si mesmo e ao seu redor depois de séculos de adoração do Deus medieval, cuja contemplação o privava de sua força moral.” (TARKOVSKI:2002:54)

 

A poética que está nessa relação é, então, toda aquela que valoriza a identidade do imaginador envolvido em seu próprio mundo, do ser humano e desse seu mundo material, da materialidade. A afirmação estética dos desafios da humanidade exige um impulso poético que elabora internamente uma célula de identidade. Uma individualidade que em seu movimento é capaz de ser inédita, tem o poder de consolidar, a cada criação, os primeiros momentos de uma concepção de existência da humanidade. Aqui, é importante tudo o que diz respeito a ser humano e suas possibilidades.

 

“Se a história, como experiência já vivida e portanto resolvida, não tem mais um valor determinante, e o que conta são somente as situações humanas e o modo como cada um enfrenta as dificuldades espirituais da existência, as tradições transmitidas perdem todo o vigor e a troca das experiências individuais torna-se tanto mais necessária quanto mais as experiências são diversas entre si.” (ARGAN,2003:24)

 

Na imagem que escolhi, “Sagrada Família” de El Greco, de 1580 dc, as características dessa disposição são expressas claramente. Retrata o menino Jesus e sua família sem nenhuma qualidade diferente daquela que explicita a materialidade de sua identidade e drama em ser humano. A figura lendária da personagem Jesus Cristo é aqui identidade humana pura, está entre a humanidade. Todavia esta imagem não é reduzida à representação meramente realista. A identidade é um impulso poético que também está envolto em um mistério que aponta uma novidade ao imaginador, essa novidade é uma ansiedade que se relaciona com sua possibilidade diante do resto da humanidade. Ou seja, uma ansiosidade pelo mistério relativo ao de que eu mesmo, minha obra, minha identidade pode representar para os outros, pode afetar e modificar os outros.


Esta disposição reafirma que o impulso poético de identidade deve ser aquele que cria uma materialidade estética que é sempre pretensa de instaurar uma originalidade, mas, também de expandir a consciência dessa originalidade de humanidade. Não sou importante por estar ligado a uma ou outra tradição, mas por carregar a potência de uma novidade completa e insubstituível. Esse é o movimento da imaginação que pretende colonizar o que é ainda parece misterioso. Aquele movimento que pretende estetizar as fronteiras do mundo.


Para a condição dos processos da imaginação atuais, eu encontro essa disposição como algo que sempre força a negação de idéias hegemônicas. Reconheço essa disposição em sua posição de responsável por preservar a originalidade das criações humanas e pelo poder de resistir em seu movimento à nivelação e pasteurização da imaginação.

  

Por isso, foi nesta movimentação criadora entre identidade/humanidade encontrei o tema primitivo da Verdade. Este tema se mostra a mim não através de uma concepção de justiça, mas, ao contrário disso, esse tema primitivo diz que não há como negociar uma condição estável para a existência. Qualquer estabilidade será sempre uma imposição. A vida é bruta e vivenciar essa condição artisticamente é desenvolver o tema da Verdade. A Verdade não é saber o que é ou o que não é, mas desenvolver uma aproximação ao drama injustificável da implacabilidade da vida. O movimento desse tema na imaginação requisita uma noção ampla das coisas que deve reagir aos padrões moralidade que tentam manter uma estabilidade arbitrária.


O passado, o futuro e todas as coisas estão no mesmo ponto, no mesmo instante. A Verdade é o tema da intuição que revela e delira diante da totalidade insuportável e injusta da existência. O elemento desse tema primitivo é o espanto diante dessa implacabilidade. A Verdade é imparcial e louca. “Pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para confundir os sábios; e Deus escolheu as coisas fracas do mundo para confundir as fortes”. (Coríntios,1:27)


O trabalho que apenas elabora uma fachada de equilíbrio é o da fantasia e este se afasta da disposição identidade/humanidade, assim como disse antes que o trabalho da personalidade é diferente do trabalho da alma. A mentira é que é convincente, o verdadeiro que me aparece aqui é amoral e injustificável. Este paradoxo é que alimenta o potencial criador desse tema. Diferencio aqui uma situação fantasiosa que a personalidade comumente fabrica, de uma outra condição anímica típica da imaginação poética. Lembro Bachelard numa declaração que se refere à essa situação:

