“O Buda, a Divindade, mora tão confortavelmente
nos circuitos de um computador digital
ou nas engrenagens de uma transmissão de motocicleta
quanto no pico de uma montanha ou nas pétalas de uma
flor.
Pensar de outra maneira é aviltar o Buda,
o que significa aviltar-se a si mesmo.”
O
Poema Arcaico (apresentação)
Este trabalho oferece uma aproximação intuitiva
a alguns possíveis elementos inerentes aos processos de criação artística e de
desenvolvimento e organização de atividades artísticas voltadas ao cultivo da
imaginação através de propostas em educação estética. A necessidade em elaborá-lo
nasce de minha própria experiência profissional e procura apresentar aquilo que
acredito são fundamentos primitivos importantes que podem ajudar principalmente
àqueles profissionais da educação que buscam alternativas às propostas estritamente
racionalizadas nesse universo, que promovem
formas de trabalho desumanizadas muito ligadas à nossa sociedade urbana,
industrial e de consumo a que todos nós estamos sujeitos pela coerção
institucional e burocrática.
Também quer oferecer uma resposta à face
institucional e formalizante da educação, literalizada principalmente na escola,
que organiza uma constante banalização da dinâmica mística da imaginação
humana. Aquela face que não se olha, ou que faz isto com hipocrisia
funcionalista. É aquela que julga sempre estar em condições de prover aquilo
que acredita faltar a seus alunos mesmo estando ela própria cheia de falhas. É
uma educação marcial, da maioria, não artesanal, não artística, a que
homogeneíza e simplifica sem entender o que a influencia. É aquela que não é
real, mas que afirma realidades arbitrárias. Estes aspectos são os de uma
condição psicosociológica que, embora tenha muitas máscaras até bem atraentes,
está enamorada da arbitrariedade e da simplificação do conhecimento através da
fragmentação e da redução da alma humana à personalidade meramente
funcionalista. É, antes de tudo, a educação que acredito ter vivenciado.
Ali o
artístico estava banido, e esse banimento estará sempre relacionado nem tanto à
sua tecnologia, porque esta muitas vezes aparece, ou na forma de
desenvolvimento de certa competência mecânica de manufatura ou como
formalidades de entretenimento, mas, ao fato de que nunca algum elemento do
processo artístico é trabalhado em sua noção poética. O tempo artístico, a
vocação para ver a vida na sua integralidade, metaforicamente, a laboração de
significados profundos, a sacralidade e o ritual que essa condição poética exige
em seu cotidiano são desprezados e não fazem parte das habilidades práticas que
se busca treinar. Não é a imaginação livre para encontrar seus caminhos até
essa alma humana que se trabalha, mas a mecanicidade que apenas qualifica um
processo mesquinho de produção sempre em busca de resultados quantificados. Esse
pouco que sobra de uma alma artística é mantido apenas para reafirmar um mundo
pragmático e nunca para recriá-lo.
Porém, mesmo imerso como todos nesta
sociedade embrutecida, encontrei alento na imaginação, também como muitos
outros seres humanos, e desde criança escrevo poemas e desenho, influenciado
por meu pai, Fernando Catani, que lançou dois livros independentes de poesias e
tinha uma forte convivência com o meio artístico e cultural brasileiro até
meados dos anos 60. De maneira peculiar, nunca senti ter perdido aquela
ingenuidade infantil que movia minha necessidade de fazer algo relacionado a
essas formas de criação imaginativa e, em muitos momentos, esforcei-me em cultivá-la. Adulto,
cheguei a representar Campinas pelo Mapa Cultural Paulista de 1997, na
categoria literatura com um poema que está numa publicação independente de
alguns poemas meus.
Eu e
o mundo a que pertenço
As qualidades e suas sombras úmidas
A memória nítida de um dia
Quando o fogo dormiu a meu lado
Dos tempos destes sinais
Que de tribos de aspecto fatal
Somos tristes pátinas fósseis
Lugares da infância
Digna tolerância do absurdo
Moradas do espanto inócuo
Penso como flores maduras
Dias absortamente vividos
Nestas falsas estruturas românticas
Folhas de nossa amizade distante
Sobras de uma mesa de anjos
Praticando o que se costumava chamar
de artes plásticas desde 1983, realizei exposições em várias cidades do Estado
de São Paulo e em outros estados enquanto também expunha em feiras de arte e
artesanato. Fui selecionado em duas Bienais Nacionais
de Santos. Obtive algumas premiações oficiais de importância regional, como o
Prêmio Estímulo de Campinas de 1994 para uma exposição de pinturas individual
no MAC-Campinas. Em 2005 expus obras em batik na cidade italiana de
Perugia como parte de um projeto de valorização do artesanato brasileiro.