 

“Não é raro reconhecer nessas imagens poéticas uma consistência particular que não pertence a imagens reunidas pela fantasia. Elas são dotadas da maior das realidades poéticas: a realidade onírica.” (BACHELARD,2001:30)

 

E a realidade onírica nunca foi e nunca será dedicada à formatação de uma moralidade como a fantasia pode ser. O tema primitivo da Verdade é uma potência motriz destes movimentos da realidade onírica que invade o mundo seja qual for a condição do momento. O impulso desse tema se aproxima da relação que pode estabelecer a alma artística com as imperiosas e sublimes catástrofes da existência. Essa é a força que realiza a intuição desse tema, uma tragédia que é possível ser vivida. No trecho de filme que separei para apresentar a parábola da Verdade, “Assassinos por Natureza”, acredito propor uma oportunidade para apreender a sensação da Verdade subjacente e implacável que me surpreende, e que a fantasia sempre tenta simular. Aqui a tragédia não se esforça para parecer aceitável, pois isso é em si mesmo um artifício. A imoralidade com que o processo artístico deve conviver em seu filosofar indefeso está aqui no encontro entre o imaginador e esse tema primitivo. Desse encontro fatal, desse ciclo material injusto, ninguém pode escapar.


 

Dinamização e Sociedade – O Ser

 

 


 

Alfredo Volpi, obra do final de década de 50, feita em têmpera sobre tela, mede 72,8 x 108,5 cm, faz parte da coleção Ladi Biezus e está registrada In: (MAMMÌ,1999:84)

 

A disposição dinamização/sociedade carrega imediatamente uma noção de uma disseminação dos elementos da poesia e da estética artística para todo o ambiente da sociedade. Isso se manifesta com muita força nos primeiros momentos da estética moderna. O ideal de uma cultura artística socializada, em que não fosse um privilégio usufruí-la, mas sim uma vocação humana, está presente neste período nomeado de arte moderna. No clássico texto de Walter Benjamin sobre o fenômeno da reprodutibilidade técnica das obras artísticas e do que este autor afirma ser a “queda” da aura da arte estão claros para mim os indícios dessa dinamização de significados. Vejo que esta situação/condição de reprodutibilidade, em diferentes aspectos para cada período, sempre tenha existido, porém, eu acredito que encontrei um ponto exato para dar o exemplo de uma estética de socialização a partir de uma poética de dinamização, principalmente pela característica desse período em revelar os inúmeros elementos internos, saberes e sistemas do processo artístico, iniciando a possibilidade de o imaginador mergulhar no cotidiano da sociedade, instalando um conceito de libertação associado diretamente à criação artística.

 

“Os dadaístas davam muito menos importância à utilização mercantil de suas obras do que ao fato de que não pudessem elas se transformar em objetos de contemplação... Chegaram, assim, a despojar radicalmente de qualquer aura as produções às quais emprestavam o estigma da reprodução”. (BENJAMIN,2000:248).

 

Tomei a imagem de uma pintura sem título de Alfredo Volpi. Mesmo que as pinturas desse artista não estejam tão próximas do Dada, a sua característica fundamental está ligada à incorporação desta capacidade de dinamização por uma estética de qualidade extremamente acessível.   Não porque esta estética seja menor ou de pouca elaboração, mas porque essa qualidade é intrínseca ao próprio universo poético que remete. Essa grande importância da dinamização poética para toda a sociedade pode ser também entendida a partir de uma reflexão de Andrei Tarkoviski, ao dizer do artista, mas que eu estendo a todo ser humano imaginador:

 

“...um indivíduo que decidiu formular para todos os outros, com absoluta sinceridade, sua própria verdade sobre o mundo...” (TARKOVSKI:2002:161).