Sou graduado em Pedagogia pela Unicamp
em 2004. Mas, como profissional da educação, pratiquei o que comumente
denominam arte-educação em escolas e em projetos sociais desde 1994 e atuei em
instituições de educação não-formal com crianças e adolescentes. Também
participei de alguns projetos para formação de professores tanto da rede
pública como de escolas particulares. Tive uma experiência no trabalho com
oficinas culturais entre adolescentes internos na Febem, pelo projeto
Febem-Arte, durante dois anos e que gerou e foi o tema de meu trabalho de
conclusão de curso, do curso de Pedagogia.
Importante também foi a atuação, desde
1997 e sempre como educador, em instituições que desenvolvem trabalhos de
prevenção e recuperação do abuso de drogas. Em 2006 idealizei o projeto Ateliê
Néos de Educação Poética, onde já realizei e coordenei mais de 1000 horas/aula
nas chamadas oficinas culturais com recursos gerados pelo próprio projeto, por
parceiros privados, pelo Governo do Estado de São Paulo e também pela
Prefeitura Municipal de Campinas.
Em minha experiência com a intenção
artística sempre ocorreu uma forte ligação com o desenho e a pintura por uma
tradição e convivência com esses gêneros, porém, também elaborei algumas obras
tridimensionais que utilizavam uma montagem com materiais diversos, mas
enfatizando o uso do vidro/espelho, de mobília de madeira calcinada e de
objetos de ferro-velho. Essas obras, os desenhos, as pinturas e as montagens
tridimensionais (que em alguns projetos tomavam forma de inserções de execução
simples sobre monumentos públicos), buscam sempre uma perspectiva de alma e de
um arquétipo total,
considerando as palavras de James Hillman:
“Por alma entendo, antes de mais nada, uma
perspectiva mais do que uma substância, um ponto de vista sobre as coisas mais
do que a coisa em si... A
alma é um conceito deliberadamente ambíguo que resiste a toda definição”[4].
Também me preocupo, na execução dessas
obras artísticas, em cultivar uma reflexão sobre dois aspectos que julgo mais
influentes na problemática psicossociológica da civilização humana
contemporânea: o medo e a ilusão, ao mesmo tempo em que é uma elaboração do que
eu chamo de ícones máximos, ou seja, quero sempre criar a cada obra um ícone
total da Divindade, num poema arcaico, onde todos os arquétipos possam ser
reconhecidos. Retorno a arché dos
primeiros filósofos, ao devaneio pelo princípio absoluto.
Em todos estes trabalhos o que sempre
fica em evidência, para mim, é uma intenção de profetização delirante da
presença da Divindade, uma veneração e uma religiosidade sobre o instante do
eterno presente, que está sempre cercado, como disse, pelo medo e pela ilusão
nascidos na mente humana como elementos psicológicos do passado e do futuro,
como únicas figuras que tendem a tentar escapar do instante da presença da
Divindade. A obra é o altar em que o instante será sempre adorado e cultuado
para que não seja banalizado pela displicência da certeza de uma continuidade
que se entrega ou a esse medo ou a essa ilusão. E, para entender sobre o
instante, em seu drama poético, rendo-me a Bachelard:
“A poesia é uma metafísica instantânea. Num curto
poema, ela deve dar uma visão do universo e o segredo de uma alma, um ser e
objetos, tudo ao mesmo tempo. Se segue simplesmente o tempo da vida, ela é
menos que esta; só pode ser mais que a vida imobilizando-a, vivendo no próprio
lugar a dialética das alegrias e das dores. Ela é, então, o princípio de uma
simultaneidade essencial em que o ser mais disperso, mais desunido, conquista
sua unidade”.