 

Isto porque o imaginador fala, a partir deste momento, sobre sua própria visão de mundo e da necessidade de quebrar as formas de prisão da expressão artística em apenas determinados locais privilegiados. Nesse aspecto o trabalho de Volpi fornece uma grande oportunidade. Basta aproximar um pouco que seja de seu fazer artístico para compreender como essa dinamização poética foi tão importante para a elaboração cotidiana de sua obra estética.

 

“Quando falamos de coisas que nos são caras, ficamos imediatamente ansiosos por saber como as pessoas irão reagir àquilo que dissemos, e desejamos proteger essas coisas, defendê-las contra a incompreensão.” (TARKOVSKI:2002:161)

 

Volpi cria seus trabalhos de uma maneira reprodutiva. Muitas de suas obras repetem o mesmo desenho para apenas reelaborar as cores. A afirmação dessa cadência é uma característica essencial para qualquer processo de imaginação e criação. A poética dinamizadora anseia por comunidade. E, neste sentido, anseia por humildade. O desejo do imaginador agora é expor, a todos, as idéias que acredita possam afetar o mundo, principalmente porque realmente passou a viver por isso, e que este mundo seja de todos. Este é um impulso poético que se incorpora na alma do imaginador e que define seu processo de criação estética.


A potência que exala desta disposição está severamente ligada à temática do Ser e é, como todas as outras, extremamente dramática. Seu mundo é o da morte e o da sobrevivência, da encarnação e guerra, saga e anulação. Esse elemento primitivo suporta toda condição da humanidade. O tema primitivo do Ser é o palimpsesto de uma existência de tantos milênios. O Ser aqui não é reconhecer-se, mas, exatamente o contrário, encontrar o imenso e insubordinável momento de não se reconhecer. Ser, diante da eternidade, é estar na insuportável e injustificável fragilidade da vida sem qualquer garantia de continuidade. É mergulhar não na sua própria história, mas na saga da consciência. Todas as expressões desse tema são relacionadas ao perder-se, seja onde for. É o fantástico, o mágico no dia a dia. É como estar num ponto anterior à elaboração das explicações do mundo. No filme em que encontrei a parábola do Ser, “Homem do Ano”, proponho que essa irracionalidade expresse um teor e uma sensação dessa situação paradoxal do Ser. Também espero que a pequena sequência possa acrescentar uma dimensão ampliada para o tema primitivo ao desencadear sua compreensão pelo envolvimento com sua dramaticidade através dos sentimentos envolvidos no processo de criação artístico sob essa emanação.


Alçar o tema primitivo do Ser é pular para trás, saltar ritualisticamente para o escuro à minhas costas. O tema do Ser é o tema que pode demonstrar uma qualidade irracional ainda não organizada pela pretensão da razão. Essa antecipação é importante porque a razão nunca será um tema primitivo, justamente porque nega o inefável estado anímico/espiritual. As elaborações de uma alma artística são aquelas que disponibilizam esse impulso da existência humana irracional que almeja a disseminação da comunidade e preservação da sociedade. É também a capacidade de perceber o eterno atávico, ainda incomensurado, de que sou parte e em cuja existência estou mergulhado junto com todos os outros seres humanos.


 

Equanimidade e Panculturalidade – A União

 

 


 


 

 

Série de obras de Wim Delvoye chamada de “artfarm”. Estas obras estão no site oficial do artista no endereço http://www.wimdelvoye.be. As imagens das peles tatuadas estão no link referente a “artfarm” 

 

Na dupla de disposições, equanimidade/panculturalidade, acredito que a estética contemporânea pode ser a melhor aparição de uma expressão de panculturalidade. E uso o prefixo pan justamente para denotar uma noção de paganismo, de uma qualidade panteísta. Ao contrário de uma idéia de pluraridade, que sugeriria somente uma realidade multifacetada, indico uma condição mistificada.


A panculturalidade é uma movimentação para um mundo que não se defina pela aglomeração de inúmeras culturas lado a lado como um caleidoscópio, mas, ao contrário, por uma diluição dessas culturas numa única situação estética, que compreenda o ser humano em essência.