Por isso o pequeno trecho de texto entre aspas no
início deste capítulo, define o objetivo deste e de todos os meus trabalhos e
do próprio entusiasmo de minha existência. Tenho plena e total convicção da
afirmação deste enunciado, mesmo antes de tê-lo encontrado. Não se trata,
porém, da adoção de qualquer crença religiosa ou de qualquer complexo e
hipertrofiado sistema de explicação do mundo, mas, muito antes disso, da
admissão de que é a própria característica, a essência da Divindade, estar
presente em tudo e que esta presença é, no caso do ser humano, a essência de um
movimento entre a imaginação poética, a materialização estética e a profunda
relação entre estes dois estados. Esta perspectiva
afirma aqui uma qualidade humana muito importante para este trabalho, a de que
este ente humano é, antes de tudo, um imaginador. Aqui também o caminho para a
compreensão desta qualidade específica começa a partir das reflexões de James
Hillman:
Como artista, educador e,
principalmente, como um ente humano imaginador, meu único objetivo é expandir a
idéia de que sem a consciência da afirmação do início deste capítulo nenhuma
criação é verdadeiramente possível e nenhum problema humano poderá ser
elaborado livremente. Buscarei demonstrar neste trabalho, a partir
dessas premissas, apenas algumas particularidades dessa condição, não para
construir mais uma teoria especulativa, mas para testemunhar uma situação de
minha vida que me afeta honesta e profundamente.
Com a
necessidade de ajuda para os estudos deste trabalho, encontrei apoio nas
abordagens para o estudo das imagens elaboradas pelo Grupo de Estudos
Audiovisuais OLHO, da Faculdade de Educação da Unicamp através, principalmente,
da dedicada atenção do professor Carlos Miranda, a este agradeço desde já.
Entre os autores “de fundo”, ou seja, que foram estudados aleatoriamente ao
longo da minha vida, mas que influenciam diretamente cada palavra deste texto,
está, principalmente, Jiddu Krishmamurti nas suas inúmeras palestras
transcritas em que a proposta de conhecer o mundo e a mim mesmo diretamente e
pela rejeição à qualquer autoridade imposta ficou como o seu maior legado. O
alerta para não me deixar levar por especulações hipertrofiadas geradas nas
institucionalizações de idéias, e a constante indicação de um mundo
incognoscível ao meu redor em sua maravilhosa e indescritível imensidão é o que
alimenta a vontade de demonstrar a intuição que tentarei expor neste trabalho.
Seus pensamentos permeiam toda a experiência que realizo.
“O Mito de
Sísifo”, de Albert Camus, apresenta-me um aprofundamento de reflexão que marca
um dos meus primeiros movimentos de aproximação à preocupação em relação aos
processos de criação artísticos e a intuição do drama que os fomenta.
“De todas
as escolas da paciência e da lucidez, a criação é a mais eficaz. É também o
assombroso testemunho da única dignidade do homem: a revolta tenaz contra a sua
condição, a perseverança num esforço tido por estéril. Exige um esforço
quotidiano, o domínio de nós próprios, a apreciação exata dos limites do
verdadeiro, a medida e a força. Constitui uma ascese. Tudo isto ‘para nada’,
para repetir e espezinhar. Mas talvez que a grande obra de arte tenha menos
importância em si própria do que na provação que exige de um homem e na ocasião
que ela lhe oferece de vencer os seus fantasmas e de se aproximar um pouco mais
da sua realidade nua”.
“Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas”
de Robert Pirsig, obra que contem o texto do início desta apresentação, está
sempre em mim e aparece como uma memória de um mundo de devaneios delicadamente
melancólico que nunca me abandona desde sua primeira leitura. Outra influência
é toda obra do antropólogo e escritor Carlos Castaneda em que relata a
convivência com a personagem do índio mexicano Dom Juan. Importantíssimos
também são as leituras dos textos, chamados de evangelhos, que pretendem
relatar a vida e os pensamentos atribuídos a Jesus Cristo. Pier Paolo Passolini
é também outra referência implícita, porém, colhida em estudos aleatórios. Um
outro texto em especial figura como uma base psicológica de meu imaginário e
dialoga com todos os outros, é “Apologia de Sócrates” de Platão, sem dúvida
nenhuma um dos textos que mais me interessaram na vida. Outros, cada um com
certa importância, estão relacionados na bibliografia.