Neste sentido, o impulso poético da equanimidade, que creio ser um aspecto muito bem definido na estética contemporânea pancultural, está exatamente influenciando essa última como uma consciência do mundo que não pode acreditar que diferenças e diversidades apenas devam conviver em tolerância, mas que, muito mais profundo que isso, não pode negar que a vida e a relação com ela é, em si mesma, essa mistificação de experiências que são, antes de tudo, manifestações que apontam para a consciência de uma única experiência humana. Essa minha concepção encontra alento na sugestão de uma “alteridade absoluta” de que fala Mikhail Bakhtin:

 

“Fora de Deus, fora da confiança numa ’alteridade absoluta’, são impossíveis a autoconsciência e o discurso sobre si mesmo, e isto não porque na prática estas sejam operações absurdas, mas porque a confiança em Deus é um elemento constitutivo, imanente à pura autoconsciência e ao discurso sobre si mesmo.” (BAKHTIN,2000:159).

 

Equanimidade é o impulso poético muito importante para a criação estética da humanidade e, embora acredito que estivesse sempre vivo nos inúmeros momentos da criação artística, assume uma luminosidade fundamental nas condições atuais da imaginação e consequente criação estética. Quando reconheço que não existem diferenças porque não as vejo mais, porque já encontrei a essência da existência humana ao encontrar o outro em mim mesmo, e eu mesmo nesse outro, encontro algo que me mostra as minhas inúmeras possibilidades de existência imaginadora. Esse é um início de compreensão do que possa ser uma aproximação ao impulso poético da equanimidade. O que sugerem então estas afirmações de Andrei Tarkoviski, senão essa necessidade poética que descrevi como uma disposição fundamental para a obra do imaginador na sua paixão pela alma artística:

 

“A imagem artística não pode ser unilateral: exatamente para que possa ser chamada de verdadeira, ela deve unir em si mesma fenômenos dialeticamente contraditórios  ...um relato pleno daquilo que preocupa, estimula e desconcerta nossos contemporâneos: uma verdadeira corporificação daquela experiência generalizada que falta ao homem moderno, e cuja concretização é a razão da arte do cinema  ...Não podemos perceber o universo em sua totalidade, mas a imagem poética é capaz de exprimir essa totalidade ...A busca da perfeição leva um artista a fazer descobertas espirituais, e a empregar o máximo de esforço espiritual. A aspiração do absoluto é a força que impele o desenvolvimento da humanidade”. (TARKOVSKI:2002:61 a 133)

 

A imagem que escolhi para estudar essa disposição está entre uma grande série de obras de Wim Delvoye chamada de artfarm, em um subgrupo de imagens chamadas pigskins. A obra se trata do couro tatuado de um porco que, depois de abatido, foi resgatado pelo artista.  O desenho foi tatuado na pele do animal ainda vivo, quando sedado, e remete prontamente ao impulso poético da equanimidade imediatamente ao ler o texto inscrito no couro: “One Life, One Love, One God”. A partir dessa proposição escrita a própria materialidade da peça me transporta a um lugar em que não posso definir regionalismos, identidades ou particularidades de nenhuma espécie, ou melhor, em que posso e devo reconhecer tudo isso simultaneamente.


A imagem consegue me atrair seja qual for a lente que eu escolha usar para me precaver de seu efeito. O impacto da proposta da peça, embora acredite que ao vivo possa assombrar ainda mais, coloca-me imediatamente numa posição humana e questiona minha necessidade de dividir opiniões e defender pontos de vista. A implacabilidade da condição dessa imagem anula qualquer orientação preconceituosa e determinista sobre o que estou vendo. Quando compreendo que quem vê é o ser humano, e que esta peça é responsabilidade de todos os humanos, assumo a disposição a que a referenciei.


Intrínseco ao movimento dessa disposição está o tema primitivo da União. O que de mais importante tenho a dizer sobre esse tema é que é preciso mudar a perspectiva pela qual é compreendida a condição estética que chamei de panculturalidade. Por exemplo, acredito que uma das racionalizações que poderiam se iniciar a partir daqui sobre o tema da União tenderia a cultivar a idéia de que União é perfeição. E também estaria presente nas reflexões sobre esse tema o testemunho de que a perfeição é impossível e que por isso é importante “equanimizar” as coisas. Prefiro redimensionar este caminho, pois, a perfeição aqui é um elemento do tema da União, mas deve ser entendida como uma negação ao que é modelar, ou seja, no movimento de negar qualquer modelo é que quebro qualquer possibilidade de ver imperfeições. O conceito de perfeição que renomeio é exatamente a potência poética que alerta para a compreensão de que não há nada em que eu possa me basear para decidir o que é perfeito. Somente a partir dessa constatação é que anima-se a perfeição, ou seja, a única perfeição possível é a própria consciência de sua impossibilidade absoluta.


Se eu digo que a perfeição é impossível porque o ser humano é incompleto, é preciso entender que existe um modelo implícito nisso. Como eu reconheço a incompletude? Somente se eu impuser, mesmo que inconscientemente, um modelo. O tema da União que vejo é aquele que mostra uma possibilidade primitiva de negação dos modelos. Estou unido quando perco completamente a pressuposição de um modelo de comparação. Filosofar sobre o tema da União é o agente que impulsiona a quebra do modelo. Unir-se é abandonar todo e qualquer modelo.


Por isso é que a disposição equanimidade/pancuturalidade mostra o movimento da União que sempre floresce. Pelo impulso que se expande em polissemia, mergulhando em si mesmo ao seguir essa sua potencialidade poética para ser todos num só, sem restrição. Na panculturalidade, o paganismo se torna um elemento que elimina a possibilidade do modelo, pela admissão da importância da extensão das miríades de campos culturais envolvidos na experiência artística, cujos campos psicológicos terei liberdade, ao adotar essa premissa, de invadir sem relevar fronteiras. O paganismo não permite uma fixação de modelo para comparação.


Uma importante reflexão que ajudará aqui está numa pequena obra em que Carl Jung apresenta como sincronicidade. Embora esse autor conclua que “a sincronicidade não é uma teoria filosófica, mas um conceito empírico que postula um princípio necessário ao conhecimento” (JUNG,2002:77), algumas páginas antes o autor aponta filósofos e abordagens filosóficas como precursores da sincronicidade. Tomo a proposição de sincronicidade, mas como uma condição arquetípica. E arquetípico é aquilo que tem a qualidade de poder ser compreendido, ou não, imediatamente por qualquer pessoa. Tomo a liberdade de entender a sincronicidade, revelada por Jung, não como simultaneidade, mas como equanimidade. Na parábola que proponho para este tema, um trecho do filme “Dia de Treinamento”, é possível sentir a movimentação da disposição equanimidade/panculturalidade e entender a sincronicidade desenvolvida pelo tema da União. Quando o humano, seja em que situação, pode ser revelado em sua dramaticidade, deixamos de eleger modelos e imposições culturais para assumir simplesmente nossa humanidade. E essa é uma das propostas da alma artística que quero apontar aqui.


Um dos processos artísticos em que podemos ver claramente essa potencia atuando está na realização cinematográfica. O cinema não é realizado senão com um grande grupo e com grandiosos esforços. Esses esforços remetem e são o ensaio para a compreensão da movimentação da disposição equanimidade/panculturalidade que acaba por sucumbir ao tema primitivo da União. Numa grande realização, o que também acontece, por exemplo, na engenharia construtiva, a energia que é imposta é a que exige aquela noção de sincronicidade. Sem a presença desse deus arquetípico, não pode ser realizado nada na escala desse tema primitivo.


A partir disso, afirmo o teor filosófico da atitude artística acima de tudo, pois acredito que assim fica mais próxima de todos os humanos a possibilidade de vivenciá-la. Acredito que essa seja a importância desse tema que me abre a imaginação, a de ver o mundo com minhas próprias condições e limites, mas incorporado a um trabalho que exige sincronicidade. Que me devolve ao mundo a cada momento. O que interessa aqui é que o grande milagre desse tema primitivo é permitir que eu viva a sincronicidade, porque este é o milagre da possibilidade do conhecimento direto, a intuição filosófica ingênua.