Dentre os
que já são relacionados a estudos específicos, o clássico livro de Andrei Tarkovski,
“Esculpir o Tempo”, que é peça insubstituível quando instiga à liberdade de uma
vida espiritual pelo impulso artístico. Esta obra é muito importante aqui, pois
dará a este trabalho referências contemporâneas para as reflexões sobre os
processos imaginativos que observo. Mais dois autores foram adotados como
fundamentação direta de estudo deste trabalho. Um, muito importante, é Gaston
Bachelard. Porém, embora eu procure ler e citar várias de suas obras por uma
paixão pessoal pelo seu trabalho monumental, aqui, apenas um pequeno livro seu,
“A Intuição do Instante”, mostrou-me um apoio para encontrar o cerne de toda
proposição desenvolvida neste trabalho. O outro autor, James Hillman, é também
fundamental para este estudo e, da mesma forma, embora tenha já tido contato
com algumas de suas obras, a que é relevante aqui é “Psicologia Arquetípica”.
Este pequeno livro define e orienta toda minha reflexão acerca dos movimentos
do que entendo seja a alma e o espírito humanos. Juntos, estes dois trabalhos fascinantes
nutrem toda minha expectativa em relação aos fundamentos conceituais para o que
espero criar neste texto.
De uma maneira inexorável sempre estive
impressionado por essa idéia de que a divindade está em tudo, aliado a uma
extrema atração por imagens elaboradas com simplicidade e uma paixão pelas
coisas que expressassem uma estética rústica, primitiva, das coisas no estado
de presente absoluto, numa manutenção sem reforma, pela afeição única ao estado
presente intocado das coisas em seu processo de desgaste como resultado da sua
própria existência. Encontrei ressonância desta minha paixão na poética e na
estética do “Wabi Sabi”.
Esse termo, originário do Japão, é uma espécie de
aproximação filosófica e poética à vida, próxima ao Zen Budismo e de difícil
tradução e, embora existam alguns textos que busquem definí-lo, não possui
teorias sistematicamente elaboradas e muito menos fundadores nomeados.
Pessoalmente, diria que é uma manutenção poética das coisas, uma forma de
artesanato da contemplação que trabalha em parceria com o próprio desgaste do
tempo sobre as coisas. Estabeleci uma relação de uma frase recorrente da
personagem Don Juan de Carlos Castaneda e a compreensão do que eu mesmo entendo
por “Wabi Sabi”, quando este autor cita o poeta mexicano José Gorostiza:
“... este
incessante morrer obstinado,
esta
morte vivente,
que te
retalha, oh, Deus,
em Tua
rigorosa obra
nas
rosas, nas pedras,
nos
astros indomáveis
e na
carne que se queima,
como uma
fogueira acesa por uma música,
um sonho,
um matiz
que atinge o olho,
...e Tu,
Tu próprio,
talvez
tenha morrido eternidades de eras aí fora,
sem que
saibamos a respeito,
nos
refugos, migalhas, cinzas de Ti;
Tu que
ainda estás presente,
como um
astro imitado por sua própria luz,
uma luz
vazia sem astros
que nos
alcança,
escondendo
sua infinita
catástrofe.”
Estou cercado e sou parte desta “morte vivente”.
Este aspecto me serve aqui para dar um timbre e uma pátina específicos ao
trabalho que este estudo se propõe. Quando abordar as imagens será sempre
olhando através desta intenção.
Bem, imerso neste universo, num belo dia, surgiu
uma necessidade específica desse meu trabalho como arte-educador, devido a uma
exigência de um curso de capacitação de professores em que eu deveria
expor sobre a divisão da história da arte em períodos históricos. Resolvi olhar
para esse tema e tentar encontrar nele essa aproximação espiritual. O pedido
era expor superficialmente o tema dos períodos da história da arte e mostrar as
principais imagens relacionadas a estes: Arte Primitiva - Arte
Antiga - Arte Medieval - Arte Renascentista - Arte Moderna - Arte
Contemporânea.
Na preparação para a exposição não me interessei
por descrever os períodos, analisá-los, provar sua veracidade ou depor contra
isso. Simplesmente esse fato foi o estopim para uma descoberta importante para
mim, porque acreditei que poderia ser o momento e a oportunidade de estudar e
demonstrar algo que já intuía fortemente. Atraiu-me também o fato de que
estudaria não somente os conceitos, mas algumas imagens relacionadas aos períodos.
Embora esta
divisão já seja, de certa maneira, um senso comum, há uma referência de estudo
no o famoso livro de Arnold Hauser em que esta mesma divisão encontra uma
justificativa, todavia, um tanto mais elaborada. Porém, tomei-a na sua forma
mais aceita (o que se confirmou entre as pessoas cuja explanação se destinava
na ocasião). Busquei primeiramente as imagens das obras referentes com uma
estreita relação com as características convencionais de cada período
(principalmente datação) e mais acessíveis que encontrei, pois era necessário
partir do que estivesse mais próximo, porque não seria uma pesquisa por imagens
inéditas, mas sim um mergulho, e um mergulho vai da superfície ao fundo. E, na
proposta do presente estudo isso é o mesmo que dizer, como defenderei, da
estética à poética, ou seja, do espírito à alma.
“É uma
particularidade da alma ser não apenas mãe e origem de toda ação humana, como
também expressar-se em todas as formas e atividades do espírito; não podemos
encontrar em parte alguma a essência da alma em si mesma, mas somente
percebê-la e compreendê-la em suas múltiplas formas de manifestação”.
Quando
comecei a observar a estética de cada período, claro, expressa nas imagens
dadas que as representavam, comecei instintivamente a refletir imaginativamente
sobre os momentos de realização dessas obras, a contextualizá-los, a buscar por
biografias e fatos relacionados às imagens que estavam ali defendendo cada
recorte. Essa intuição devaneou para o reconhecimento de uma qualidade externa
e uma interna que cada imagem parecia conservar. Influenciei-me aqui pela
assertiva de James Hillman que sempre me intrigava: “o espírito está nos picos, a alma está nos vales”. Tomei a frase em si mesma e repetia sua leitura,
como um mantra religioso, porque algo parecia saltar de dentro desta frase que
era exatamente o que eu intuía em alguns instantes de meus devaneios. Mas o que
seria o espírito das coisas e o que seria a alma das coisas quando olho para os
períodos. Caminhei da superfície estética à profundidade poética de cada imagem
que encontrava. Do espírito manifesto e iluminado à alma profunda e protegida.
Foi uma visão e eu continuei a devanear sobre ela nomeando o que percebia como
uma espécie de disposições poético/estéticas que acredito apareciam coincidentemente
entre as imagens de cada período. Disposições com uma face estética e uma noção
poética permanente, reconhecidas em cada imagem atribuída a um mesmo período.
Discorrerei
neste trabalho sobre uma visão específica da alma artística. Entendi que
deveria abordar o movimento da imaginação na idéia dos períodos para
reescrevê-lo espiritualmente a partir do que me provocavam internamente, de
como me afetavam a memória. Busquei, então, encontrar antes de tudo uma imagem
arquetípica que melhor evocasse a alma e o espírito. Que pudesse me colocar, de
acordo com meu anseio, no ponto mais atávico e rústico possível e que, apesar
de geralmente já estar apropriada por diversos sistemas imagéticos organizados,
poderia ser estudada independentemente destes para estabelecer um campo
psicológico no qual eu contemplaria posteriormente as imagens contextualizadas
relativas aos períodos. Escolhi a Trindade, a guardiã do eterno. A imagem da
Trindade que mais se aproximou do teor de que minha imaginação necessitava
abordar neste estudo foi a da Triquetra.