O Arquétipo e o Cultivo da Alma


Aqui também o caminho para a compreensão desta qualidade específica e a importância que este arquétipo, esta visão, e visão significando uma aparição sensorial completa e não apenas um viés de idealização, de uma alma artística conceitualizada através de uma profunda semiótica contida nas próprias palavras que elenca, que pode representar uma gênese para o processo artístico, que é o processo dessa mesma qualidade anímica de todo ser humano, assim como para a própria formação humana, pode começar a partir de uma das reflexões de James Hillman:


“O cultivo da alma é também descrito como imaginar, ou seja, ver e ouvir por meio de uma imaginação que enxerga a sua imagem através de um evento. Imaginar significa libertar os eventos de sua compreensão literal para uma apreciação mítica. Cultivo da alma, neste sentido, equipara-se com des-literalização; aquela atitude psicológica que suspeita do nível dado e ingênuo dos acontecimentos e o rejeita para explorar seus significados sombrios e metafóricos para a alma”. (HILLMAN,1983:55). 


Acredito e proponho que neste arquétipo estão elementos anímicos fundamentais com os quais todo ser humano, enquanto este ser imaginador, deve se encontrar ao se movimentar pela sua imaginação, num desejo atávico e inegavelmente arquetípico, pelo seu reconhecimento e seu desenvolvimento espiritual através deste cultivo da alma. Esta perspectiva dos temas primitivos, aqueles de que a existência Gaston Bachelard nos alertava,  afirma aqui esta qualidade humana muito importante para os trabalhos que consideram a compreensão da alma e seu cultivo como fundamental para  qualquer construção sua e, seja esta ideial ou material, à qual obrigatóriamente estará intrinsecamente relacionada e, portanto, imprescindível de ser encontrada. Se a alma é mencionada como um elemento inaugurador da especificidade humana, se é realmente o que diferencia a profunda essência de um ser humano e que pode consagrar sua experiência, é mais que necessário dimensionar uma visão de sua existência e de sua substância. Este arquétipo propõe uma definição, um deciframento das características que esta alma parece manifestar, delineando seus principais e fundamentais aspectos e elementos.


As doze disposições e os seis temas primitivos pretendem compor uma chave, uma base que pode provocar, evocar o aprofundamento do processo artístico e formativo ao ser refletida diretamente por aquele que, por si mesmo, tenta encontrar o significado e a significação de cada uma das palavras escolhidas e da relação entre cada tema e suas disposições enquanto um signo em si mesmo. A compreensão proposta de que este arquétipo está presente em toda obra, toda elaboração de qualquer atividade humana, o coloca no ponto inicial para qualquer reflexão, qualquer impulso de criação, de fabricação ou de reflexão, para que este mesmo processo tenha um aprofundamento e para que sua realização ou materialização possa absorver e desenvolver a maior e a melhor possibilidade para uma expressão humana. Através da apresentação deste arquétipo total, no esforço pela sua hermenêutica e pela sua fenomenologia, acredito que seja possível alcançar, além da capacidade de estudar as suas obras, ainda sugerir um maior e mais abrangente espectro, não somente na descrição de um modelo, mas numa demarcação das fronteiras de nosso espírito onde as propriedades anímicas navegam na escala da nossa humanidade.    

 

 




Referências Bibliográficas e Bibliografia 

 

ALMEIDA, J.F. de. (2001).A Bíblia Sagrada. Barueri:Sociedade Bíblica do Brasil

ALMEIDA, M.J.(1999). Cinema, Arte da Memória.Campinas:Autores Associados

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Filmografia:

 

DIA DE TREINAMENTO.Direção Antoine Fuqua.Warner Bros.2001

HOMEM DO ANO.Direção José Henrique Fonseca.Warner Bros.2002

FOGO SAGRADO.Direção Jane Campion.Miramax.1999

KING KONG.Direção Peter Jakson.Universal.2005

ZATOICHI.Direção Takeshi Kitano.Miramax.2003

ASSASSINOS POR NATUREZA.Direção Oliver Stone.Warner Bros.1994