Neste
caminho, descobri que uma constelação ficou de fora do zodíaco, o
Ophiuchus, ou serpentário. Tive uma intuição
interessante sobre essa situação da décima terceira constelação, e o fato de
esta estar excluída. Assim também é a condição do quatro na sua relação com a
Trindade que, como escreve Goethe “nós
trouxemos três, o quarto não quis vir conosco: ele diz que é o único
verdadeiro, que pensa por todos os outros”. O diálogo destas duas situações imagéticas, do
treze e do quatro, com minha investigação sobre minha idéia das fronteiras me
levaram a ligá-las também uma relação estreita com a imagética das esferas
infernais, o que me fez refletir numa interessante condição das imagens ligadas
a estas peças, que também as torna uma fronteira da imaginação. Para a estudo
do imaginário que as liga ao mundo infernal, relaciona-las-ei, principalmente a
partir de sua situação de exclusão, a duas interessantes entidades demoníacas,
Arimã e Lúcifer, através do estudo da interessante visão que tive da
permanência das características poético/estéticas destas duas figuras
arquetípicas em duas performances musicais, um da banda U2 e o outra da banda
Rolling Stones.
O principal elemento desse movimento de minha imaginação, que desencadeia
todo processo de criação a que me dedico é o devaneio. É um estado psicológico que entendo seja encontrado numa fresta entre a vigília e o sonho.
Para mim, somente este estado pode estabelecer um diálogo entre estas duas
situações, tão fortemente ligadas à condição humana, para criar imagens
importantes. Estas reflexões estão magistralmente expostas na obra de Gaston
Bachelard, “A Poética do Devaneio”, mas já estavam esboçadas numa obra anterior, “A
Pisicanálise do Fogo”, da qual retirei esta citação, fundamental para este
trabalho:
Marcadas as
fronteiras e estabelecidas as referências em que meu imaginário acerca das
intuições provocadas pelo mote deste estudo se deslocaria, aparecem-me, num
devaneio de uma mística fusão entre a estética que eu vi e a poética que eu
intuí pertencerem aos períodos diante das imagens relacionadas a cada um
destes, doze disposições, seis anímicas e seis espirituais, dispostas em duplas
que, contextualizadas a cada período, revelavam um aspecto materializado e um
de impulsão que me pareciam coincidir com o contexto psicossociológico
referente aos períodos a que eram associados e, embora pudesse encontrar todas
as disposições em todos os períodos, creio que cada dupla apareceu com mais
intensidade em um período em
especial. Para ampliar as possibilidades de observação destas
reflexões e meus devaneios costumo criar o que chamo de “gráficos poéticos”. Elaborei
para este trabalho alguns que, aliados à leitura do texto, podem representar
uma interessante maneira de aproximação ao tema proposto aqui.
Assim,
relacionei uma estética de ritual
ao um impulso poético de ritmo principalmente nas imagens e no contexto atribuídos ao
período da chamada arte primitiva. Uma estética mitológica a um impulso
de reflexão poética que estavam mais
evidentes nas imagens e contexto da chamada arte antiga. Uma estética de religiosidade com seu constante exercício
poético de devoção ocorriam de forma
mais aparente no período dito arte medieval. Uma experiência estética intensa
de humanidade que sugere uma consciência de identidade poética esteve sempre claramente evidente nas
realizações amplamente divulgadas da chamada arte renascentista. Uma estética
focada na construção da sociedade que
se esforça para a dinamização de
significados poéticos surgia com maior força nas criações da arte moderna. E,
finalmente, uma estética de panculturalidade
amparada por uma determinação de equanimidade
poética era mais potente nas situações artísticas do que comumente se chama
arte contemporânea.
A partir
disso, decidi eleger apenas uma imagem para cada um dos seis períodos que
conservasse intensamente cada uma das seis duplas de disposições que eu
vislumbrava, pois o objetivo não era teorizar os períodos ou dissecar as obras,
mas estudar minha intuição desta estranha aparição conceitual. As imagens são
aqui o amparo para meu devaneio. Estudei a historicidade e algumas estórias, lendas,
mitos e biografias, em livros e documentários audiovisuais que consegui
encontrar, relativas a cada período e os relacionei tudo isso aos meus
devaneios acerca das disposições que visionei. Durante este exercício sempre
tive a sensação de que seria necessário destilar mais uma vez esses elementos,
pois, na continuidade desse meu trabalho imaginativo percebi um outro curioso
movimento revelado em cada dupla das disposições que sibilava um novo tom
criado a partir da contemplação da interação entre as duplas de disposições.
Como quando
surge uma outra cor no efeito ótico entre o movimento de duas cores, surgiu-me
um vulto, um mote entre os dois vetores de cada dupla disposição, uma idéia que
me sugeria a aparição de um grande teor primitivo, figurando como uma energia
psíquica, com um aspecto rústico, atávico, uma potência andrógina da criação
artística que se alimentava da movimentação entre cada dupla de conceitos que
chamei de disposições do processo de criação artística. Associei imediatamente
essa minha visão a uma afirmação de Gaston Bachelard que também sempre estava
latente e intrigante para mim:
Vi que, à
minha maneira, havia encontrado uma pista daquilo que eu intuía serem os temas
primitivos a que, segundo Bachelard, todos nós retornamos. Chamei meu delírio de “seis temas primitivos
da alma artística”, também o associei a uma outra imagem da Alquimia, a rosa de
seis pétalas, que figura como um dos símbolos da pedra filosofal, e acreditei
que assim, para mim, esse seria o resultado do trabalho espiritual de minha
imaginação desde a primeira observação dos períodos da história da arte.
Comecei, então, a trabalhar sempre os tendo como o principal arquétipo envolvido
nos processos da criação artística. Montava os cursos, as aulas, as oficinas
culturais e minhas próprias tentativas de elaboração artística, implicitamente
possuído por esse devaneio, por esse encantamento que inventei para minha vida
e que me deixa extremamente alerta, pleno e alegre em persegui-lo.
Os seis
temas primitivos que se revelaram a mim são uma potência de cada dupla de
disposições que creio sejam o esteio do processo de criação artístico, seja
qual for a qualidade, tipo, maneira de cada relação estético/poética,
espírito/anímicas. Assim, na disposição do ritual/ritmo vibra o tema primitivo
do Tempo. Nas disposições
dinamização/sociedade aparece o tema do Ser.
Nas disposições devoção/religiosidadeo figura tema do Sacrifício. Da relação equanimidade/panculturalidade pulsa o tema
da União. Na dupla
identidade/humanidade, o tema da Verdade.
Nas disposições reflexão/mitologia aparece o tema do Divino.
Acredito que
seja qual for a obra artística que observar, poderia destilar estes mesmos temas
e encontrá-los como a matéria prima de qualquer criação poético/estética. Na
verdade, acredito que poderia destilá-los de qualquer criação humana, sem
nenhuma restrição, pois acredito que toda realização ou ato humano é
poético/estético desta mesma maneira. A Divindade está em tudo e os temas
primitivos são, para mim, uma manifestação delirante e arquetípica da
Divindade. Por isso, para demonstrar essa qualidade decidi também apresentar
uma parábola para cada um dos seis temas primitivos, tiradas de trechos de
filmes. Acredito que em cada recorte desses, colhidos de sequências corridas,
sem nenhuma montagem, poderei criar uma oportunidade de aproximação metafórica
aos temas primitivos, propiciando, além do texto que escrevi, também uma
reflexão imagética que possa ampliar a relação do leitor com a proposta deste
trabalho.
Espero,
então, que a escolha destas imagens me coloquem em momentos iniciáticos, pois
sempre foi meu interesse mais profundo encontrar a Divindade das coisas sem
intermediários e sem tradutores especulativos. Quando preciso encontrar
referências, as busco naqueles que cuidam para não doutrinar, mas sim que me
empurram conhecimento adentro.
Bem, qual
seria a importância de um trabalho com a pretensão de desconstrução da idéia
dos períodos da história da arte para encontrar a Divindade em temas primitivos
inventados por mim? Seria, principalmente, a de reencontrar uma reflexão e uma
condição humana espiritualizada, sacralizada, porque não consigo assimilar a
imensidão do universo que me cerca sem me render a uma postura de reverência e
admiração.
Neste
estado, buscarei seguir para demonstrar a força e a necessidade de uma
aproximação constante ao universo artístico e me dedicarei a oferecer ao leitor
um lugar de contemplação desses temas primitivos que eu mesmo vislumbrei. Minha
intenção é que isso possa ser tão interessante a quem ler esse trabalho como
tem sido para mim, e assim contribuir para indicar uma nuança específica, uma
visão poética do mundo que nos cerca, chamar a atenção para a grandeza de
qualidade espiritual de nossa existência e testemunhar pela necessidade de
reconhecer a vida por mim mesmo, imerso nessa assombrosa eternidade do
instante.